Qual terá sido o objetivo da reportagem de capa da revista Veja em sua edição de 3/9/2008? ‘Denunciar’ que a Abin teria feito grampos ilegais nos telefones do ministro Gilmar Mendes e outras autoridades e, com isso, alertar à sociedade sobre a existência de um Estado Policial que ameaça as instituições democráticas? Ou, como alertou conhecido blog ‘paralisar as investigações da agência sobre conspirações deflagradas contra o Estado de Direito, inclusive aquelas perpetradas nas páginas da Veja, sobretudo durante a campanha eleitoral de 2006, mas também com evidências no caso do `dossiê anti-FHC´ para derrubar a ministra Dilma?’.
Há linhas que valem mais do que mil editoriais. São as que revelam os objetivos de um texto e o descompromisso com a informação divulgada. Não comportam normas prescritas em códigos de ética, seguem tão-somente a lógica da promoção de eventos. Algo do tipo ‘domingo é dia de botar fogo no circo, criar uma crise artificial e colher os frutos ao longo da semana’. Lógico, para tal empreitada contam com o apoio logístico de outros meios de comunicação, além da acolhida eufórica de alguns jornalistas-blogueiros. É o caso da matéria assinada pelos jornalistas Policarpo Junior e Expedito Júnior, ‘A Abin gravou o ministro’.
Além de editorializarem as supostas denúncias, fazem afirmações sem um pingo de comprovação, baseadas em ‘fontes’ não identificadas, e inventam fatos deslavadamente, como nesse trecho: ‘Desconfiado [o ministro Gilmar Mendes], solicitou à segurança do tribunal que providenciasse uma varredura. Os técnicos constataram a presença de sinais característicos de escutas ambientais, provavelmente de aparelhos instalados do lado de fora da corte.’ Mentira. A varredura feita pela segurança do STF não encontrou qualquer vestígio de escuta clandestina.
Correspondência privada
A degravação de uma conversa entre o presidente do Supremo e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) seria a prova da seriedade do ‘jornalismo investigativo’ praticado por Veja. O fato de os dois confirmarem o diálogo significa a existência de grampo? Se confirmar, o que leva a crer que tenha sido feito pela Abin e não por alguém empenhado em atingir Paulo Lacerda, o diretor da Agência?
Pois bem, o relato impreciso da revista é o pretexto para Gilmar Mendes afirmar que ‘não há mais como descer na escala da degradação institucional. Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente do Supremo Tribunal Federal é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno.’
Se levarmos em conta que um juiz, principalmente quando preside a mais alta Corte do país, deve buscar o estabelecimento de conduta ética que lhe permita entender os limites de sua atuação profissional, as palavras de Mendes soam como incompatíveis com a natureza do cargo que exerce.
O que é descer na escala da degradação institucional? Em artigo publicado em 08 de maio de 2002, o jurista Dalmo Dallari foi muito assertivo ao tratar da indicação de Mendes ao STF, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso:
‘Se vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional’.
‘A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha inadequada’.
‘Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um `manicômio judiciário´’.
Os trechos transcritos não são exemplos explícitos de degradação institucional?
Tão logo ascendeu (em processo formal, sem candidato, como é praxe na Corte) à presidência do STF, Gilmar Mendes tomou a iniciativa inédita de convocar a imprensa para, sem ter sido solicitado, deitar falação sobre o quadro político.
Logo após, deixou-se ‘perfilar’ pela revista Serafina, da Folha de S.Paulo, chegando ao ponto de ceder fotos de ‘álbum de família’ e se deixar fotografar na residência. Isso não é incompatível com a liturgia do cargo? Não degrada a instituição que preside?
Durante o julgamento da aceitação da denúncia sobre o chamado ‘mensalão’, um fotógrafo do Globo, premeditadamente (pois teve que se posicionar por trás da bancada dos meritíssimos), violou, e o jornal publicou, a correspondência privada entre dois ministros (Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia), capturando imagens das telas dos laptops dos dois em plena sessão. Na ocasião, nem Gilmar Mendes nem a oposição fizeram qualquer restrição contra o flagrante desrespeito à ‘majestade’ da corte. Isso não é degradação institucional?
Banda de música
O que o Supremo tem feito ao legislar indevidamente sobre fidelidade partidária, uso de algemas, número de vereadores, verticalização das coligações e nepotismo deve ser encarado de que forma? Quando se superpõe aos demais poderes como se fosse legislador ou chefe de Estado, o judiciário não colabora substantivamente para a degradação institucional?
Seria interessante que Mendes esclarecesse por que nunca se falou que a Abin tivesse grampeado qualquer outro ministro do STF? Isso só entrou em voga – partindo dele próprio – ‘coincidentemente’, depois da concessão de dois pedidos de habeas corpus (o segundo, ignorando solenemente os motivos da prisão) em favor de Daniel Dantas. Suprimir duas instâncias do Judiciário para soltar o banqueiro, dando-lhe foro privilegiado, não é degradação institucional?
Não seria o caso também de se declarar impedido de participar do julgamento de Raposa do Sol, já que sua posição contrária à demarcação contínua é conhecida desde a época em que era advogado-geral da União, no governo FHC? Não lhe faltaria imparcialidade sem a qual é inevitável a degradação institucional?
Há quem defenda que juízes devem falar exclusivamente por meio dos autos. Ao conferir à linha editorial de Veja um caráter de ‘realismo jurídico’ não estaria o ministro firmando uma perigosa jurisprudência? E isso, não seria descer ainda mais na escala da degradação institucional?
Uma sociedade controlada por monopólios de mídia e um Judiciário que substitui os demais poderes não está à beira de um golpe de Estado. Já o vive em plenitude. É preciso estar atento à banda de música que toca a mesma marchinha desde os anos 1950. Com seus acordes a democracia vive à beira do precipício.
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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro