No dia 26 de novembro de 2002, o presidente Lula convidou Frei Betto para o cargo de assessor especial da Presidência da República para, junto com o empresário Oded Grajew, fazer a mobilização social do projeto Fome Zero. A edição de 21 de dezembro de 2004 do Diário Oficial formalizava a demissão de Frei Betto.
Por que ele não ficou no governo Lula? As respostas não são poucas, pois exerceu ofício amplo, profundo e cheio de segredos e de sutis complexidades. Apesar de brincar que era ‘ministro’ de Lula, mas ‘ministro da Eucaristia’, Frei Betto partilhou, como poucos, não apenas o dia-a-dia do presidente vitorioso mas, durante mais tempo, os anos que marcaram a ascensão do operário de São Bernardo do Campo (SP) à Presidência da República – incluindo as horas amargas da prisão de madrugada, quando Frei Betto, na casa do líder metalúrgico, ampara a família do pai trabalhador que vai preso, não por corrupção, mas por mobilizar os trabalhadores em busca de mudanças.
Não somos ainda uma nação de leitores. Mas, quem tem o costume e o gosto de ler, e não se satisfez com a versão que Frei Betto deu em A mosca azul: reflexão sobre o poder, lançado pela mesma editora em 2006, tem agora a oportunidade de ler uma narrativa bem mais ousada em Calendário do poder.
Como a mídia está destacando o livro como se o governo Lula fosse o epicentro dessas narrativas, enfatizando suas conotações eminentemente políticas, ouso fazer outros apontamentos. Afinal, não se pode ler, por exemplo, O Príncipe, de Maquiavel, de olho em Lourenço de Médicis, a quem o livro é dedicado.
Maquiavel destaca cinco qualidades do soberano: ‘clemência, benevolência, humanidade, retidão e religiosidade’. Certamente Lourenço não tinha esses atributos, mas a obra perenizou-se justamente por não se circunscrever apenas ao poder local, embora de todo modo valha também para os livros políticos o que Tolstói aconselhou aos escritores: ‘Se queres ser universal, canta a tua aldeia’.
O que os comentaristas ignoram
No dia 7 de setembro de 2003, Frei Betto estava na Alemanha, hospedado numa abadia de mais de mil anos. Dos 180 monges, 80 estavam trabalhando em países pobres. Além de uma editora e mais de 20 oficinas, aquela abadia conta com uma biblioteca de 200 mil volumes.
Adolescentes com idades que variam de 10 a 19 anos fazem ali o ensino médio, pagando 30 euros por mês, já que 80% dos custos são pagos pelo Estado. A educação é a maior de todas as urgências brasileiras e este exemplo é simplesmente histórico. E não fosse a Igreja, principalmente por meio das ordens religiosas, o Brasil ficaria sem educação até o Marquês de Pombal!
Frei Betto estava ali para falar sobre Teresa d´Ávila. Vieram 200 pessoas de várias partes do mundo. Do Brasil, três apenas. Antecedeu o assessor especial do presidente Lula outra palestrante. Foi Hanna-Barbara Gerl-Falkovitz, professora de Filosofia da Religião e Ciência das Religiões na Universidade Técnica de Dresden. Falou sobre a vida de Edith Stein, mística judia que se tornou monja carmelita na Holanda, mas não escapou da Gestapo: foi assassinada em Auschwitz, em 1942. Num dos processos mais rápidos do Vaticano, o Papa João Paulo II a canonizou em 1988.
Quatro décadas é muito pouco tempo na Roma dos papas. Nelson Rockfeller, voltando de uma reunião de trabalho dos cardeais, presidida pelo papa Paulo VI, com a presença de convidados leigos, perguntado o que achara da experiência, disse:
‘Aqueles cardeais parecem doidos; falamos em plano qüinqüenais e achamos muito tempo, um deles diz, aprovado por todos, diante de uma proposta qualquer , `acho que esta questão é muito importante, mas tem quer ficar para o próximo século´. Pode uma coisa dessas?’.
O papa esfaqueado
Não estávamos em fim de século nenhum. Paulo VI, o primeiro papa a viajar de avião, governou a Igreja de 1963 até morrer, em 1978. Viajou por todos os continentes e foi esfaqueado por um fanático, nas Filipinas. Os místicos também são uma espécie de fanáticos, mas não esfaqueiam ninguém. Originalmente, fanático designou aquele que é inspirado pelos deuses no templo. Em latim, fanum é santuário, templo – lugar sagrado, enfim. E místico, do latim mysticus, é aquele que acredita nos mistérios, que vê nas coisas naturais a presença do sobrenatural, invisível aos outros.
O místico Frei Betto falou sobre a influência de Teresa d´Ávila em sua vida. De como uma santa espanhola do século 16 salvou a vocação religiosa de um frade brasileiro no século 20, destacando também a importância de São João da Cruz nos quatro anos de prisão relatados em Batismo de sangue, transposto para o cinema, atualmente em cartaz.
Comentou também outros momentos decisivos de sua biografia: viu o ex-colega de cela, Frei Tito, já livre em Paris, suicidar-se aos 28 anos, incapaz de se livrar de seu torturador, o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Relatou também o que estava fazendo no governo Lula, principalmente seu trabalho no programa Fome Zero. À noite, Frei Betto foi à igreja e ouviu um recital de músicas sacras medievais. As despesas da viagem foram pagas pelos anfitriões.
Oásis na aridez da política
Estamos na páginas 182 e 183, Frei Betto conclui:
‘Pena ser obrigado a voltar ao Brasil e ao trabalho. Mas a mística não é feita de renúncias? De qualquer modo, recupero o clima de oração e agradeço a Deus esse oásis em meio à aridez da esfera política’.
Cada leitor faz o seu livro, embora todos leiam o mesmo livro. É impossível não agradecer também ao nosso frade-escritor um oásis como este. E Calendário do poder está cheio deles. São os momentos mais bonitos e mais bem escritos. Oásis, como ensina de novo a etimologia, é o lugar onde se bebe. Frei Betto é antes de tudo escritor, embora seja mais conhecido como frade e como homo politicus no sentido pleno do adjetivo, isto é, interessado na organização da polis.
No dia 11 de setembro, o senador Álvaro Dias (PSDB-PR, atualmente) repreende Frei Betto, que, ao voltar ao Brasil, no dia 9 de setembro, dissera no Recife:
‘Dou graças a Deus pela existência do MST. É um escândalo o Brasil não ter feito reforma agrária até hoje. Sem ela o país não tem futuro’.
E ainda lembrou que o MST evita que 4 milhões de famílias se favelizem ao redor das grandes cidades. O senador reclamou da ‘incontinência verbal’ do frade dominicano, pedindo-lhe ‘cautela e comedimento’. O senador omitiu outra coisa que Frei Betto dissera na mesma ocasião, quando falara sobre o Fome Zero a 5 mil mulheres, a convite do Supermercado Bom Preço: ‘O direito à vida está acima do direito à propriedade’.
A frase é de Santo Tomás de Aquino, que, se vivo estivesse, daria ainda mais motivos de irritação ao senador, pois comedimento não teve nenhum, cautela pouca e a incontinência verbal está mais do que provada na abundância de seus escritos.
Lula não era Bin Laden
No dia 8 de setembro de 2004, Frei Betto está na ONU. Na alfândega, a policial disse que era admiradora de Lula enquanto carimbava o passaporte, mas à entrada da ONU o policial abre a maleta do visitante, vê o rosto do presidente na capa do livro Lula, um operário na presidência e chama seu chefe, pois Lula se parece com Osama Bin Laden. Chefe é para isso mesmo, para ter mais discernimento: Frei Betto é liberado de mala e cuia.
Frei Betto conclui Calendário do poder com uma definição muito clara do que para ele é a política: ‘É demasiadamente importante para ficar apenas em mãos de políticos profissionais e se apequenar em conchavos partidários, vaidades eleitoreiras, alianças espúrias’, pois ‘é ela que decide os rumos da humanidade em direção à barbárie ou ao patamar da civilização do amor’.
Calendário do Poder é um memorial imperdível. Sua leitura deveria ser obrigatória para quem quer entender os tempos que atravessamos, com muitos desertos e poucos oásis, mas há quem o queira ler apenas por gosto, para saber como se pode escrever bem, despertar o interesse do leitor linha a linha, sem utilizar o artifício habitual da mídia, que quer a atenção dos leitores com denúncias cada vez mais sórdidas.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br