Eis um bom livro. É A Economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo do acionista, de Gustavo Franco, professor da PUC-Rio e ex-presidente do Banco Central. Livro delicioso, provocante e criativo, do começo ao fim. Lembra-me os infindáveis vieses e portas de entrada para leitura de um escritor que levou a literatura brasileira aos píncaros.
Para tanto, Machado teve que vencer a pobreza, a orfandade, a epilepsia, a gagueira, o preconceito étnico, as maldosas insinuações por ter casado com uma branca sendo mulato e ainda a terrível escolha de não ter tido filhos para não transmitir o legado da doença hereditária.
Em todas as universidades onde o signatário ensinou e ainda ensina, sempre procura dar a Machado de Assis o lugar que ele merece, no curso de Letras especialmente, mas também em todos os outros cursos. Foi assim na Universidade de Ijuí (RS) e na Universidade Federal de São Carlos (SP) e é assim na Universidade Estácio de Sá, no Rio. O brasileiro pode entrar para a universidade sem ler Machado de Assis, mas não pode sair dali sem ter lido este, mais que gênio, oxigênio de nossas letras. Infelizmente, é autor pouco entendido e mal ensinado. Já no ensino fundamental e médio os estudantes são ensinados a ignorar ou, mais do que isso, odiar Machado de Assis.
O olho do economista
Lembro o trabalho de uma aluna, que em meus tempos de professor no campus de concentração da Universidade Federal de São Carlos, veio propor-me – ao final do curso, encantada com a leitura de Dom Casmurro – um outro olhar. Não queria repetir ninguém, pois o professor criticava muito o vício universitário de nada afirmar, nada criar, simplesmente repetir ad nauseam outras leituras, sempre segundo alguma bibliografia indicada que, em vez de ajudar, atrapalhava, pois Machado era visto mais pelo conteúdo, sem que fossem sequer comentados seus criativos recursos de estilo. E ela fez um belo trabalho, temperando-o ainda com um capítulo sobre a homeopatia!
Com efeito, José Dias, homeopata, utiliza recursos semelhantes aos do método homeopático, administrando as doses do remédio/veneno a D. Glória e a Bentinho: contrariando a vontade do filho, D. Glória o põe no seminário, com a ajuda de José Dias. Contrariando a vontade da mãe, Bentinho sai do seminário, com a ajuda de José Dias.
São deliciosos paradoxos parecidos com esse que emergem do olhar que Gustavo Franco lança, não sobre algum romance de Machado de Assis, mas sobre algumas das mais de 600 crônicas que ele escreveu, restringindo-se àquelas em que o foco é a economia. Neste particular, a iniciativa de Gustavo Franco é exemplar por vários motivos, mas um em especial: o economista não se traveste de crítico literário. O que temos é um leitor esplendidamente qualificado para realizar a sua leitura com o olho armado do economista.
‘Estabilidade dos valores’
O olhar do escritor é agora contemplado pelo olhar do economista, de que são exemplos as observações feitas por Gustavo Franco ao reler crônica em que o humor de Machado oscila entre rir da sabedoria do acionista ou exaltá-la:
‘Eu supunha que o acionista era uma criatura obediente, pacata, sabendo cinco até seis palavras da língua, e nenhuma negativa, salvo quando uma negativa equivale à afirmativa; por exemplo: – Parece-lhe que temos andado mal? – Não, senhor! – Acha que devemos entregar a prebenda a outros cavalheiros? – Nunca!’
Outro dos méritos de Gustavo Franco está na seleção das crônicas. Em ‘O negócio das debêntures e o habeas corpus’, puro deleite, dá-se o seguinte diálogo:
‘… Como agora ouço muito falarem habeas corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se esses títulos são bons, e se estão caros ou baratos’.
O interlocutor, desapontado, replica que não são títulos e ouve em resposta que o nome, habeas corpus, como debênture, também é estrangeiro. E ouve em resposta:
‘Sim, mas nem por ser estrangeiro, é título; aquele doutor que ali mora defronte é estrangeiro e não é título’.
‘O câmbio e as pombas’ foi publicada em agosto de 1896, quando o câmbio havia se consolidado, desde março daquele ano, em 8 pence por mil réis. Escreve Machado:
‘Não tenho relações diretas com o câmbio; não saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro ponto da terra, que é assaz vasta, e eu, demasiado pequeno. Mas tudo o que compro caro, dizem-me que é culpa do câmbio.’
Diz Franco:
‘O número que assustava o cronista era uma indicação poderosa da irreversibilidade da queda, ou de que o país havia entrado numa nova fase, onde já não se podia mais falar, genérica ou especificamente, na ‘estabilidade dos valores’.’
Os tempos republicanos tinham começado recentemente, havia menos de sete anos. E a economia já decolava aos solavancos!
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século)