Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O primeiro de abril

– Maria das Graças vai mal…

Era uma hora da manhã e, pela segunda vez desde a meia-noite, o locutor da Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, interrompia a programação normal para, com voz grave, transmitir a notícia, tão lacônica quanto enigmática.

Os ouvintes que, insones, sintonizaram ao acaso seus aparelhos na emissora àquela hora, por certo, ficaram intrigados. Afinal de contas, quem era a tal Maria das Graças, ilustre desconhecida que padecia assim, em uma chuvosa madrugada de fim de verão carioca? Os sindicalistas, já de sobreaviso e ouvido colado ao rádio, haviam entendido bem o recado. Tratava-se da senha para a deflagração de uma greve de ônibus, bondes, barcas e trens na cidade. A ordem cifrada era para amanhecerem aquele 1o de abril, uma quarta-feira que se anunciava agitada, de braços cruzados. O movimento paredista seria uma demonstração de força e uma resposta dos trabalhadores aos empresários, políticos e militares que, nos últimos tempos, conspiravam para derrubar o presidente da República, João Goulart, o Jango.

Alta madrugada, a chuva prosseguia e as luzes do Palácio Laranjeiras, sede do governo federal no Rio de Janeiro, permaneciam acesas. Brasília, fundada quatro anos antes, ainda era uma espécie de inacabado canteiro de obras, que dividia o centro do poder político com a antiga capital da República. No gabinete principal do palácio, por volta da meia-noite, o som estridente do telefone interrompera a tensa reunião do presidente com seus assessores imediatos. Do outro lado da linha estava o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, sediado em São Paulo. Naquela noite de reuniões intermináveis, Jango e Kruel já haviam se falado ao telefone pelo menos duas outras vezes. A conversa, novamente, foi áspera.

– Presidente, o senhor é capaz de prometer que vai se desligar dos comunistas e decretar medidas concretas a esse respeito? – indagou Kruel, à queima-roupa.

– General, procure compreender, sou um homem político. Não posso deixar de lado as forças populares que me apóiam – respondeu Jango, com a fala carregada, repetindo a mesma argumentação de que lançara mão nos dois telefonemas anteriores.

– Então, presidente, lamento. Mas não posso fazer mais nada – disse Kruel, categórico, desligando o telefone. Havia sido a sua última tentativa.

Poucos minutos depois, as emissoras de rádio e as redações dos jornais do Rio de Janeiro receberam cópias de uma dura proclamação assinada pelo general Kruel. ‘O II Exército, sob o meu comando, coeso e disciplinado, unido em torno de seu chefe, acaba de assumir atitude de grave responsabilidade, com o objetivo de salvar a Pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho’, dizia a nota. Em outro trecho, afirmava: ‘O objetivo será o de romper o cerco do comunismo, que ora compromete e dissolve a autoridade do Governo da República’.

A posição de Kruel, amigo pessoal e compadre de Jango, era considerada até então uma incógnita pelos demais comandos militares. Aquela proclamação logo foi comemorada como o lance decisivo para pôr o governo a pique. O cerco contra o presidente, de fato, começava a se fechar. Desde o dia anterior, 31 de março, tropas do Exército haviam deixado os quartéis de Minas Gerais e marchado em direção ao Rio de Janeiro. Era a Operação Popeye, planejada e executada pelo general Olympio Mourão Filho, comandante da IV Região Militar, sediada em Juiz de Fora. O prosaico nome escolhido para batizar a operação era uma referência de Mourão ao próprio cachimbo, vício e marca registrada que, somados à proeminente careca e à carantonha enfezada, conferiam-lhe mesmo certa semelhança com o célebre personagem de desenho animado.

Tido como um homem bronco e intempestivo pelos seus próprios colegas de farda e de patente, Mourão antecipou-se ao colocar suas tropas na rua, fazendo-o muito antes do previsto, o que surpreendeu os próprios líderes da conspiração contra Goulart. Ainda tentaram persuadi-lo a recuar e aguardar momento mais propício. Mas já era tarde demais. O golpe havia começado. ‘Minas vem aí’ – foi a frase que correu feito fogo em rastilho de pólvora entre os comandos militares no Rio de Janeiro.

De casa, vestido de pijama e roupão de seda vermelho, Mourão passara a madrugada anterior dando ordens e instruções a seus comandados pelo telefone.

‘Posso dizer com orgulho de originalidade: creio ter sido o único homem do mundo que desencadeou uma revolução de pijama’, registraria Mourão em seu diário, publicado em forma de livro catorze anos depois.

No Palácio Guanabara, sede do executivo estadual, o governador Carlos Lacerda, o mais furibundo dos adversários de Jango, havia se preparado para uma possível reação dos fuzileiros navais, que permaneciam fiéis ao presidente. Metralhadora em punho, pistola na cintura, Lacerda varara a noite em teatral estado de alerta, distribuindo lenços azuis e brancos – as cores do estado – aos oficiais que se apresentaram para defendê-lo. Em torno do Palácio Guanabara, que tivera a luz cortada por volta das duas e meia da manhã daquela quarta-feira, sacos de areia e tonéis vazios foram colocados para fazer as vezes de barricada. Os caminhões de lixo, solicitados junto ao serviço de limpeza pública, bloqueavam as ruas que circundavam o prédio com suas caçambas cor-de-cinza e laranja.

Com a ajuda de um gerador, Lacerda mandava mensagens ao país por meio de uma rede de radioamadores. Mais tarde, na única linha telefônica do palácio que por acaso ainda não havia sido cortada, o governador da Guanabara, acuado, mas com sua oratória inflamada de sempre, conseguiria falar para uma cadeia de emissoras de rádio de Minas Gerais:

– O Brasil não quer Caim na presidência da República! Caim, que fizeste de teus irmãos? De teus irmãos que iam ser mortos por teus cúmplices comunistas, de teus irmãos que eram roubados enquanto tu te transformastes no maior latifundiário e ladrão do Brasil? Abaixo João Goulart!

Às três da manhã, vendo o chão sumir sob seus pés, Jango ligou para o QG do IV Exército, sediado em Recife, centro de operações das guarnições de todo o Nordeste. A ligação interurbana era ruim, os chiados dificultavam a conversa, que seguiu entrecortada. Naquele primeiro de abril, considerado o ‘Dia Internacional da Mentira’, o presidente blefava para sondar o espírito do general Justino Alves Bastos:

– General, quero lhe informar que já dominei a situação no centro e no sul do país. E o IV Exército, como está?

– O IV Exército está bem, presidente… – desconversou Justino, reticente.

– Sim, mas ‘bem’ em qual situação? – insistiu Jango, preocupado.

– O IV Exército está em rigorosa prontidão, presidente… – escapou pela tangente, mais uma vez, o general.

– Mas, me diga, homem: está em prontidão contra ou a favor do governo? – perguntou Jango, impaciente, dessa vez com todas as letras.

– Os oficiais do IV Exército estão a favor da legalidade – disse Justino, ainda dissimulado, antes da ligação cair de uma vez por todas.

Mas o recado era claro. Para os militares sublevados, o presidente da República, eleito constitucionalmente, não representava mais a legalidade. Mal desligou o telefone, o general Justino também lançou uma proclamação aos seus comandados e à imprensa, pregando a derrubada de Goulart. Naquele mesmo momento, os generais Cordeiro de Farias e Nelson de Melo, dois dos principais articuladores do movimento militar, seguiam de automóvel, armados até os dentes, de São Paulo para Curitiba, para articular as ações em toda a região Sul, área correspondente ao III Exército. O Rio Grande, terra de Jango, anunciava-se como um dos únicos flancos de resistência a favor do presidente. Por recomendação do cunhado, o deputado federal Leonel Brizola, era justamente para lá que João Goulart planejava fugir, caso se convencesse de que não restavam mais chances de vitória.

Quando o dia enfim amanheceu, o sol encabulado, entre nuvens pesadas, encontrou o Rio de Janeiro respirando um certo ar de cidade-fantasma. A greve, o tempo ruim e as notícias matutinas passadas pelo rádio e pelos jornais não animaram ninguém a sair de casa. O movimento dos sindicalistas, que tencionava parar a cidade em sinal de protesto, na verdade fez das ruas vazias um cenário sob medida para os tanques e comboios militares, que se movimentaram à vontade, sem obstáculos à vista.

À mesa do café, os cariocas liam o Correio da Manhã, que trazia no alto da primeira página um editorial contundente, intitulado ‘Fora!’. A leitura das primeiras linhas era suficiente para apreender o teor explosivo da mensagem: ‘A nação não suporta a permanência do sr. João Goulart à frente do governo. Chegou ao limite a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Só há uma coisa a dizer ao sr. João Goulart: saia’.

Perto de dez e meia da manhã, as tropas que partiram de Minas Gerais por ordem do general Mourão ocuparam a cidade de Três Rios, já no interior fluminense. Os soldados enviados do Rio de Janeiro e de Petrópolis para combatê-las não chegaram a oferecer a mínima resistência. Pelo contrário, os dois lados confraternizaram.

Assim, antes dividido, o I Exército – com a reunião das tropas do Rio de Janeiro e Minas Gerais – seguiu recomposto com canhões, caminhões pesados, metralhadoras, tanques, viaturas, obuses e fuzis, todos em direção à Guanabara, para depor João Goulart.

O presidente sabia que tinha as horas contadas. Por volta do meio-dia, Jango ligou para seu ministro da Guerra, o general Jair Dantas Ribeiro. Enquanto o governo desmoronava, Dantas Ribeiro estava preso a um leito do Hospital dos Servidores do Estado, onde havia sido submetido a uma operação da próstata. Atualizado dos acontecimentos por um rádio ligado sobre a cabeceira da cama, o ministro deu garantias ao presidente de que, com alguns telefonemas, teria totais condições de reverter a situação. Mas, antes, exigia que Goulart fechasse imediatamente o Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT, foco das reivindicações comunistas.

Diante da recusa de Jango, o general pediu exoneração do cargo.

– O senhor está me abandonando, general? – perguntou o presidente, contrafeito.

– Não, não estou. O senhor é que está fazendo sua opção – respondeu o ministro demissionário.

Não havia mais saídas. Jango desligou o telefone e desceu à garagem do palácio.

– Vou sair daqui. Vou para Brasília. Isto aqui está se transformando numa armadilha – avisou o presidente a Raul Riff, seu assessor de imprensa.

No porta-malas de um Aero-Willys preto, sem chapa oficial, Jango acomodou uma mala para ternos, duas valises e uma pilha de pastas e caixas com documentos.

Ordenou depois ao motorista que seguisse para o aeroporto Santos Dumont. De lá, embarcou em um Avro em direção a Brasília. A notícia da saída do presidente da Guanabara foi comemorada pelos militares.

A população, finalmente, saiu às ruas. A sede dos principais sindicatos e a redação do Última Hora, jornal abertamente janguista, foram depredados por bandos em fúria.

A Rádio Nacional e a Mayrink Veiga, até então também controladas por partidários de Jango, eram retiradas do ar. O escritório do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, ISEB, considerado ‘um antro de comunistas’, seria completamente destruído: móveis quebrados, quadros partidos, poltronas retalhadas a faca, livros rasgados, o conteúdo das gavetas esparramado pelo chão. O prédio da União Nacional do Estudantes, a UNE, na praia do Flamengo, ardia em chamas. Faixas, bandeiras vermelhas, panfletos, cartazes, pôsteres, livros, documentos estudantis, tudo virou cinzas.

Enquanto isso, uma chuva de papel picado caía festivamente dos edifícios ao longo da avenida Atlântica. Lençóis brancos eram estendidos nas janelas. Dezenas de carros seguiam em fila, buzinando e conduzindo bandeiras verde-amarelas. O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, que convalescia de uma operação cirúrgica em sua residência, no Posto Seis, em Copacabana, era interrogado pela filha, que queria uma explicação para tudo aquilo:

– É Carnaval, papai?

– Não.

– É Copa do Mundo?

– Também não.

O diálogo seria reproduzido no dia seguinte, na edição do Correio da Manhã, ao final de uma crônica em que Cony também escreveria: ‘Ela – a filha – fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia’.

Uma série de prisões começava a ser efetuada em todo o país. Em Recife, após ser capturado, o militante comunista Gregório Bezerra seria amarrado à traseira de um jipe, arrastado pelas ruas da cidade e depois espancado, em praça pública, por um militar armado com uma barra de ferro. Em todos os estados, casas eram invadidas, entidades de classes ocupadas por soldados. Estudantes armados de paus e pedras entravam em confronto com a polícia e com o Exército. Ao final do dia, seriam sete os mortos. Todos civis. Três no Rio, dois em Minas e dois – pai e filho – em Recife.

Em entrevista à imprensa brasileira, a atriz Brigitte Bardot, símbolo sexual do cinema francês, em férias no Rio de Janeiro, comentaria à imprensa carioca os acontecimentos a que assistira da janela de um apartamento em Copacabana:

– Adorei a revolução de vocês!

Jango não se demoraria mais do que algumas horas em Brasília. Concluíra que era inútil qualquer tentativa de reação. Os assessores notaram que o presidente estava abatido. Parecia mais calvo do que nunca. A Carbonina, remédio de que lançara mão para combater a calvície progressiva, não parecia estar fazendo efeito naqueles dias. O presidente perdia os cabelos, mas tentava não perder o controle dos nervos. Na Granja do Torto, solicitou que seu líder na Câmara, o deputado Tancredo Neves, redigisse uma declaração ao povo. ‘Não recuarei, não me intimidarão’, diria a mensagem, escrita à mão, por falta de datilógrafo.

Enquanto os funcionários esvaziavam gavetas, Jango seguiu novamente para o aeroporto, disposto a tomar um Coronado, da Varig, para Porto Alegre. Tencionara viajar em um vôo comercial, prevenção contra os rumores de que o avião presidencial seria abatido, pelos militares, tão logo levantasse vôo. O receio não era de todo infundado. No ano interior, o tenente-coronel aviador Roberto Hipólito da Costa, comandante da Base Aérea de Fortaleza, procurara pessoalmente o então deputado Armando Falcão, futuro ministro da Justiça do governo Geisel, e apresentara-lhe um plano radical para assassinar João Goulart:

– Não acredito mais em paliativos. Dentro de poucos dias, o Jango virá ao Nordeste, para uma visita à Paraíba, participar de uma reunião com a Liga Camponesa de João Pessoa. Estamos preparando uma manobra para derrubar o avião dele. Levantaremos vôo em Fortaleza no momento oportuno e, com facilidade, poremos abaixo o Viscount da presidência da República, quando ele estiver se aproximando de João Pessoa – disse Hipólito da Costa a Armando Falcão.

O diálogo teve por testemunhas o tenente-coronel Adolfo Roca Dieguez, à época comandante do 23º Batalhão de Caçadores, e o tenente-coronel Hélio Lemos, então comandante do 10º Grupo de Obuses, ambos sediados em Fortaleza. Segundo Falcão, os três foram unânimes em repudiar os planos de Roberto Hipólito da Costa, que saíra constrangido do encontro.

A mesma sombra ameaçadora voltara a se anunciar naquele primeiro de abril, quando Jango tentava embarcar de Brasília à capital gaúcha. O nervosismo aumentou quando a aeronave da Varig apresentou ‘defeito técnico’ e não houve quem conseguisse tirá-la do chão. Após minutos de angústia e de espera, foi preciso embarcar em um avião menor, da FAB, a despeito dos crescentes boatos sobre o possível atentado. Ao sobrevoar a Esplanada dos Ministérios, Jango olhou para baixo. Pela janela, viu caminhões, tanques e soldados do Exército que tomavam conta das largas avenidas de Brasília.

Os militares tornaram-se senhores da situação sem disparar praticamente um único tiro em combate. Mas estavam preparados para o pior. Após contatos estratégicos mantidos pelo comando revolucionário com a embaixada norte-americana no Brasil, os Estados Unidos haviam preparado uma operação ultra-secreta, denominada Brother Sam, que previa apoio militar ao Exército brasileiro em caso de os acontecimentos tomarem outro rumo. Uma esquadra de guerra, liderada pelo porta-aviões Forrestal e secundada por destróieres e petroleiros – além de um submarino sem marcas de identificação –, estava pronta para entrar em ação. Além disso, sete aviões de transporte, oito caças-aéreos e oito aviões-tanque americanos abasteceriam o país com 110 toneladas de armamento e munição.

Mas, apesar da força das armas, ainda era preciso manter as aparências de normalidade constitucional. Às duas horas da manhã do dia 2, o Congresso Nacional reuniu-se em uma tumultuada sessão extraordinária. Em meio a palmas e ruidosos protestos, o senador Auro Moura Andrade, presidente do Congresso, comunicou que Jango deixara Brasília e, portanto, para todos os efeitos, abandonara o governo – o que contrariava frontalmente a letra da Constituição, já que o presidente ainda se encontrava em território nacional:

– Declaro vaga a presidência da República – sentenciou Moura Andrade, que tratou de logo investir no cargo o próximo da linha sucessória, o presidente da Câmara dos Deputados, o paulista Paschoal Ranieri Mazzilli. Em menos de três anos, era a sexta vez que Mazzilli assumia o poder interinamente. Homem de saúde frágil, vítima de anorexia, sofrendo de problemas renais e das seqüelas de uma bronquite mal-curada, passou a ser apelidado pelas más línguas de modess – a marca do famoso absorvente feminino. Descartável, estava sempre na hora certa – e no lugar certo – para evitar derramamento de sangue.

***

Como era noite – já passava das 23 horas do dia 5 de abril – o general Arthur da Costa e Silva dispensou daquela vez seus indefectíveis óculos Ray-ban escuros. O cenho fechado ressaltava ainda mais as sobrancelhas grossas e negras, que contrastavam com o bigodinho fino, aparado quase rente ao lábio. Com cara de poucos amigos, ocupou uma das cabeceiras de uma longa mesa, numa das salas reservadas do sétimo andar do prédio do Ministério da Guerra. Convidou o marechal Juarez Távora, um velho e grisalho revolucionário das décadas de 1920 e 1930, para sentar na cabeceira oposta. Só então ordenou a seu chefe de gabinete, general Sizeno Sarmento, que fizesse entrar os sete governadores – dos estados de Goiás, Guanabara, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo – que há muito lhe aguardavam para uma audiência coletiva.

Apesar da cara amarrada, o general Costa e Silva deliciava-se com a nova situação. Tão logo o movimento de primeiro de abril se mostrara vitorioso, autonomeara-se ministro da Guerra e, não satisfeito, proclamara-se comandante-em-chefe dos Exércitos. Reivindicara o posto na condição de oficial da ativa mais graduado no Rio de Janeiro naquela ocasião. Ranieri Mazzilli, temporariamente na presidência, fazia o papel de mero figurante. Quem dava as cartas, na verdade, era mesmo Costa e Silva, um inveterado jogador de baralho, freqüentador assíduo de corridas de cavalos e consumidor fanático de palavras-cruzadas.

Os governadores em comitiva tinham dois assuntos delicados, mas que consideravam urgentes, a tratar com o general. O primeiro era justamente a sugestão para abreviar-se ao máximo a interinidade de Ranieri Mazzilli. Entre eles, pelo menos três – Carlos Lacerda, da Guanabara; Magalhães Pinto, de Minas Gerais; e Adhemar de Barros, de São Paulo – estavam de olho nas eleições presidenciais previstas para o ano seguinte. Por isso, temiam que Costa e Silva prolongasse aquela situação para ganhar tempo, até encontrar uma forma de se encastelar no poder indefinidamente.

O segundo assunto, imaginavam, era uma espécie de antídoto contra as supostas pretensões ditatoriais de Costa e Silva: traziam no bolso do paletó um nome de consenso, escolhido após uma série de reuniões preliminares. Seria alguém a quem caberia esquentar a cadeira presidencial até o ano seguinte, cumprindo no cargo apenas o tempo equivalente ao que ainda restava do mandato interrompido de Goulart. Um presidente-tampão, em suma.

O governador Carlos Lacerda, cheio de salamaleques, foi um dos primeiros a falar, num diálogo que mais tarde seria minuciosamente reproduzido, com algumas pequenas variações, em livros de memórias escritos pela maioria dos participantes da reunião:

– Ministro, viemos aqui porque entendemos que é necessário normalizar rapidamente a situação. Por unanimidade, trouxemos o nome de um camarada seu, um militar, para ocupar a presidência da República…

Antes que Lacerda terminasse a frase, Costa e Silva o interrompeu, brusco, com a nítida intenção de mostrar a todos quem estava no comando:

– Um momento! Eu não sou ministro. Sou o comandante-em-chefe da revolução. E, por enquanto, o presidente é o sr. Mazzilli. Segundo a Constituição, ele tem pelo menos trinta dias para exercer o cargo. É o tempo necessário para fazer a limpeza da área – disse o general, referindo-se com um eufemismo à lista de cassações que estava sendo elaborada pela cúpula dos comandos militares.

O constrangimento foi evidente. Mesmo assim, Lacerda tentou prosseguir:

– Perfeito, senhor comandante. Mas permita-me dizer que estou falando em nome dos governadores que colaboraram com a revolução. Consideramos que, para o bem do país, este prazo de interinidade deve ser abreviado. E também viemos para transmitir ao senhor o nome do general Humber…

– Alto lá! Ainda não cheguei a esse ponto! – urrou Costa e Silva.

– Mas nós já chegamos, comandante… – replicou o governador da Guanabara.

– Acho muito cedo para falar dessas coisas, além do que o nome de um militar, nessas condições, poderia dividir seriamente o Exército. Aconteceria o mesmo que no início da República, com as escaramuças entre Deodoro e Floriano. É cedo – insistiu o general.

– Mas nós achamos que já está ficando é muito tarde… – disse Lacerda, com um movimento largo de mãos, que foi interpretado pelo general como um gesto de dedo em riste. Isso de levantar a mão e balançar o dedo na cara dos outros ele também sabia fazer, rugiu Costa e Silva. A conversa descambara para um violento bate-boca.

O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, esforçou-se para imprimir um tom conciliador à reunião, que naufragava a olhos vistos:

– Como o entendimento se apresenta difícil, é melhor serenarmos os ânimos. De qualquer modo, preciso voltar a Minas. Aguardarei lá por uma decisão, com as tropas devidamente mobilizadas.

Desconfiado, Costa e Silva detectou supostas segundas intenções na frase final de Magalhães Pinto:

– O senhor pode voltar a Minas… As minhas forças são maiores do que as suas. Fique sabendo que isso não me intimida.

O governador de Goiás, Mauro Borges, cochichou algo ao ouvido de Adhemar de Barros, que em seguida ponderou que era melhor interromperem a reunião naquele ponto e, talvez, prosseguir no dia seguinte. Já era madrugada e todos estavam exaustos. O travesseiro, nessas horas, sempre era um bom conselheiro.

Até então calado, o general Juarez Távora deu um soco violento na mesa, que provocou um susto geral e chamou a atenção de todos:

– Costa, deixa o Lacerda falar!

Lacerda, que estava de cabeça baixa, agastado, rabiscando garatujas em uma folha de papel, apenas levantou os olhos, arregalados por trás das grossas lentes de míope. O general Costa e Silva, contudo, soltou um muxoxo e um sorriso irônico:

– Juarez, você continua o mesmo tenente idealista e desprevenido de 1930…

– Não é bem assim, Costa. Na Revolução de 1930, nós tivemos cerimônia e constrangimento em não querer assumir diretamente o governo. Pensávamos em colocar os civis na frente e manobrá-los de perto. Que ilusão! Em pouco tempo, fomos passados para trás, desarticulados, sem poder fazer nada do que planejávamos. Concordo com a imediata indicação de um militar para a presidência.

Não entendo como governadores de diferentes partidos, todos civis, tenham chegado a esse consenso e nós próprios, militares, não possamos fazer o mesmo.

Lacerda se animou:

– General, por unanimidade, indicamos o nome de um camarada seu. Trata-se do general Humberto de Alencar Castello Branco.

Foi a vez de Costa e Silva dar um murro na mesa.

***

Só no dia seguinte Costa e Silva iria engolir a indicação feita pelos governadores, quando já ficara claro que os demais comandantes militares também apoiavam, abertamente, o nome do general Humberto de Alencar Castello Branco. As entidades empresariais que financiaram a conspiração faziam coro. Queriam o tal general Castello na presidência. Para o grande público, tratava-se de um completo desconhecido. Castello atuara sempre em silêncio, nos bastidores, movendo-se pelas sombras. Construíra habilmente, entre seus pares, a imagem de gênio militar, exímio estrategista, um tanto quanto teimoso, mas empedernido legalista. No jargão militar, era um ‘soldado-profissional’, ou seja, avesso à política e – ainda que extremamente vaidoso – à exposição pública. Agora iria ocupar o posto político mais importante e de maior visibilidade da República.

Mas, afinal, quem era o tal Castello Branco? Na redação do Jornal do Brasil, conta o jornalista Alberto Dines, demorou-se a encontrar uma imagem de arquivo que revelasse aos próprios jornalistas a cara do futuro presidente. A mesma cena se repetiu por centenas de redações país afora. Quando, enfim, por sorte alguém conseguia a tão esperada fotografia daquele que seria o novo chefe da nação, a reação era invariavelmente a mesma: rodinhas se formavam em torno da mesa do editor, logo dispersadas em meio a sorrisos e comentários carregados de malícia.

Quem esperava a imagem de um militar de porte marcial e atlético dava de cara com a foto de um sujeitinho miúdo, cara redonda, meio desengonçado dentro da farda, profundamente feio.

Assim que o nome de Castello Branco começou a circular pela imprensa, os curiosos e bajuladores de plantão afluíram em procissão até a residência do general, um modesto sobrado, o número 394 da rua Nascimento Silva, em Ipanema, Rio de Janeiro. Conta-se que o deputado Jorge Curi, um dos que acorreram até lá, conseguiu acotovelar-se em meio à multidão e chegar até a porta principal.

Deparou-se justamente com o homenzinho baixo e cabeçudo, que julgou ser um dos serviçais do futuro presidente.

– Onde está o dono da casa? Onde está o general?

Muito prazer. Era o próprio.

– Só isso? – foi o comentário que o deputado conseguiu articular para o amigo do lado.

Quando o general Castello Branco apareceu pela primeira vez diante das câmeras, o QG da Bossa Nova, ali na rua Nascimento e Silva, quedou perplexo diante da tevê.

Era ele, o milico que morava ali pertinho, um quase vizinho. Um sujeito calado, de protocolares bons-dias e cerimoniosas boas-noites. Um sujeito completamente anti-bossa-nova. Era ele o novo presidente da República. Por todos os barquinhos, banquinhos, chopes, luares e violões. Como isso era possível?

Era o mistério profundo. Era o queira ou não queira.