A cobertura internacional da imprensa brasileira é forte candidata a pior, se comparada à de outras áreas editoriais. Através dela, é literalmente impossível acompanhar o desenvolvimento de qualquer situação internacional. Às vezes, ela até se volta de maneira concentrada para um tema, em geral depois que ele já foi caracterizado pelas agências internacionais como fundamental. Também chega a fazer um ou outro caderno importante, mas em seguida volta ao marasmo cotidiano. Fragmentação, falta de continuidade, incapacidade de acompanhar o desdobramento de um fato, inexistência de várias versões interpretativas – entre outras debilidades – são as marcas destes nossos cadernos internacionais, apesar de seu papel fundamental para nos falar de todo o ‘resto’ do mundo.
Um editor-chefe de um dos maiores jornais brasileiros chegou a me dizer que não se dedicavam mais à editoria internacional porque a demanda era baixa. Isto é, produz-se um caderno sem interesse, burocrático e, evidentemente, produz-se o baixo retorno por parte das suas vítimas, que preferem divertimento e esportes. Nessa mesma conversa, pude saber que uma matéria interessante publicada por seu jornal naquela semana, na primeira página de internacional – sobre os exageros brutais nos dados anunciados durante a primeira guerra do Iraque, os desmentidos e as justificativas de que teriam que fazer aquilo, senão os EUA teriam que enviar infantaria, com as mortes correspondentes, o que não seria suportado pela opinião publica estadunidense – não tinha sido lida nem sequer por ele. O que então poderia esperar dos leitores do seu jornal?
Os jornais de maior tiragem costumam ter as piores coberturas internacionais, justamente porque buscam aumentar suas vendas com os outros cadernos, mais solicitados por um público mal servido pela editoria internacional. No entanto, os grandes debates nacionais costumam se valer como parâmetros decisivos de argumentos e exemplos tirados da situação de outros países. Diz-se diariamente que vamos bem ou vamos mal porque seguimos ou não seguimos os caminhos propostos por tal ou qual organismo internacional, que violamos suas normas e por causa disso seguiremos o caminho do inferno de países que teriam fracassado por essa razão.
Trabalho pedagógico
As informações que nos são brindadas, por exemplo, sobre a Índia, a Coréia do Sul, a China, Cuba, o Irã, o Chile, a África do Sul, a Venezuela, o México, a Argentina – para citar apenas alguns casos – impedem-nos não só de compreender o que realmente se passa nesses países, mas também de inferir se temos algo a aprender com o que ocorre ali, seja para incorporar ou para rejeitar. Isto nos é vedado porque a grande imprensa, através dos editoriais – e do noticiário editorializado – reivindica o direito de fazê-lo por nós.
Ai estão os colunistas econômicos – a grande praga da imprensa cotidiana dos que privam do contato direto com ministros da área econômica e presidentes e diretores de Bancos Centrais – a nos dizer que o México, a Argentina ou o Chile, conforme o momento e as circunstâncias, são o melhor modelo a ser seguido. Nada a explicar, nada a corrigir ou a justificar se, a posteriori, esses países explodem em crises econômicas e financeiras paradigmáticas. Outros modelos virão ocupar seu lugar, para que o pacote preparado para os leitores nunca perca consistência na sua argumentação enganosa e sem fundamento na realidade do que acontece no mundo. Poucos poderão constatar – o próprio jornal se encarrega de impedir que se saiba – o que realmente acontece na China, na Índia, na Coréia do Sul, na Venezuela, na Argentina, porque são notícias que costumam contradizer de forma cabal o que editoriais e colunas anunciam diariamente como verdades estabelecidas.
Fecha-se, assim, o círculo de ferro que permite que o mundo seja produzido e reproduzido como marco ideológico que encerra, ao invés de abrir, o horizonte dos leitores, em coberturas que fazem das editorias internacionais portas abertas para o shopping-center liberal e não alavancas para conhecer o mundo tal qual ele é. Um índice apenas já serve para ilustrar a precariedade e o provincianismo das editoriais internacionais da grande imprensa brasileira. Eduardo Galeano, que eu considero o nosso melhor escritor contemporâneo, tem no Brasil um caso único: é o único país, cuja imprensa leio com um mínimo de regularidade, que não publica sistematicamente seus extraordinários artigos. Uma ausência que, por si mesma, preenche tantos vazios para explicar por que um livro como o de Margarethe Born Steinberger é chave essencial para entendermos a imprensa que temos e – mais importante do que isso – compreendermos o mundo que temos e que é escamoteado cotidianamente pela grande mídia.
Desnudar os mecanismos totalitários de formação da opinião pública e o monopólio das interpretações pelo setor midiático é condição do exercício da cidadania, é condição da apreensão do mundo no nosso tempo, com sua historicidade e suas contradições, com suas misérias e seu potencial de transformação revolucionária, é condição da democratização da mídia, sem a qual nunca chegaremos a ter uma democracia entre nós. Margarethe faz isso como ninguém. Por isso seu trabalho – suas análises e seu gigantesco trabalho pedagógico – se constituem em leitura essencial, se quisermos que o mundo seja captado na sua dialética interna e se torne objeto passível de transformação, deixando de ser um mundo alheio, para tornar-se meio de desalienação e de emancipação.
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Professor de Sociologia da Universidade de São Paulo e diretor do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro