Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O outro Cidadão Kane

‘O trem chegou à meia-noite, com mais de nove horas de atraso, e 20 passageiros desceram dos vagões cobertos de neve. Todos estavam congelados e famintos, mas satisfeitos por terem escapado com vida’, escrevia o San Francisco Examiner. Em outras ocasiões, segundo o jornal, os trens estavam tão atrasados que ‘o passageiro corria o perigo da senilidade’. E, em retorno pelas tarifas exorbitantes, o material da ferrovia era tão velho que as chances de sobrevivência do público eram ‘iguais às de um soldado no campo de batalha’. Quando havia um acidente, pequeno ou grande, os repórteres do Examiner corriam para entrevistar os ‘sobreviventes’.


O San Francisco Examiner era o jornal que William Randolph Hearst tinha recebido de seu pai, o senador George Hearst, um multimilionário que enriquecera com minas de cobre, ouro e prata e era um dos maiores acionistas das mineradoras Anaconda e Homestead. Ele mandou seu filho Willie estudar em Harvard, mas não conseguiu que se formasse. Willie preferia o jornalismo. Admirava Joseph Pulitzer Jr., que tinha comprado um jornal praticamente falido, o New York World, e em dois anos aumentou em dez vezes as vendas e o transformou em pouco tempo no diário mais influente, mais rentável e de maior circulação de Nova York. O diário de Pulitzer, com manchetes chamativas e reportagens incisivas e agressivas, se convertera no defensor dos pobres, dos imigrantes, dos operários, dos oprimidos, dos underdogs – os miseráveis. E no flagelo dos grandes negócios.


Quando, em 1887, com 24 anos, conseguiu que seu pai lhe cedesse o San Francisco Examiner, um diário deficitário e o de menor circulação da cidade, que comprara para fazer propaganda política, Willie adotou Pulitzer e o World como modelos. Contratou jornalistas com salários raramente vistos, renovou os equipamentos e partiu para fazer um jornalismo sensacionalista, exibicionista e populista, com ênfase nas emoções, no inesperado e curioso, com zelo reformista, na defesa do cidadão comum e no ataque aos monopólios, bem escrito e bem ilustrado. Toda edição que não obrigasse o leitor a levantar-se da cadeira e dizer ‘Meu Deus!’, era considerada um fracasso. Com pouca modéstia e talento especial para a autopromoção, tinha como slogan o ‘Monarca dos Diários’. Na política apoiava o Partido Democrata, o mesmo de seu pai.


Começou assim a construção do que foi provavelmente o maior império jornalístico da história, formado por dezenas de jornais e revistas, estúdios de cinema, agências de notícias, e a formação de uma lenda em torno de William Randolph Hearst, um milionário que não se sentia bem entre os ricos; com um talento extraordinário para o jornalismo e para gastar centenas de milhões de dólares da época em objetos de arte e na construção de obras faraônicas. Sua figura enigmática atraiu dezenas de escritores. Provavelmente, ele será mais lembrado no futuro por ter servido de inspiração a Orson Welles a criar o Cidadão Kane, do que por todo seu dinheiro ou pela influência de seu império.


Com Hearst, o Examiner iniciou uma longa série de campanhas. Um de seus alvos foi a Southern Pacific, dona também da Central Pacific, que tinha o monopólio do transporte ferroviário na Califórnia e das conexões com o Leste dos Estados Unidos. As tarifas das passagens e frete eram exorbitantes e o serviço precário, mas nada era feito porque a empresa tinha os políticos no bolso e controlava a maioria dos jornais. Hearst iniciou uma persistente campanha contra a ferrovia, tanto com editoriais como com reportagens, apesar de seu pai ser amigo de um dos principais acionistas. A Southern Pacific tinha usado pouco capital próprio; quase todo o dinheiro investido era do governo, mas alegava não poder pagar esse dinheiro de volta sem levar a empresa à falência. A campanha do Examiner durou anos e serviu para aumentar a sua popularidade e a circulação. Outro alvo foi a companhia de águas, que também abusava de seu monopólio, para cobrar tarifas elevadas. Foi obrigada a reduzir o preço como resultado da campanha.


Hearst queria um jornal acessível até para o mais humilde dos leitores. Ao iniciar sua carreira no Examiner, uma jovem repórter ouviu uma das melhores lições que um jornalista pode receber. Adaptado, o conselho foi o seguinte: ‘Há um operário que entra de madrugada no trabalho. Enquanto aguarda, ele abre o jornal. Pense nele ao escrever uma reportagem. Não escreva uma única linha que ele não possa entender e que ele não vá ler’.


Sobriedade um dia por mês


Ele era tolerante com os excessos de seus melhores jornalistas. Quando um editor quis demitir um repórter por embriaguez, Hearst respondeu: ‘Se ele está sóbrio um dia em cada 30 é tudo que eu preciso’. Dizia-se que o dono era a única pessoa sóbria da redação. Em outra ocasião, o chefe de reportagem quis demitir um repórter, mas este se negou a ir embora. Ao avaliar a situação, Hearst disse que um superior, num caso desses, podia mandar embora um subordinado. O repórter, com sotaque irlandês, disse que havia um problema: ‘Não quero ser demitido’. Hearst levantou os braços, olhou para o executivo: ‘Neste caso, não há nada que possamos fazer’. E o repórter continuou no Examiner.


O estilo do jornal caiu no agrado dos leitores. No primeiro ano, a circulação dobrou e a publicidade aumentou. Mas o déficit disparou por causa dos contínuos investimentos. Hearst queria fazer do Examiner o maior jornal de São Francisco e um excelente negócio, o que conseguiu depois de quatro anos, com ajuda inicial dos investimentos do pai. Vendia 80 mil exemplares numa cidade de 300 mil habitantes.


Em 1895 ele decidiu entrar em Nova York, o mercado jornalístico mais difícil dos Estados Unidos, com 17 diários, e competir com Joseph Pulitzer e o World, seus antigos modelos. Comprou um jornal de Albert Pulitzer, irmão de Joseph, o New York Morning Journal, de baixo preço, baixa circulação e baixa qualidade.


Seguiu o mesmo roteiro que em São Francisco. Procurou, por qualquer preço, os melhores jornalistas que pudesse encontrar. Para não perder tempo, contratou em massa toda a equipe que fazia o Sunday World, o mais rentável jornal de Pulitzer, incluindo o artista que desenhava um suplemento com um garoto de camiseta amarela, extremamente popular entre os leitores, e que levou o garoto com sua camiseta para a edição de domingo do Journal. Irritado, Pulitzer reagiu, ofereceu mais dinheiro e trouxe a equipe de volta. Apenas por 24 horas. Hearst aumentou a oferta e a contratou de novo no dia seguinte O World precisou encontrar outro desenhista e outro garoto com roupa da mesma cor. Foram esses suplementos e a camiseta do garoto que deram aos jornais de Pulitzer e Hearst o nome, depois pejorativo, de ‘imprensa amarela’. Hearst também tirou de Pulitzer seus melhores executivos, entre eles Solomon S. Carvalho, de ascendência judaico-portuguesa. Todos eles ficaram milionários. Para ocupar seu lugar, Pulitzer promoveu outro executivo e ofereceu um jantar em sua homenagem – que foi cancelado às pressas porque ele, também, foi contratado por Hearst.


Defesa dos imigrantes


Como em São Francisco, o jornal de Nova York era graficamente bem apresentado, sensacionalista; defensor das massas, dos sindicatos e dos imigrantes. Iniciou várias campanhas e investiu pesadamente em promoção. Se o World era o jornal dos underdogs, o Journal era o jornal dos under-underdogs. Em pouco tempo, a circulação dobrou para 150 mil exemplares. Pulitzer, desorientado com as iniciativas do jovem impertinente, cortou pela metade o preço de venda do exemplar, mas com escasso impacto na circulação, e aumentou o da publicidade, o que levou alguns de seus anunciantes para o Journal. Para complementar a edição matutina e competir com o jornal vespertino de Pulitzer, Hearst lançou o New York Evening Journal.


Hearst assumiu um grande risco quando, nas eleições de 1896, apoiou o candidato democrata William Jennings Bryan para a Presidência. Bryan defendia a cunhagem de moedas de prata, junto com as de ouro, para aumentar o meio circulante e tirar o país da recessão. Sua campanha eletrizou o país. Extremamente eloquente, Bryan dizia que os Estados Unidos estavam sendo crucificados numa ‘cruz de ouro’ para benefício dos banqueiros. Ele defendia também a taxação da renda e a regulamentação das ferrovias e das grandes corporações, temas caros a Hearst. Tinha suporte no Oeste e no Sul, mas era considerado lunático e irresponsável no resto do país, especialmente em Nova York. Foi massacrado pela imprensa, inclusive os jornais próximos ao Partido Democrata – até Pulitzer lhe retirou o apoio. Só encontrou simpatia na imprensa de Hearst. Quando os anunciantes ameaçaram suspender a publicidade, ele respondia que assim teria mais espaço para defender seu candidato. Bryan perdeu as eleições por uma margem estreita, mas Hearst ganhou prestígio e seus jornais, circulação. Houve dias em que vendiam mais de 1 milhão de exemplares.


O episódio pelo qual Hearst e seus jornais ficaram mais conhecidos foi a guerra para libertar Cuba, uma colônia espanhola que lutava para conseguir a independência. Hearst viu a contenda como uma luta de oprimidos contra opressores e percebeu que o assunto podia vender muito jornal. Com todo o sensacionalismo de que foi capaz, ele deu cobertura jornalística e apoio material aos rebeldes, ocasionalmente com ajuda dos diplomatas americanos em Havana, e contribuiu para o contrabando de armas e suprimentos.


Ficou famosa a frase apócrifa de Hearst quando um desenhista enviado a Cuba para fazer ilustrações quis voltar a Nova York porque não havia guerra. Ele respondeu: ‘Providencie os desenhos, eu providenciarei a guerra’.


Os dois lados praticaram atos de terror para dominar o adversário. Hearst deu grande destaque aos campos de concentração criados pelos espanhóis para confinar as populações civis, ocasionando um elevado número de mortos. Quando o cruzador Maine explodiu na baía de Havana, os jornais de Hearst, sem aguardar as conclusões do inquérito – a versão atual é que a explosão foi provavelmente causada por problemas de combustão interna –, apontaram os espanhóis como responsáveis e incitaram o Congresso e o presidente a declarar guerra à Espanha.


Foram destacados dezenas de correspondentes, alguns dos quais participaram como jornalistas e como combatentes. Os Estados Unidos ganharam facilmente a guerra. Tomaram Cuba, Porto Rico e as Filipinas. Neste país, nos anos seguintes, os Estados Unidos usaram a mesma tática espanhola de campos de concentração, com os mesmos resultados. Para os olhos de Washington, os antigos heróis da luta da independência contra a Espanha se transformaram em bandidos rebeldes quando quiseram ser, também, independentes dos Estados Unidos. Porto Rico nunca foi independente e Cuba, depois de tentativas de anexação, se transformou durante décadas numa espécie de protetorado.


Hearst difundiu a percepção de ter levado os Estados Unidos à guerra por meio de seus jornais. Gastara milhões de dólares, proporcionados pelas minas de ouro e prata. Mas, como tinha calculado, ele se consolidou como a maior força jornalística de Nova York e em pouco tempo seria também a maior do país. Pulitzer reconheceu as qualidades de seu jovem rival. Disse que ele tinha ‘talento e gênio além de qualquer dúvida, talento não só para as notícias e reportagens como também gênio sem paralelo na autopromoção de seus atos’.


Carreira política


Consciente de seu poder e de sua popularidade entre as pessoas de origem humilde, decidiu entrar na política. Foi eleito deputado e, depois de brigar com a corrupta máquina do Partido Democrata de Nova York, conhecida como Tammany Hall, Hearst fundou um novo partido e, para desespero dos conservadores, em 1905 se lançou candidato a prefeito da cidade. Aplicou na campanha os mesmos métodos e a mesma imaginação com que promovia seus jornais. No dia da eleição, os fiscais de Hearst foram agredidos, muitas urnas foram parar no rio Hudson e outras extraviadas. É quase certo que ele ganhou a eleição, mas, pelo resultado oficial, perdeu por 3,5 mil votos num total de 600 mil Os relatos da época, mesmo dos jornais concorrentes, são unânimes em dizer que os votos foram manipulados. Mas o resultado trouxe alívio à alta sociedade novaiorquina, temerosa do radicalismo do traidor de sua classe. Hearst foi de novo às urnas, ao candidatar-se a governador, contra a ‘cobiça da plutocracia’, defendendo a jornada de oito horas, tarifas ferroviárias menores, eleições diretas para o Senado, controle dos monopólios, pensões para os professores primários. Nova derrota, por 58 mil votos de quase 1,5 milhão. E, numa tentativa sem nenhuma possibilidade, aspirou à Presidência da República. Finalmente, desistiu da vida política.


Superando o fracasso eleitoral, ele lançou jornais por todo o país, fundou revistas, agências de notícias, produtoras de cinema. Transformou-se num dos homens mais ricos dos Estados Unidos. Pessoalmente, era tímido e educado, de reações imprevisíveis, com uma compulsão para comprar. Foi um acumulador, mais do que um colecionador, de obras e objetos de arte. Comprava continuamente e sem saber o que iria fazer depois. Chegou a adquirir um claustro do século X na província de Segóvia, na Espanha. Foi desmontado pedra a pedra e embalado em 10,7 mil caixas de madeira; para transportá-lo, foi construído um ramal de 30 quilômetros até a ferrovia principal. Não satisfeito com o claustro, anos depois comprou o mosteiro do século XII de Santa María de Ovila, perto de Siguenza, também na Espanha. Foi desmontado, cada pedra marcada e, apesar da revolta dos aldeões locais, transportado por mulas e bois até uma ferrovia de bitola estreita e depois até o porto onde onze navios levaram a carga a São Francisco.


O claustro foi reconstruído na Flórida, em Miami Beach, e serve de atração aos turistas. O mosteiro de Santa María de Ovila, que fora um dos orgulhos dos monges da ordem cisterciense, é hoje um amontoado de pedras esquecidas em algum lugar da Califórnia.


Importar claustros e mosteiros não foi a maior extravagância arquitetônica de Hearst, feito reservado à construção do castelo de San Simeón, numa área de 160 km2 na Califórnia, entre Los Angeles e São Francisco, que demorou várias décadas e custou dezenas de milhões de dólares. Foi inspirado inicialmente na arquitetura renascentista do Sul da Espanha, mas foram tantas as ampliações e modificações, feitas ao sabor de suas ideias, sonhos, lembranças de castelos e catedrais que tinha visto na Europa, que a obra final é um mosaico, um pastiche de estilos arquitetônicos acumulados ao longo dos anos, que revela a complexa personalidade de seu construtor. Por doação de seus herdeiros, o castelo de San Simeón, conhecido como Hearst Castle, hoje pertence ao Patrimônio Histórico (U. S. National Historic Landmark).


Defesa do isolacionismo


Durante a I Guerra, Hearst, isolacionista convicto, se opôs à entrada dos Estados Unidos no conflito e fez um grande esforço, com um elevado custo financeiro, para publicar informações dos dois lados da contenda. Seu isolacionismo o levou a questionar o esforço do Ocidente para derrubar o incipiente regime bolchevique na Rússia: ‘O povo russo se livrou do jugo dos czares e da nobreza corrupta e estabeleceu uma democracia – não perfeita, mas uma forma de governo democrático que pode evoluir dia a dia para uma democracia melhor’. Também protestou contra o envio de ‘rapazes americanos às neves da Sibéria (,,,) para restabelecer uma autocracia dos czares despóticos, de nobres corruptos e sem consciência e de cossacos cruéis’.


Mas, com o tempo, Hearst foi ficando mais conservador, segundo um biógrafo, porque tinha mais para conservar. Passou a antagonizar os sindicatos e ficou preocupado com o espantalho do comunismo e com o ‘perigo amarelo’ representado pelo Japão. Ficou cada vez mais isolacionista. O que não impediu que, dono de um enorme rancho no México, o Babicora, pregasse a intervenção dos Estados Unidos para proteger os investimentos dos cidadãos americanos nesse país. Quando as tropas dos Estados Unidos desembarcaram no porto mexicano de Veracruz, em 1910, ele atacou furiosamente o presidente Wilson, por achar a medida muito tímida e insuficiente. Em outra ocasião, seus jornais divulgaram com estrondo documentos revelando que havia um complô contra os Estados Unidos ao sul do Rio Grande envolvendo latinos, japoneses e comunistas e que o governo mexicano havia subornado editores de jornais, religiosos e quatro senadores americanos.


Embora afastado pessoalmente da política, a ele é atribuída, em boa parte, a eleição de Franklin Roosevelt à Presidência dos Estados Unidos, em 1932. Inicialmente, Hearst lançou o nome do presidente da Câmara, John Nance Garner, que foi pego de surpresa, para disputar a indicação como candidato do Partido Democrata, e conseguiu para ele mais de 100 votos nas eleições primárias. Roosevelt precisava desses votos no colégio eleitoral para derrotar Al Smith; se não os conseguisse imediatamente era quase certo que seus eleitores o abandonariam. Hearst acenou com os votos de Garner caso Roosevelt se comprometesse com uma política de isolacionismo na área internacional. Contra todas suas convicções, Roosevelt concordou e fez um discurso criticando a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações. Hearst não teve nenhum problema em convencer Garner a repassar seus votos e entrou na chapa de Roosevelt como candidato a vice-presidente.


Mas ao ser eleito, o novo presidente e o New Deal, seu plano de recuperação econômica, sofreram ataques virulentos da imprensa de Hearst. Isto chega a ser surpreendente. Quando Herbert Hoover ainda era presidente, Hearst sugeriu, em cadeia de rádio e em todos seus jornais, fazer um enorme projeto de obras públicas no valor de US$ 5 bilhões. Disse que era essa ‘a ocasião para aumentar a dívida nacional e aumentar os gastos do governo em obras públicas para criar empregos e dessa maneira aumentar a prosperidade. Depois, com a prosperidade, pagar a dívida’. Um programa semelhante ao que Roosevelt aplicaria anos depois. Por um tempo, admirou Mussolini e o padre Coughlin, de tendência fascista.


Jornalismo popular


Ele sempre se considerou, acima de tudo, um jornalista. Mas seu faro pelo jornalismo popular começou a falhar. Não percebeu, por exemplo, a importância dos jornais em formato tabloide, achando que eram um modismo. Quando acordou, um concorrente, o New York Daily News já estava com mais de 750 mil exemplares, ultrapassando um de seus jornais, o New York American, e ameaçando o Journal. O lançamento do tabloide lembra precisamente as batalhas, no fim do século 19, do recém-chegado Hearst para enfrentar um Pulitzer já consolidado. Como contra-ataque ao Daily News, ele lançou o Mirror, que não conseguiu igualar o concorrente nem em qualidade, nem em circulação. Hoje não existe em Nova York nenhum dos jornais de Hearst, mas o Daily News continua circulando. Outro jornal que cresceu de maneira lenta e segura foi The New York Times, que adotou um estilo totalmente diferente de jornalismo.


Os gastos extravagantes, de US$ 15 milhões por mês e a queda da receita de publicidade de US$ 113 milhões para US$ 40 milhões – a circulação pouco sofreu – durante a depressão dos anos 1930 levaram as empresas de Hearst à beira da falência. A dívida subiu a US$ 126 milhões. Cada vez era mais difícil atacar os banqueiros dos quais dependia para garantir a sobrevivência de seu império. Um interventor indicado pelos credores passou a dirigir os negócios do grupo. Alguns jornais, para desespero do magnata, assim como quase toda as coleções de obras de arte, tiveram que ser vendidos. A prosperidade voltou durante a II Guerra, quando os jornais tiveram dificuldades em atender a procura de leitores e anunciantes.


Quando Hearst morreu, em 1951, aos 88 anos, já era quase uma lenda. Poucos jornalistas ou donos de jornal ficaram tão famosos na história da imprensa. Sua vida foi objeto de mais de uma dúzia de biografias, a primeira das quais data de 1928. Ele não teve interesse em lê-la. ‘Se não contar a verdade vou ficar furioso e se contar a verdade vou ficar furioso.’ Mas a figura de Hearst no imaginário popular deve-se em grande parte a obras de ficção divulgadas quando ainda vivia. Aldous Huxley, no romance After Many a Summer Dies the Swan, retrata um velho milionário americano, dono de um castelo na Califórnia, rodeado de objetos de arte que não consegue apreciar e que, com medo de morrer, monta um laboratório cujos técnicos tentam prolongar a vida do patrão. Foi uma caricatura dos seus piores defeitos.


Semelhanças e diferenças


Para milhões de pessoas a imagem de William Randolph Hearst ainda se confunde com a de Charles Foster Kane, o personagem de Cidadão Kane, que é, para muitos cinéfilos, o melhor filme da história do cinema, interpretado e dirigido por Orson Welles. Aparentemente, há semelhanças demais entre o roteiro de Cidadão Kane e o livro Imperial Hearst, de Ferdinand Lundberg, para ser coincidência. Kane é um rico herdeiro, dono de jornais e colecionador de arte, de grande talento e ambição, que fracassa em suas tentativas na política e, depois de perder a mulher, casa com uma cantora lírica de pouco talento, Susan Alexander, e tenta transformá-la numa estrela. Ela, desesperada, se refugia na bebida. Ele termina seus dias na solidão do enorme castelo que construiu, Xanadu. A figura de Kane, na magistral interpretação de Welles, lembra imediatamente a de Hearst e inspira mais simpatia e, no fim, mais compaixão, do que repulsa. Mas a cantora lírica do filme nada tem a ver com Marion Davies, a estrela de cinema amante de Hearst na vida real, de reconhecido talento; as afetuosas relações entre os dois foram o oposto das mostradas no filme. Se foi a intenção de Orson Welles dizer que Kane não era Hearst porque Susan não era Marion, poucos acreditaram.


Para várias gerações, o nome de Hearst foi sinônimo de jornalismo escandaloso, oportunista e sem escrúpulos, que baixou os padrões éticos da imprensa, distorcendo os fatos e inventando, mais interessado em deformar do que em informar, com o único objetivo de ganhar dinheiro. Poucos jornalistas ou donos de jornal ficaram tão famosos na história da imprensa. Esta percepção está sendo mudada. Hearst ainda exerce um irresistível fascínio sobre os escritores.


A biografia mais famosa, Citizen Hearst, de W.A. Swanberg, publicada em 1961, vencedora do prêmio Pulitzer, é sumamente crítica, embora deixe entrever uma mal escondida simpatia, sobretudo pelo personagem dos primeiros anos. Recentemente, houve um esforço revisionista que vê a obra de Hearst com outros olhos. Destaca seu extraordinário talento jornalístico, sua generosidade e genuína simpatia pelos mais fracos e coloca em perspectiva a imprensa da época. Uma obra de algum valor é William Randolph Hearst: The Early Years 1863-1910, de Ben Procter, de 1998. Muito mais importante é The Chief: The Life of William Randolph Hearst, de David Nassaw, de 2000. O título é uma referência ao apelido de Hearst dentro de sua organização. Os recados que seu secretário mandava diariamente aos executivos começavam assim: ‘The Chief says:’ (O Chefe diz:). A obra mais recente, e que me levou a escrever estas linhas, é The Uncrowned King: The Sensacional Rise of William Randolph Hearst, de Kenneth Whyte, publicada neste ano.


Whyte preparou um alentado volume de 546 páginas para narrar em detalhes minuciosos a entrada e consolidação de Hearst no mercado de Nova York e principalmente sua competição com Pulitzer. A epopeia começa em 1895, com a compra do New York Morning Journal, e termina em 1898, depois da campanha de Cuba, com seu predomínio sobre a concorrência. Mostra um Hearst sob uma luz muito favorável. O autor pesquisou exaustivamente e escreve que, com frequência, o sensacionalismo atribuído com exclusividade a Hearst era comum a todos os jornais; afirma que ele não provocou a guerra contra a Espanha, embora reconheça com relutância que ele ajudou a criar um ambiente que levou à declaração de guerra. Afirma também que o célebre telegrama ‘Providencie os desenhos, eu providenciarei a guerra’ nunca foi transmitido, e mostra uma excessiva preocupação em contradizer o livro de Swanberg até em questões de pouca relevância.


Revisionismo biográfico


A principal base para a lenda negra em torno de Hearst, segundo Whyte, foi um famoso perfil escrito por Lincoln Steffens, que o entrevistou cinco vezes para The American Magazine, em 1906. Pelo resumo de Whyte, Steffens descreve Hearst como um homem inteligente e ocasionalmente com boas intenções, mas perigosamente rude e agressivo, com poder e dinheiro, mas sem amigos, lar ou escrúpulos, manipulado por seus empregados, vivendo nas sombras e psicologicamente doente, obsessionado com histórias de assassinatos e vícios. Realmente, embora o resumo que Whyte faz do artigo seja demasiado caricaturesco – Steffens foi mais equilibrado em seu perfil do que Whyte admite – e omita que Hearst reconheceu exageros de sensacionalismo em seus jornais, a conclusão final do artigo foi que, a julgar pela maneira de dirigir seus jornais, Hearst seria um homem perigoso se eleito para um cargo público.


Em sua autobiografia, porém, Steffens diz que foi pressionado pelos editores da revista para pintar com tintas mais negras um homem que eles odiavam. Concordavam com sua política, mas detestavam seu estilo. Ele concordou, ‘para manter meu emprego’. Segundo Steffens, Hearst ‘era um grande homem, capaz’, sem ilusões morais, e preocupado com uma sociedade mais democrática.


A tentativa de mudar a imagem de Hearst e de acabar com alguns mitos em torno dele parece oportuna, mas talvez tenha ido demasiado longe. E, apesar desse revisionismo, a imagem de William Randolph Hearst parece indissoluvelmente ligada à de Charles Foster Kane. A ficção predomina sobre a realidade.

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Jornalista