Alguns dos pontos desenvolvidos nessa Introdução geral aparecem também em ‘Eleições presidenciais de 2006: Vitória de Lula coloca mídia em questão’, de Venício A. de Lima, publicação eletrônica do Centro de Competencia en Comunicación para América Latina da Fundação Friedrich Ebert, 2007, disponível aqui; o autor agradece a Liziane Guazina – que acreditou no projeto desde o primeiro momento – pelos comentários e sugestões.
Os resultados que deram a vitória ao presidente Lula com 48,6% dos votos válidos no primeiro turno e garantiram sua reeleição, com mais de 60%, no segundo turno das eleições de 2006 não eram previstos e foram, na verdade, considerados improváveis pela quase unanimidade dos principais analistas e colunistas da grande mídia. Além disso, os resultados surpreenderam o principal candidato de oposição, Geraldo Alckmin, que obteve menos votos no segundo do que no primeiro turno.
Ao contrário, por exemplo, das eleições de 1989, quando Lula disputou e perdeu a presidência da República para Fernando Collor de Mello, há um relativo consenso entre jornalistas e pesquisadores, acadêmicos ou não – expresso nos capítulos deste livro –, de que em 2006 o candidato eleito não foi o preferido pelos principais grupos de mídia do país.
Para vários estudiosos, a grave crise política de 2005 e as eleições presidenciais de 2006 marcam uma ruptura na relação histórica entre a grande mídia e a política eleitoral no Brasil. Nas comemorações populares após o segundo turno das eleições, surgiram faixas nas ruas com os dizeres ‘O povo venceu a mídia’, e há avaliações sérias que consideram a grande mídia a principal derrotada no processo eleitoral.
Este A mídia nas eleições de 2006 é uma tentativa de capturar o significado mais amplo das eleições presidenciais. Pretendeu-se não só fazer a análise do papel da mídia no processo eleitoral, mas também registrar os resultados do acompanhamento da cobertura jornalística realizada por diferentes instituições e publicar alguns documentos que marcaram o debate sobre essa cobertura que acabou por se tornar, ela mesma, parte da agenda pública.
Foram reunidos 11 capítulos em torno de três questões fundamentais, cada uma delas formando uma das partes deste livro.
Para responder à primeira questão – Como foi a cobertura jornalística das eleições? –, reunimos na Parte I o trabalho de acompanhamento da mídia impressa e da internet realizado por três instituições independentes de pesquisa: o Observatório Brasileiro de Mídia (OBM/MWG-Brasil), capítulo brasileiro do Media Watch Global; o DOXA, Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e o Centro de Altos Estudos em Publicidade e Marketing (CAEPM) da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP), em três capítulos assinados, respectivamente, por Kjeld Jakobsen; Alessandra Aldé, Gabriel Mendes e Marcus Figueiredo; e Clóvis Barros Filho, Marcelo Coutinho e Vladimir Safatle.
Para responder à segunda questão – Qual o papel da mídia? –, reunimos na Parte II sete capítulos escritos por conceituados jornalistas e pesquisadores, acadêmicos ou não: Antonio Albino Canelas Rubim, Bernardo Kucinski, Luís Nassif, Marcos Coimbra, Paulo Henrique Amorim, Renato Rovai e Sérgio Amadeu da Silveira.
Para responder à terceira questão – O que é necessário fazer para aprimorar o funcionamento da mídia na democracia brasileira? –, publicamos na Parte III o capítulo de Luís Felipe Miguel.
Além das respostas às três questões fundamentais, o livro reúne também cinco anexos. O Anexo 1 reproduz as três matérias de capa publicadas pela revista Carta Capital entre o primeiro e o segundo turno das eleições. O Anexo 2 traz a resposta do diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo à primeira dessas matérias. O Anexo 3 é a carta do repórter Rodrigo Vianna escrita aos seus colegas na intranet da TV Globo, que veio a se tornar pública após o anúncio da não-renovação de seu contrato em dezembro de 2006. Não obtivemos autorização para publicar o Comunicado à Imprensa do diretor de jornalismo da Rede Globo, em São Paulo, que responde à carta de Rodrigo Vianna. Ele, no entanto, está disponível aqui. E o Anexo 4 apresenta duas tabelas construídas a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o resultado das eleições presidenciais no primeiro e no segundo turnos, discriminado por estados da federação.
As respostas à primeira (Parte I) e à segunda (Parte II) questões podem ser agrupadas em torno de alguns pontos principais que sintetizam o conteúdo básico do acompanhamento da cobertura da mídia e de sua análise. O leitor não terá dificuldade em identificar, nos diferentes capítulos, as conclusões, não necessariamente as mais importantes, apresentadas e comentadas a seguir.
1.
Houve desequilíbrio na cobertura jornalística dos candidatos, verificado por instituições independentes de pesquisaApesar de os jornais e revistas observados não terem sido exatamente os mesmos e de existirem pequenas diferenças nas metodologias empregadas, não houve discordância entre os resultados do acompanhamento da cobertura jornalística da mídia impressa nas eleições presidenciais de 2006. Observou-se um desequilíbrio entre a cobertura dos principais candidatos a presidente da República e a do presidente Lula. Nos principais jornais e nas principais revistas semanais de informação, houve um número significativamente superior de matérias negativas sobre o presidente Lula e o candidato Lula como concorrente à reeleição por uma coligação liderada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), em relação ao candidato de oposição Geraldo Alckmin, do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).
Embora presente na análise de vários dos capítulos deste livro, fica faltando o acompanhamento sistemático da mídia eletrônica, sobretudo do rádio e da televisão, que não foi realizado pelo OBM/MWG-Brasil ou pelo DOXA–Iuperj. Por outro lado, o acompanhamento da mídia impressa e da internet realizado por instituições independentes de pesquisa e as denúncias de parte da mídia alternativa e da Carta Capital tornou disponível – ainda durante o processo eleitoral – uma referência para a avaliação da cobertura jornalística das eleições que acabou por se transformar, nas semanas anteriores ao segundo turno, em objeto de importante debate público.
É necessário registrar que a cobertura negativa que a mídia impressa fez do candidato Luís Inácio Lula da Silva e depois do presidente Lula não teve início no período da campanha eleitoral de 2006. Na verdade, pelo menos desde maio de 2005, quando teve início uma grave crise política envolvendo denúncias de corrupção dentro e fora do governo – independentemente da indiscutível necessidade de sua cobertura jornalística e da existência dos fatos –, essa foi a tendência dominante na grande mídia brasileira. [Sobre o papel da mídia na crise política brasileira de 2005, ver Venício A. de Lima, Mídia: Crise política e poder no Brasil (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)]
Durante a campanha eleitoral, a cobertura negativa em relação ao candidato Lula atingiu seu ponto máximo às vésperas da realização do primeiro turno. Um delegado da Polícia Federal (PF) fez, de forma questionável, fotos do dinheiro apreendido com pessoas ligadas ao PT para a compra de um suposto dossiê que incriminaria o PSDB na aquisição fraudulenta de ambulâncias na época em que José Serra, candidato do PSDB a governador de São Paulo, era ministro da Saúde. [No dia 24 de abril de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por unanimidade, pelo arquivamento da representação feita pelo PSDB e pelo DEM (Democratas, ex-PFL – Partido da Frente Liberal) contra a campanha do presidente Lula, por ausência de provas que configurassem a existência de crime eleitoral no episódio da tentativa de compra do dossiê.]
O delegado convocou jornalistas da grande mídia – Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo e Rádio Jovem Pan – para acertar clandestinamente a versão a ser dada na divulgação das fotos. As fotos passaram, então, a dominar o noticiário tanto da mídia impressa como do rádio e da televisão. Para alguns analistas, em detrimento até mesmo de outras notícias relativamente de maior interesse público.
A cumplicidade dos jornalistas com o delegado foi inicialmente revelada em matéria da Agência Carta Maior [cf. Bia Barbosa, ‘Globo silencia diante do crime do vazamento das fotos do dinheiro’ postado em 30 de setembro de 2006 e disponível aqui (acesso em 22 de junho de 2007)]. Em seguida, o comportamento tendencioso da grande mídia provocou a reação da Carta Capital – que havia declarado apoio público à reeleição de Lula – em três matérias de capa consecutivas com a denúncia de uma ‘trama’ que teria provocado a realização do segundo turno das eleições presidenciais (cf. Anexo 1). Essas matérias tiveram grande repercussão, sobretudo em blogs e sites especializados na internet, obrigando parte da grande mídia a dar explicações públicas sobre os fatos ocorridos (cf. Anexo 2).
Além do acompanhamento da mídia impressa, publicamos também na Parte I um estudo sobre as principais ‘comunidades políticas’ do Orkut e o tipo de jornalismo realizado por alguns blogs existentes na internet durante o processo eleitoral de 2006. A pesquisa pioneira foi realizada pelo CAEPM da ESPM-SP e revela que a internet mostrou-se um instrumento eficaz de mobilização de ‘eleitores orgânicos’, isto é, ‘eleitores que votam em um partido ou candidato há várias eleições e que não votarão no candidato ou partido declaradamente opositor’. Além disso, a pesquisa mostra também como o campo do jornalismo político nos blogs continua vinculado ao jornalismo político tradicional.
2.
Prevaleceu uma atitude de hostilidade ao candidato Lula entre os jornalistas da grande mídiaEm diferentes capítulos, o leitor encontrará análises que mostrarão as contradições da cobertura jornalística não só durante o processo eleitoral, mas ao longo do desenvolvimento da crise política iniciada em maio de 2005. Aparentemente, foi se consolidando entre os jornalistas da grande mídia, nesse período, um forte antilulismo, expresso no tipo de cobertura – às vezes, até mesmo partidarizada (cf. Capítulo 2) – realizado. As explicações para o fenômeno incluem desde razões empresariais até o preconceito de classe.
Muitos jornalistas orientaram de forma equivocada seu trabalho em torno de uma ‘pretensa busca de ética na política [que] parece olvidar uma distinção essencial entre a ética da política – isto é, os resultados efetivos das políticas implementadas – e a ética na política, voltada para as modalidades de execução da política’ (cf. Capítulo 8).
Nesse contexto, assume grande relevância documental a carta do repórter Rodrigo Vianna da TV Globo, reproduzida no Anexo 3. Nela, o repórter mostra que nem todos os jornalistas da grande mídia compartilhavam a subcultura do antilulismo. Escrita originalmente para os seus colegas, ela relaciona um conjunto de ocasiões em que se identificou um desequilíbrio deliberado na cobertura política da emissora, desequilíbrio que, apesar de ter sido denunciado aos superiores, não foi corrigido.
Na resposta da Rede Globo ao jornalista as razões da demissão de Rodrigo Vianna não são explicitadas; ele é chamado de mentiroso e desequilibrado e reafirma-se que a Rede Globo fez ‘uma cobertura eleitoral intensa e democrática, com a abertura de espaços em todos os nossos telejornais para todos os partidos, que mais de uma vez reconheceram nossa isenção e a importância do serviço prestado ao público’.
3.
Houve um descolamento entre a opinião dominante na mídia e a opinião da maioria dos eleitoresAo longo da campanha eleitoral, houve um claro descolamento entre a opinião dominante na grande mídia – editoriais e colunistas chamados de ‘formadores de opinião’ – e a opinião da maioria da população. E essa opinião dominante da grande mídia contaminou – como revela o acompanhamento realizado pelas instituições de pesquisa mencionadas – a própria cobertura jornalística das eleições.
Um exemplo: o OBM/MWG-Brasil acompanhou as colunas dos 14 principais colunistas dos jornais de referência nacional. Lula foi o candidato mais citado e também o que recebeu maior número de abordagens negativas desses colunistas. Se somadas as menções negativas feitas ao candidato Lula àquelas feitas a Lula presidente da República, o número chega a ser quase quatro vezes maior do que o número de menções negativas ao candidato Geraldo Alckmin, do PSDB (cf. Capítulo 1).
4.
Os sites e os blogs na internet aumentaram sua importância no debate eleitoralOs Capítulos 3 e 9 tratam diretamente dessa questão, que surge também em outras análises do livro. É importante destacar, no entanto, que, apesar do alto índice de ‘exclusão digital’ ainda existente em nosso país, a internet é utilizada por um segmento que exerce forte influência na formação da opinião política. Pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil relata que…
‘…78% dos que utilizam a internet afirmam utilizar a rede para se comunicar. O que isto significa? Um conjunto de atividades, tais como: enviar e receber e-mails (83%), trocar mensagens instantâneas (49%) e acessar sites de relacionamento (47%), tais como o Orkut, participar de chats (35%). Exatamente aí está a importância da rede na política: ela serviu para a organização das forças, das lideranças de opinião, da articulação de pessoas politicamente ativas dos segmentos médios’ (cf. Capítulo 9).
Os novos formadores de opinião – líderes dos movimentos organizados da sociedade civil – estariam substituindo, em influência, pelo menos parcialmente, os ‘antigos’ formadores de opinião – por exemplo, os colunistas da grande mídia impressa.
Registre-se ainda que a internet, com todas as suas limitações, pode oferecer àqueles que a ela têm acesso uma pluralidade e uma diversidade de informações e pontos de vista que a grande mídia, com seu discurso homogêneo, não oferece. Dessa forma, mesmo o leitor/’consumidor’ tradicional da mídia impressa passa a ter acesso a opiniões e contraditórios que até muito recentemente não estavam disponíveis. Isso, muitas vezes, pode dar oportunidade a esse leitor de verificar, direta ou indiretamente, a veracidade da informação dominante que está recebendo e, portanto, tomar decisões baseadas em fontes mais plurais e diversas.
5.
A mídia entrou na agenda pública de discussãoAo longo do processo eleitoral e em decorrência da própria cobertura desequilibrada dos candidatos que estava sendo realizada, o papel e as responsabilidades da mídia numa democracia liberal entraram na agenda pública de discussão, certamente sem que esta fosse a vontade dos grupos dominantes de mídia.
O reconhecimento da importância da mídia e o questionamento de sua atuação durante as eleições de 2006 alcançaram a periferia dos grandes centros urbanos e se difundiram entre os movimentos sociais e setores organizados da sociedade.
Um exemplo da incrível capilaridade desse debate foi descrito pela jornalista Ana Paula Sousa na Carta Capital n. 416-A [Ana Paula Sousa, ‘Do lado de lá da ponte’. Carta Capital, n. 416-A, 27 out. 2006, p. 16-17]. Ela conta como a ONG Papel Jornal, do Jardim Ângela, região pobre da zona sul de São Paulo, promoveu, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição, a exibição do filme Cidadão Kane (filme de 1941, com roteiro, direção e atuação de Orson Welles). Mais de 20 jovens, com média de idade entre 20 e 23 anos, assistiram ao filme e o debateram. O objetivo era ‘discutir a concentração da informação. O Kane mobilizava os meios de comunicação. O que nós queremos é fazer um paralelo com o Roberto Marinho (já falecido dono das Organizações Globo)’, segundo explicou um dos jovens que lidera a mobilização da comunidade em torno da questão da mídia. A ONG publica um jornalzinho – Becos e Vielas, a voz da periferia – e promove a exibição de um filme a cada 15 dias, dentro do projeto Cine Becos, que conta com financiamento da Prefeitura de São Paulo.
Na periferia de metrópoles como São Paulo, esses eventos são de extrema significação, sobretudo quando se sabe que a mídia tem enorme poder de definição da agenda pública e quando se considera que a mídia brasileira – salvo as exceções de sempre – nunca se caracterizou por discutir ou pautar a si mesma.
6.
A credibilidade da grande mídia foi colocada em questãoOs desequilíbrios identificados na cobertura que a grande mídia realizou dos principais candidatos a presidente da República fizeram que a sua credibilidade, até aqui protegida por blindagem da própria mídia, fosse abertamente colocada em questão por diferentes setores da sociedade. Esse ponto está implícito ou explícito em algumas das análises apresentadas neste livro.
No auge da grave crise política de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos havia avançado a hipótese de que nas ‘democracias de instituições vulneráveis a extorsões’ seria grande o poder da mídia de gerar instabilidade política. Já nos países de democracias estáveis, ao contrário, ‘pouca coisa acontece fora da arena eleitoral, exceto quando o escândalo revela a ruptura, por parte do governo, do pacto constitucional do país’.
Segundo ele, nas democracias estáveis a grande mídia nacional ‘enfrenta concorrentes a nível estadual e local, algo inexistente na América Latina, cuja opinião pública é controlada por dois ou três jornais nacionais em cada país’. Essa concorrência regional e local faria que a grande mídia tivesse ‘reduzidíssima capacidade de afetar a estabilidade institucional’. Dessa forma, restaria a ela ‘uma única carta na tentativa de pautar os governos: sua credibilidade profissional’. Nas democracias de instituições vulneráveis, por outro lado, a questão da credibilidade – dada a ausência de concorrência regional e local – ficaria para segundo plano [cf. ‘Questão de método: ABC da capitulação’. Valor Econômico, 23 jun. 2005, p. A-6].
Independentemente de existir ou não concorrência verdadeira nos níveis regional e local – como na hipótese de Wanderley Guilherme dos Santos –, a cobertura jornalística da campanha eleitoral de 2006 fez que a questão de sua credibilidade emergisse publicamente, embora a ‘desconfiança’ em relação à mídia já houvesse sido detectada por pesquisas de opinião anteriores.
Em março de 2006 – quase um ano depois do início da grave crise política que envolveu o país –, o Instituto GlobeScan realizou para a BBC, a Reuters e o The Media Center, uma pesquisa mundial sobre a credibilidade de várias instituições [cf. ‘BBC/Reuters/Media Center Poll: Trust in the Media’ disponível aqui (acesso em 22 de junho de 2007)]. No Brasil, o trabalho foi realizado pela GfK Indicator e foram ouvidos, por telefone, mil adultos de nove regiões metropolitanas – Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Mais da metade dos entrevistados – ou 55% – declarou que não confiava nas informações obtidas através da mídia. Entre todos os países pesquisados, esse percentual é igual ao da Coréia do Sul e só não é maior do que o obtido na Alemanha (57%).
A pesquisa revelou também que o Brasil é, comparativamente, o país onde os entrevistados estavam mais descontentes com a sua própria mídia, conforme expresso em diferentes indicadores: 80% disseram que a mídia exagera na cobertura das notícias ruins; 64% concordam que raramente encontram na grande mídia as informações que gostariam de obter; 45% não concordam que a cobertura da grande mídia seja acurada; e 44% declaram ter trocado de fonte de informação nos 12 meses anteriores por terem perdido a confiança.
O quadro que emerge da pesquisa da GlobeScan no Brasil, portanto, é de uma grande mídia que exagera na cobertura apenas do que é ruim e na qual a maioria não confia nem encontra o que quer. Além disso, quase a metade dos entrevistados não acredita que ela cubra os fatos corretamente e declara haver mudado de fonte de informação por falta de confiança.
7.
Novas mediações diminuíram o poder de influência direta da grande mídiaAo contrário do que ocorreu em outros países da América Latina, no Brasil a sociedade civil se fortaleceu mesmo durante o período autoritário e sobretudo nas duas últimas décadas. Como desconhecer o enorme crescimento das ONGs e das inúmeras maneiras de organização dos movimentos sociais?
Registrem-se, por exemplo, as diversas formas de participação popular institucionalizadas pela Constituição de 1988. Nos últimos anos – sem que a grande mídia considerasse o fato digno de ser noticiado – foram criados, reestruturados e ampliados vários conselhos e realizadas conferências municipais, estaduais/regionais e nacionais, mobilizando milhares de cidadãos para discutir e propor políticas públicas em setores como Políticas Urbanas, Meio Ambiente, Direitos da Criança e do Adolescente, Segurança Alimentar e Nutricional, Esporte, Políticas para as Mulheres, Direitos Humanos, Saúde, Igualdade Racial, Ciência & Tecnologia e Inovação, Cultura e Saúde do Trabalhador. Tudo isso sem mencionar as diversas experiências de orçamento participativo implantadas em prefeituras municipais pelo país afora.
Embora continue a se valer da grande mídia (sobretudo do rádio e da televisão) como fonte de informação, boa parte da população se utiliza também da mídia alternativa (rádios comunitárias e redes sindicais, por exemplo) e, sobretudo, faz parte – direta ou indiretamente – de uma sociedade civil organizada com lideranças próprias que conquistou condições historicamente inéditas de mediatizar as informações que recebe.
Parcela importante de nossa sociedade civil, praticamente excluída do acesso à mídia impressa, estaria hoje em condições de multiplicar as mediações das mensagens recebidas por intermédio de suas lideranças (que se utilizam intensamente da internet) e de inúmeras formas de organização. Na verdade, a ‘massa’ estaria sendo diluída não pela fragmentação da audiência da grande mídia em segmentos (nichos) de consumo, mas em formas organizadas de cidadania.
A construção hegemônica – e, portanto, também a contra-hegemônica – passa cada vez mais pelas mediações da sociedade civil organizada. A mídia – o mais onipresente e poderoso dos aparelhos privados de hegemonia – sofre cada vez mais as mediações das organizações da sociedade civil.
O que isso significa?
Desde a década de 1940 sabe-se da existência das lideranças intermediárias – os líderes de opinião –, que deram origem à teoria do two-step-flow da comunicação, articulada por Paul Lazarsfeld. Na medida em que aumenta o feixe de relações sociais ao qual o cidadão comum está interligado, diminui o poder de influência que a grande mídia tem de agir diretamente sobre a sua audiência (ouvintes, telespectadores e leitores) e se fortalece a mediação exercida pelas lideranças intermediárias. Passam, portanto, a existir cada vez mais mediações entre o conteúdo veiculado pela grande mídia e a forma de seu ‘consumo’ pela maioria da população.
Não se pode ignorar também que à crescente organização da sociedade civil corresponde uma melhoria efetiva da qualidade de vida dos segmentos mais pobres da população. Houve uma importante mudança para melhor nos padrões de escolaridade. Uma pesquisa do Instituto Ipsos, divulgada no dia 22 de março de 2007 [cf. ‘Mais dinheiro no bolso dos brasileiros’ disponível aqui (acesso em 22 de junho de 2007)] – que não recebeu, da grande mídia, a importância devida – também revela que, de 2005 para 2006, pelos critérios de poder de compra e posse de bens, o número de brasileiros considerados de baixa renda diminuiu de 92,9 milhões para 84,8 milhões.
A pesquisa atribui as mudanças ao aumento da massa salarial, ao controle da inflação e ao crescimento do crédito. Proporcionalmente à população inteira, a redução foi de 51% para 46%. A pobreza e a miséria diminuíram sobretudo no Nordeste, exatamente a região mais pobre do país, onde vive cerca de um quarto da população brasileira [cf. Luiz Weis, ‘A grande notícia que só o Estado deu’, no blog Verbo Solto, Observatório da Imprensa, 28 fev. 2007. Disponível aqui]. O Capítulo 8 também traz dados comparativos sobre a situação econômica da população brasileira.
É de se supor, portanto, que todos esses fatores, combinados, tenham levado ao fortalecimento de uma consciência cidadã em parcela importante dos eleitores brasileiros. A análise detalhada da evolução das intenções de voto feita no Capítulo 10 não deixa dúvida de que os eleitores – cuja estrutura etária também se alterou profundamente nos últimos 20 anos – não se contentam mais apenas com as poucas fontes oligopolistas tradicionais de informação, mas buscam – e até mesmo criam – fontes alternativas, resistem e se recusam a seguir a opinião da grande mídia e de seus colunistas.
Qual o caminho a seguir?
O processo eleitoral brasileiro de 2006 será lembrado e estudado, entre outras características, por ter sido aquele em que houve forte desequilíbrio na cobertura jornalística dos principais candidatos a presidência da República, verificado por instituições independentes de pesquisa; por haver prevalecido uma atitude de hostilidade ao candidato Lula entre os jornalistas da grande mídia; por um descolamento entre a opinião dominante na mídia e a opinião da maioria dos eleitores; pelo sensível aumento da importância de sites e blogs no debate eleitoral; pela entrada da mídia na agenda pública de discussão; pela colocação da credibilidade da grande mídia em questão e pela crescente organização da sociedade civil, fenômeno que tem provocado a emergência de uma série de novas mediações que diminuíram o poder de influência direta da grande mídia sobre boa parte dos eleitores.
A questão fundamental que fica para ser respondida é: o que fazer para avançar nas relações entre a mídia e o processo eleitoral? Como tornar essa relação mais equilibrada e democrática?
É a essa pergunta que se dirige o Capítulo 11. Nele, são descritos quatro modelos normativos de organização da mídia: o liberal-pluralista, o leninista, o de esfera pública e o democrata radical. Depois de explicar cada um desses modelos e assumindo que o modelo da democracia radical ‘é o mais promissor para a compreensão do papel que os meios de comunicação exercem numa sociedade democrática’, o autor discute um conjunto de medidas cuja implantação produziria ‘um avanço muitíssimo significativo em relação ao que temos hoje e uma aproximação à realização efetiva da democracia’. Essas medidas se referem à regulação do conteúdo, à desconcentração da capacidade de produzir informação, à dissociação entre a possibilidade de difundir discursos e o controle do poder econômico, ao controle da publicidade comercial, à geração de um setor forte e independente de radiodifusão pública e à redução da distância entre produtores e consumidores de informação, com o apoio a canais societários de comunicação.
Acreditamos assim que este livro não só cumpre a tarefa da análise e da documentação de alguns momentos decisivos da relação da mídia com o processo eleitoral de 2006, mas busca também contribuir no encaminhamento de possíveis soluções para se avançar democraticamente nesta relação.
Resta registrar que uma coletânea de textos como A mídia nas eleições de 2006 é resultado de um trabalho coletivo que depende da colaboração de muitos. Foi exatamente isso que aconteceu com os jornalistas e pesquisadores envolvidos neste livro. Cada um teve de acreditar no projeto e julgar que ele valeria a pena ser desenvolvido, nem sempre dentro de prazos ideais. A Editora Fundação Perseu Abramo – através de seu coordenador editorial Flamarion Maués – e os 16 autores apostaram que era necessário discutir os diferentes aspectos das relações entre a grande mídia e as eleições presidenciais de 2006. E foi por isso que o livro pôde ser realizado.
Nossa esperança é de que este A mídia nas eleições de 2006 ajude a promover o debate plural e democrático sobre o papel da mídia na cobertura das campanhas eleitorais. Esse debate é fundamental para o desenvolvimento e o fortalecimento permanente da democracia brasileira. [Brasília, abril de 2007.]