Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O mito não pára

Mitologias, de Roland Barthes, acaba de ser reeditado no Brasil pela Difel. Mais que atual, o livro se confirma profético. Escrito entre 1954 e 56, publicado na França em 1957, o exercício semiológico de Barthes tem como objeto o sistema de signos que compõem o imaginário das sociedades industrializadas (re)trabalhado pelos meios de comunicação de massa. Estes eram representados sobretudo pela imprensa e a publicidade, já que a televisão, na década de 50, ainda era uma mídia de pouco alcance comparada ao cinema, aos jornais, às revistas e aos outdoors. Hoje, a televisão, acima de todas as outras mídias, ocupa o lugar da grande produtora de mitos e parece estar aí só para dar razão a Barthes. A ela, exclusivamente, dedicamos nossa atenção nos ensaios que compõem Videologias. A referência-homenagem ao livro de Roland Barthes não poderia ser mais explícita e mais necessária.

Não se procure pela origem do termo videologia. É um trocadilho um tanto fácil, que alguém poderia ter achado antes de nós, embora não tenhamos registro disso. De um modo ou de outro, não nos pretendemos inventores da palavra. Apenas consideramos oportuno trazê-la ao debate no alto de um livro como este. Aqui, essa palavra, mencionada apenas num dos ensaios, acaba servindo como elemento provocador (oculto) em cada parágrafo, como um fantasma a assombrar o texto. A palavra videologia é um trocadilho em aberto, cujo significado se consuma quando contraposto ao significado das mitologias barthianas ou ao significado do termo ideologia. Vivemos uma era em que tudo concorre para a imagem, para a visibilidade e para a composição de sentidos no plano do olhar. É nessa perspectiva que falamos em videologia, ou seja, na perspectiva de que a comunicação e mesmo a linguagem passam a necessitar do suporte das imagens num grau que não se registrou em outro período histórico. Os mitos, hoje, são mitos olhados. São pura videologia.

Voltemos então às mitologias, ou melhor, voltemos às mitologias tal qual elas se condensam nas palavras. Embora Barthes não diga isso exatamente nesses termos, podemos afirmar que as mitologias sacralizam certas mensagens, tornando-as pequenos objetos de significação inexpugnável. Dão a essas mensagens uma imobilidade que ao mesmo tempo é problema e solução: é problema porque a palavra que não se move morre, como bem avisava Bakhtin; ao mesmo tempo, é solução, um anestésico que conforta o humano confinado na prisão da linguagem. A palavra mitificada talvez se enrijeça na sua condição de palavra, mas revive sempre na sua condição de mito.

Sacada de Flaubert

Não há sociedade que se sustente sem formular sua própria mitologia. O mito, no sentido tradicional, é o sistema criador de significações ‘indiscutíveis’ (Barthes), que mascara o desamparo humano no reino da linguagem. A linguagem é a morada do homem, morada insegura. Sem o mito, ela não seria suportável. A linguagem, em vez de uma fortificação sólida e protegida, oferece no máximo uma tenda, prestes a ser desmontada a cada vez que seu ocupante sai em busca de sítios mais abrigados; uma tenda sujeita à ação dos ventos e das tempestades da história e dos abalos sísmicos do poder. Sabemos – na modernidade, mais do que nunca – o quanto é arbitrária a relação entre significante e significado; sabemos que as significações não foram atribuídas por Deus às coisas criadas, mas que são obra do acaso operando nas relações humanas. Não há um referente último que assegure, de um lugar fora da linguagem, a estabilidade das significações. A linguagem, de fato, é um lugar angustiante.

No início do século XX, Saussure identificou um deslizamento entre o significante e o significado. Um patina sobre o outro, sempre, deslocando os sentidos; o que não era passa a ser, deixando de ser no instante seguinte. Significantes e significados, como amantes fugidios, entregam-se e escapam-se, sem que se saiba direito por quê. No momento preciso em que há uma fixação de um sobre o outro, cristaliza-se a ideologia. O sujeito tem a sensação de que coisas fazem um sentido! Claro: sentido ideológico. A ideologia se movimenta justamente sob a paralisação do significado sob o significante (ou sobre, tudo é uma questão de ângulo), que produz o que Roland Barthes chamou de naturalização das significações, com a perda de seu caráter histórico e contingente. É interessante também pensar que o mito sustenta essa paralisação. Uma e outro, ideologia e mito, escondem do sujeito essa condição inevitável, a de que tudo é transitório, e tudo o que concerne ao homem é de responsabilidade dos homens, das relações de troca e de poder entre humanos. Tudo, inclusive ele, o sujeito que, como define Lacan, nada mais é que um significante à deriva.

Desde sempre, os significantes transitam sem cessar. Michel Foucault dedicou As palavras e as coisas ao exame dos deslocamentos sofridos pela relação entre a linguagem e a verdade, desde o final da Idade Média no Ocidente. Tudo passa. Não existe, de fora da linguagem, um significante sólido que garanta a relação do conjunto dos significantes com a verdade das significações. Durante séculos, a humanidade apostou no nome de Deus para fazer esta função. ‘Não existe o Outro do Outro’, disse Lacan em um de seus célebres aforismos, indicando que o homem não está desamparado apenas frente à natureza, mas no seio da linguagem. Por isso o mito necessariamente cimenta as estruturas de qualquer sociedade, pois fornece um suporte imaginário ao desamparo dos sujeitos na linguagem. No sistema de mitos próprio de cada cultura, o homem está ‘em casa’.

O mito oferece um conjunto de conceitos indiscutíveis, de pouca ou nenhuma ambigüidade, compartilhado por todos os membros de um grupo, de modo a produzir, se não uma verdade, ao menos aquilo que Gustave Flaubert chamava ‘éffect du réel’. Flaubert, escritor realista sem nenhuma ingenuidade a respeito da relação entre a arte e a ‘realidade’, sabia que o real, para o homem, é um efeito do uso da palavra. Seu Dicionário das idéias feitas talvez seja um precursor intuitivo, sem aporte teórico explícito, das Mitologias do século seguinte. Nele, o autor descreve com grande senso de humor o sistema de ‘conceitos’ de que o burguês oitocentista se valia para sentir-se confortável diante de tudo o que não fosse ele mesmo. O Outro nomeado pelas ‘idéias feitas’ poderia ser a plebe ameaçadora, a aristocracia invejada, a natureza, a arte, a poesia que o burguês não conseguia alcançar, ou seus próprios afetos recalcados. O sistema de signos que o Dicionário de Flaubert analisa pelo simples recurso da ironia tinha a função de instalar aquela classe emergente num lugar seguro de onde o poder poderia ser exercido com maior eficiência, através do domínio dos códigos que regem o laço social. Quando um conjunto de significações que sustentam os sujeitos no campo simbólico se ‘naturaliza’, o poder atinge sua máxima eficácia. Flaubert percebeu a operação que articulava os artifícios do uso da língua à acomodação de uma nova classe dominante em seu lugar recém-conquistado, na segunda metade do século XIX. Percebeu – e nisso consiste seu realismo – como é imenso o poder da palavra.

Poderes soberanos

Cem anos depois, Roland Barthes vem denunciar o truque: ‘O mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é a mesma que foi roubada: trazida de volta, não foi colocada no lugar exato. É esse breve roubo, esse momento furtivo de falsificação, que constitui o aspecto transpassado da fala mítica’. Uma fala roubada. Mas roubada de onde? De quem? Por quem? Talvez, roubada da espontaneidade das práticas falantes que se instauram por ensaio e erro, entre os agentes sociais, tentando simbolizar os aspectos do real que se apresentam, sempre renovados, diante de nós.

Ora, eis aí uma descrição nada ruim do que faz a televisão: rouba falas (verbais, visuais, gestuais), todas falas ‘naturais’, e as devolve aos falantes. Como se ela mesma, televisão, fosse uma falante – o que aliás ela é, mas isso não vem ao caso. Uns ainda crêem que a TV ‘influencia’ a platéia, como se ela desse ordens de conduta para a platéia, como se fosse urdida, arquitetada, premeditada, num espaço exterior ao da própria linguagem compartilhada entre os falantes. Não é bem isso. Se a TV ‘influencia’, ela influencia exatamente na medida em que precipita o mito, que já estava lá, na fala roubada, pressuposto. Em outras palavras, a TV só influencia porque é o elo que industrializa a confecção do mito e o recoloca na comunidade falante. A TV não manda ninguém fazer o que faz; antes autoriza, como espelho premonitório, que seja feito o que já é feito. Autoriza e legitima práticas de linguagem que se tornam confortáveis e indiscutíveis para a sociedade, pelo efeito da enorme circulação e da constante repetição que ela promove. A TV sintetiza o mito.

E quem controla a TV? Quem é o gerente da usina contemporânea dos mitos? A resposta aponta obrigatoriamente para o poder. Mas o poder não é bem o poder político, tal como ele costuma ser pensado, nem é também o poder de um grupo reduzido de homens sobre o conjunto da sociedade. O poder é algo mais industrial, ou superindustrial, como diria Fernando Haddad. O poder pode ser melhor descrito, hoje, como o mecanismo de tomada de decisões que permitem ao modo de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, a sua reprodução automática. O poder, portanto, é a supremacia do espetáculo – a nova forma do modo de produção capitalista, como descobriu Guy Debord, nos anos 60 – sobre todas as atividades humanas. O poder, enfim, é a gestão do espetáculo pelos seus encarregados que, no entanto, não são seus autores mas seus subordinados.

Os homens é que fazem a língua, por certo, mas não a fazem como querem. Ninguém é ‘autor’ da língua. Os sujeitos sociais não cessam de testar os limites da língua, transgredir suas normas, subverter o sentido dos termos de modo a adequá-los a novas necessidades expressivas. Este processo é inconsciente. O mesmo se pode dizer da gestão dos sujeitos que gerenciam imaginariamente a indústria que sintetiza a videologia – a mitologia da nossa era. A televisão funciona segundo processos inconscientes, tanto da parte dos emissores como da parte dos receptores, embora essas duas categorias sejam meras convenções imaginárias. As ‘novas necessidades expressivas’ só se tornam (relativamente) conscientes quando advém à palavra – mas aí talvez percam a graça e sobretudo a força, quando repetidas incansavelmente no repertório da TV. Os homens fazem a língua? Seria mais adequado dizer: a língua se faz através da fala dos homens. Os homens fazem a língua antes de saber o que dizem. Os homens fazem e consomem a televisão sem saber o que desejam.

É desse lugar das palavras e das significações, renovadas e estabelecidas fora do controle consciente dos agentes sociais, que o mito ‘pesca’ (para não usar o termo ‘rouba’, pleno de conotações morais negativas) as falas que vai instaurar em um outro lugar. Claro que o mito não é o sujeito dessa operação, e sim o seu produto. A apropriação das falas pelo mito, como já alertamos aqui, é feita pelos agentes do poder.

A afirmação parece excessivamente maquiavélica? Nem tanto. O ponto fundamental é que nenhuma estrutura de poder, da mais centralizada à mais democrática, das mais arcaicas às mais modernas, pode se sustentar se não for capaz de produzir algum tipo de engajamento subjetivo daqueles que ela submete, organiza, explora ou protege. A passagem do poder soberano ao poder disciplinar representa um aperfeiçoamento nesses recursos, mas não significa que os poderes soberanos se sustentassem exclusivamente pelo uso da força. Mesmo os monarcas absolutistas contavam, no mínimo, com o referendo divino e a chancela da Igreja, produtora milenar de mitos no Ocidente, para produzir entre os súditos o que La Boétie chamou de servidão voluntária.

Tarefa crítica

A diferença está no tamanho do deslocamento que a significação percorre, desde o lugar de onde foi gestada e roubada até aquele em que se instaura como mito. Em sociedades menos estratificadas, como a Grécia pastoral ou algumas tribos ditas primitivas, o contador de histórias, o poeta, o xamã podem estar muito próximos e partilhar das mesmas necessidades expressivas do conjunto dos outros agentes sociais. Os mitos, por sua vez, seriam muito mais estáveis, transmitidos de geração a geração com pequenas alterações, nessas sociedades que Georg Lukács chamou de ‘fechadas’ nas quais sua função confortadora era contar a história das origens, de modo a dotar de sentido a ordem presente.

Nas sociedades de corte emergente na Europa dos séculos XIII e XIV, os reis chamavam a seu serviço alguns letrados que desempenhavam papel de cronistas: sabiam que não só sua imortalidade como seu prestígio em vida dependiam, mais do que das terras conquistadas e da força de seus exércitos, das lendas que se criariam em torno de seus nomes.

A genialidade do Barthes foi ter percebido a particularidade da relação entre o mito, as necessidades expressivas e o poder, no contexto das sociedades industriais modernas. Voltando à sua proposição: o mito é uma fala ‘roubada’ das falas emergentes – geradas pelas relações horizontais entre os humanos – pelos agentes do poder, que não necessariamente sabem o que estão fazendo. Essa fala é restituída a um outro lugar: o lugar dos códigos estabelecidos e ‘naturalizados’, que contribuem para estabilizar o laço social dotando de consistência imaginária aquela parcela de renúncia exigida de cada sujeito que participa de uma sociedade.

A particularidade da mitologia contemporânea é o seu caráter industrial e inteiramente impessoal. Na modernidade, o engajamento subjetivo que sustenta o poder é cada vez mais consistente e inconsciente. O sujeito, agora, entendido como o sujeito que põe em marcha o processo de reprodução do capital e que põe em marcha, também, as institucionalizações necessárias à reprodução do capital, é o próprio capital, agindo como o que se pode chamar de sujeito automático. O capital é o sujeito que sujeita a todos os outros. Só que este sujeito age a partir de um lugar que é, ao mesmo tempo, todos os lugares e lugar nenhum. Quanto aos indivíduos, se tomados como sujeitos, pode-se dizer deles que, neles, a fala do Outro e o desejo do Outro, isto é, a fala e o desejo que os formata, são, cada vez mais, a fala e o desejo do capital agindo como forças inconscientes. Os indivíduos são sujeitos inconscientes do capital. Num período em que o Estado nacional se enfraquece sob o impacto do mercado globalizado, é o capital quem dirige o processo, acima das nações – que hoje debatem como se integrar, e não mais como liderar. A força militar e econômica da potência única de nossos dias, os Estados Unidos, expressa não a supremacia de uma nacionalidade sobre as demais, mas os desígnios de uma indústria sobre todas as outras e sobre todos os povos: o espetáculo. A tirania da mercadoria se exponencia na tirania da imagem da mercadoria. O capitalismo contemporâneo é um modo de produção de imagens. Aí, o poder político é uma espécie de despachante do modo de produção. Mais do que antes, mas muito mais do que antes. Se, no século XIX, a questão era desmascarar o caráter burguês do Estado que se apresentava como universal, agora, no século XXI, a questão é compreender e decifrar os mecanismos pelos quais toda política, assim como toda religião e toda ciência, toda cultura e toda forma de representação, convergem para a imagem, como partes do modo de produção de imagens, e só circulam e só adquirem existência como imagem. Essa indústria é a produtora das videologias. A tudo o mais ela subordina.

Os textos que apresentamos a seguir tentam dar conta de uma pequena parte da tarefa de tornar consciente o que opera, na sociedade, a partir das forças inconscientes do capital. Esta é uma tarefa crítica e, sobretudo, política.

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Jornalista; psicanalista