Há cinco anos no Ministério Público Federal – mais precisamente na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo – o procurador Sérgio Suiama é um dos principais parceiros das organizações que buscam a garantia e efetivação do direito humano à comunicação. Membro do Grupo de Trabalho de Comunicação Social do MPF, Suiama esteve à frente da ação judicial que acabou por retirar do ar o programa do apresentador João Kleber, à época na Rede TV!. Além disso, o procurador foi decisivo no ingresso do MPF nos debates acerca da TV digital, no qual a ação judicial proposta pelos procuradores do GT de Comunicação Social não teve seu mérito julgado até hoje. Mais recentemente, envolveu-se nos debates sobre a classificação indicativa dos programas de TV e foi o responsável pela celebração do acordo entre a Net e os canais públicos que foram sumariamente retirados da programação digital da operadora de TV por assinatura a cabo.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por ele ao Observatório do Direito à Comunicação.
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É possível fazer uma avaliação favorável da conjuntura dos temas ligados à comunicação?
Sérgio Suiama – Em termos gerais, o monopólio congelou estas questões por décadas. Acho que a iniciativa do governo Lula em pautar a TV pública colocou um debate importante, mas não acredito que a conjuntura esteja completamente favorável. Existem brechas que vamos abrindo e essa questão da TV pública é uma delas, importante para discutirmos a democratização das comunicações e a melhor forma de assegurar o princípio da complementariedade dos sistemas [comercial, público e estatal] que consta na Constituição federal.
O debate sobre a TV pública, por exemplo, está bastante restrito à questão da gestão e do financiamento da emissora. Você acha que as organizações da sociedade civil devem buscar ampliar a discussão para a constituição de um sistema, não apenas de uma emissora?
S.S. – Estive presente no Fórum de TVs Públicas e notei que ainda existe certa confusão, pois sob esse nome ‘TV pública’ se agrupam todos aqueles que não estão na TV comercial, englobando desde as TVs comunitárias, universitárias, legislativas e estatais, ou seja, um grande guarda-chuva que hoje denominamos genericamente de campo público. Meu receio é que no momento adequado não haja essa distinção necessária entre TV estatal e TV pública. Mas é certo que é necessário garantir a participação da sociedade civil nessas discussões que vêm sendo feitas no âmbito dos ministérios.
O fato de as decisões estarem concentradas na Secretaria de Comunicação Social e não no Ministério das Comunicações pode contribuir para que a TV pública seja mesmo independente?
S.S. – Infelizmente, o Ministério das Comunicações se tornou, ou talvez sempre tenha sido, um grande balcão de negócios de lobistas ligados às emissoras comerciais de televisão. Existem todos aqueles contratos irregulares, concessões vencidas, a completa falta de fiscalização em relação às emissoras, a relação promíscua entre parlamentares, donos de emissoras e o Ministério. Portanto, acho que lá [Ministério das Comunicações], infelizmente, não é o local mais apropriado para discutir a questão da TV pública. Não reconheço sua legitimidade neste mérito. Acho que o próprio governo, de certa forma, reconheceu isso ao conceder status de ministro ao Franklin Martins. Isso serve para mostrar que o Estado e o governo não são algo unitário, isso não apenas em relação ao governo Lula, ou ao governo FHC, ou qualquer governo. Existem grupos de interesse que estão mais afinados e existe também uma reunião de grupos em torno de certas idéias.
Sobre a questão das rádios comunitárias: isso está no âmbito do Ministério das Comunicações e também é algo que ele não vem tendo competência nem vontade política para administrar…
S.S. – O MP entrou com uma ação civil pública justamente partindo desta constatação de que o MiniCom e a Anatel são muito eficientes na repressão às rádios comunitárias e se percebe que não há a mesma eficiência com relação às autorizações. Os avisos de habilitação demoram anos. O governo Lula, inclusive em comparação ao governo FHC, foi muito ineficiente em relação a isso. Percebemos não só uma incompetência, mas uma falta de interesse na regularização dessas rádios. Ou seja, vemos que, de fato, o governo privilegia as grandes emissoras em detrimento da comunicação comunitária.
É inevitável falar da TV digital. Como anda essa questão?
S.S. – Esta questão, tanto para nós quanto para os companheiros do movimento social de comunicação, era, de fato, uma oportunidade para conseguirmos democratizar o uso do espectro. Infelizmente, o que vimos foi um governo muito comprometido com a manutenção do latifúndio das freqüências que temos hoje. Não houve interesse em criar novos canais. Claro, eles dirão que criaram aqueles quatro canais, o cultural, o educativo, o da cidadania e o do Executivo, mas sabemos que o sistema poderia abrigar muito mais. Você percebe que, de fato, foi uma opção política por não mexer nesse ‘vespeiro’ da comunicação. Claro que há um poder comercial fortíssimo, um verdadeiro poder paralelo ao Estado, que é o poder dos meios de comunicação, que se sustenta com uma base parlamentar e do medo que o governo tem. Então, esses privilégios dados às grandes emissoras permanecem praticamente intocados.
Quais são as perspectivas para o futuro? Como as organizações da sociedade civil que lutam pelo direito à comunicação podem contar com o MP?
S.S. – O MP funciona como uma espécie de advogado da sociedade. Não defendemos direitos individuais, mas atuamos na defesa dos direitos coletivos. É nessa perspectiva que o MP pode ter muita presença em matéria de comunicação social. Temos uma tradição que vem de 10 anos nessa área. Começamos atacando programas específicos que violavam direitos fundamentais, como os programas policiais. Agora estamos amadurecendo, começando a discutir outras questões que vão além dos casos específicos. Entramos com a ação da TV digital, estamos atuando fortemente em defesa da obrigatoriedade da classificação etária na TV, na questão do merchandising. Estamos acompanhando um procedimento, a partir da representação do ProJor, sobre os deputados que são donos de emissoras. Já conseguimos identificar 10 deputados da Comissão de Comunicação que votaram em seus próprios processos de renovação de concessão. Nós temos uma concepção cada vez mais clara da necessidade de garantir o pluralismo, seja interno às emissoras, seja externo na garantia da diversidade de opiniões no espectro, e da necessidade de democratização, de impedir o oligopólio e o coronelismo eletrônico.
Como as organizações da sociedade civil podem se instrumentalizar nesse mundo do direito ligado ao campo da comunicação?
S.S. – Acho que os movimentos sociais se concentram muito na questão legislativa, partindo da idéia de que o poder legislativo é o único fórum onde se pode conseguir alguma mudança social. Seria interessante, sem abandonar a luta legislativa, tentar concatenar essa luta com outras estratégias políticas, inclusive no âmbito judicial e no âmbito do MP. Como qualquer outro órgão, o MP é formado por pessoas das mais diversas ideologias, mas, por conta desta promiscuidade do Congresso Nacional em relação às emissoras, o MP pode ser um parceiro importante no que diz respeito à promoção de direitos. É claro que não posso falar em nome de todos os colegas, mas boa parte deles está sinceramente engajada numa luta pela promoção de direitos, inclusive em relação à comunicação. O MP tem outros instrumentos, que não necessariamente judiciais. Concretamente, ele pode entrar com uma ação para obrigar o poder público ou a emissora a fazer ou deixar de fazer algo, uma condenação, o pagamento de danos morais, etc., mas também existem outros instrumentos não judiciais, como a recomendação, que é uma espécie de notificação, ou os termos de ajustamento de conduta. O exemplo mais recente disso é acordo que fizemos com a Net para que os canais públicos pudessem voltar ao sistema digital.
Quais ações estão sendo tocadas pelo MP atualmente?
S.S. – Hoje existe um grupo de comunicação social no âmbito da Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão. Já estamos a quase três anos atuando nessas questões envolvendo a comunicação. A questão mais presente que temos enfrentado é uma estratégia de apoio à obrigatoriedade da classificação etária nas TV. Para nós, isso não tem nada a ver com censura, pois já foi comprovado que as emissoras não têm, em termos gerais, nenhuma responsabilidade social. Também expedimos uma recomendação para garantir que os canais 60 e 69 fossem reservados para a implementação dos canais públicos. Fizemos uma recomendação sobre merchandising, para obrigar as emissoras a informar adequadamente o consumidor de que está sendo veiculada uma propaganda. Fizemos também uma oficina regional com os procuradores do Nordeste, para que haja uma atuação mais forte lá em relação aos programas policiais, além da oficina que estamos montando em conjunto com o Intervozes para construir o manual de exigibilidade do direito à comunicação. Diversas iniciativas estão acontecendo simultaneamente.
Sobre publicidade infantil, o MP tem algo em vista?
S.S. – Eu acho lamentável tanto a posição do Conar quanto a posição das emissoras. Qualquer coisa que se tente discutir em matéria de comunicação é taxada imediatamente como censura. Então classificação etária é censura, ombudsman nas emissoras é censura, restrição à publicidade para crianças é censura, restrição para bebidas e cigarros é censura. Então, é muito difícil trabalhar porque não há possibilidade de diálogo. Ou seja, há uma postura reacionária das emissoras, beneficiadas com concessões a ‘preço de banana’ e que simplesmente se recusam a estabelecer qualquer tipo de diálogo social.
E em relação a nossa legislação, o que dizer?
S.S. – O que eu vejo é que a legislação brasileira é completamente anacrônica. Discussões que já são feitas desde a década de 60 em outros países estão muito atrasadas aqui no Brasil. Por exemplo, não temos uma legislação que assegure conselhos sociais compostos pelos cidadãos. O ideal seria conseguir obrigar a União a colocar nos contratos futuros alguma cláusula que obrigasse cada emissora a possuir um conselho, mas esbarramos justamente na falta de legislação. Por outro lado, o Judiciário também tem um limite. Por exemplo, não conseguiríamos assegurar o ‘direito de antena’, como existe em Portugal, no qual os sindicatos, os movimentos sociais e as ONGs podem ocupar um espaço na programação.
Você acha que o movimento pela construção da Conferência Nacional de Comunicação pode ajudar a amadurecer um pouco a constituição de uma nova Lei Geral de Comunicação?
S.S. – Nós esperamos que sim. No entanto, há vários grupos de interesse bastante conflitantes. Há as teles, os radiodifusores, cada um com seu interesse específico, e há todo o campo democrático. Mais importante: como fazer com um Congresso Nacional ainda tão vinculado às emissoras? Uma outra questão é que os movimentos sociais ainda não incorporaram a pauta do direito à comunicação. Ou seja, a pauta ainda está muito restrita às pessoas ligadas ao jornalismo ou às escolas de comunicação. É preciso que os movimentos sociais de maneira geral encampem essa questão. De qualquer forma, é importante que as organizações e os movimentos sociais não desistam, pois há vitórias e a ação contra o João Kleber provou que é possível avançar.
No caso das TVs, a atuação do MP se baseia no fato de que são concessões públicas. E no caso da mídia impressa?
S.S. – Essa é uma questão importante. São regimes jurídicos diferentes, portanto devem ser tratados de forma diferente. No caso da mídia impressa, a liberdade de expressão é maior e não é possível aplicar algumas sanções como faríamos com concessões de TV, como uma cassação, por exemplo. Isso não significa que não tenha que haver responsabilidade. Nesse caso, o meio jurídico mais adequado ainda é o direito de resposta coletivo. Acho que deveríamos usar mais este instrumento como uma forma de garantir o pluralismo nos meios de comunicações impressos. De qualquer forma, nos meios impressos há mais diversidade, pois existe a Veja, mas também existe a Caros Amigos, a Carta Capital etc. Então, acho que o caminho é mesmo a idéia de direito de resposta.
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Do Observatório do Direito à Comunicação