Este artigo pode ser lido como um esclarecimento, ou, mais exatamente, como uma nota conceitual. Ele nasce da necessidade de pôr em pratos limpos o que é a instituição da imprensa em nossos dias. Por meio disso, pretende acrescentar mais um pequeno argumento em defesa de que as autoridades governamentais se comuniquem com a sociedade pela imprensa, mais do que pela publicidade.
O que é essa instituição, afinal?
Há poucas semanas, quando escrevi neste Observatório que o governo ganharia mais se acreditasse na imprensa como o fórum preferencial para o debate das idéias [ver ‘O patriotismo do consumo‘], fui contestado por alguns leitores, para quem os jornais não merecem tanto crédito assim.
Talvez eu não tenha sido suficientemente claro. Acreditar na imprensa, nos termos em que escrevi, não significa crer passivamente em tudo o que os veículos publiquem. Significa, isto sim, participar ativamente do que neles é discutido. Significa entender que, fora da imprensa vista como instituição, não existe um fórum democrático para o florescimento de uma opinião pública bem fundamentada e vibrante. Acreditar nela significa ter disposição para dentro dela formular, apoiar e criticar pontos de vista.
É evidente que, sobretudo hoje, na era digital, a instituição da imprensa não se reduz aos meios impressos tradicionais ou às emissoras de maior audiência. Há ramificações aí. Há desdobramentos e sobreposições. A interação entre os cidadãos por meio de pequenos sites ou mesmo dos e-mails, a emergência das múltiplas redes interconectadas produz outro nível de efervescência ao diálogo social. Tanto é assim que veículos da chamada ‘mídia convencional’, cada vez mais, aprendem a se abastecer dessas novas redes para compor seu noticiário e, em outra via, as redes ressignificam o que os primeiros publicam.
Nos dias atuais, a instituição da imprensa adquire mais musculatura e muito mais vasos comunicantes, numa escala virtualmente infinita. Isso apenas a fortalece, ainda que enfraqueça, em termos relativos e transitórios, os veículos tradicionais. Assim, quando se fala da instituição da imprensa fala-se, rigorosamente, desse novo complexo de meios para promover a circulação das informações e das opiniões.
O que distingue a instituição da imprensa de outras formas de comunicação são as raízes que ela finca no direito à informação e na liberdade de expressão. A publicidade não se confunde com isso, pois ela se estrutura como uma forma de comunicação interessada, financiada pelo interesse de convencer consumidores a comprar mercadorias ou a aderir a causas.
A publicidade é uma prática nitidamente comercial, ainda que se beneficie legitimamente da liberdade de expressão. Já a imprensa é uma prática não-comercial, ainda que notícias também possam circular como mercadorias. A primeira fomenta o mercado; a segunda brota da vida política e cultural da sociedade. A primeira desconhece o contraditório; a segunda apenas existe quando há o contraditório. Acreditar na instituição da imprensa, portanto, é acreditar que a comunicação cidadã é a melhor instância para que as teses de interesse comum sejam esclarecidas, contestadas e adotadas pela sociedade.
Os jornais são, em parte, dos seus donos – a imprensa pertence à democracia
Quanto a isso, a pergunta mais freqüente dos defensores de governos é bem direta: o governo tem como entrar nesse debate, no interior da imprensa, sem sofrer restrições? O que muitos temem é que as direções dos veículos direcionem em demasia o fluxo das informações e das opiniões. Imagina-se que, na medida em que jornais e emissoras são dirigidos por interesses privados, o que é um fato, tudo o mais resulta prejudicado, sob a primazia desses mesmos interesses. O diagnóstico, no plano imediato, é correto, mas as conclusões é que são prejudicadas.
A instituição da imprensa é mais larga, mais alta e mais profunda do que o regime de propriedade que pesa sobre a maior parte dos meios de comunicação. A dinâmica da cidadania, para a própria saúde comercial dos bons veículos, fala neles com mais força do que os interesses privados. O ponto que define a clivagem não se encontra no interior das instâncias decisórias, particulares, de cada publicação, mas reside, antes, no dinamismo natural da própria democracia. É isso que explica os deslocamentos ideológicos que cada um dos veículos jornalísticos sofre de tempos em tempos.
Esses veículos são mais permeáveis aos imperativos da democracia do que a própria democracia é permeável aos interesses corporativos, por mais que, em várias ocasiões, estes se insurjam como ameaças. Jornais, revistas e emissoras têm donos privados, mas esses não têm poder absoluto sobre a pauta e sobre o noticiário. Precisam, no mínimo, ‘negociar’ diariamente suas próprias inclinações políticas com a evidência dos fatos. Eles são donos dos veículos, mas não têm como ser donos das notícias.
Com a emergência das redes interconectadas, essa verdade se manifesta com eficácia ainda maior. Hoje, as manipulações têm durabilidade mais breve – e o preço para quem as comete tende a subir. Em contrapartida, as discussões recorrentes e cada vez mais comuns sobre a qualidade do jornalismo, em seus vários níveis, convertem-se em serviço de utilidade pública. Os questionamentos da imprensa, no interior da própria imprensa, ampliam as possibilidades de que ela reflita com mais justiça os clamores da sociedade.
É também por essas razões que tenho insistido: para um governo democrático, não há canal mais adequado para dialogar com a sociedade do que a instituição da imprensa. A publicidade pode até, excepcionalmente, aparecer como um recurso necessário – mas muito, muito excepcionalmente mesmo. Como regra, a comunicação cidadã deveria presidir toda a comunicação de governo.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP