Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Rei Roberto Carlos, de novo

Como se tocada e movida por um feitiço, toda a imprensa brasileira noticia neste dezembro o lançamento do livro Roberto Carlos em detalhes. Vocês leram bem, não há exagero: toda a imprensa brasileira, toda, de norte a sul do país não fala e não deseja falar de outra coisa. Quanta curiosidade nos invade o peito a partir do que lemos nas folhas impressas. Que descobertas e humanidade virão dos detalhes da vida de Roberto Carlos?, ousamos perguntar. Pergunta idiota, responderão os comerciantes, que também fazem parte da humanidade, creiam. É Natal, estúpido, continuam, é tempo do Rei Roberto Carlos, do Rei dos Reis, e do Rei dos Risos, sem dúvida. E por isso, em razão da ternura furiosa dos admiradores do Rei, somos forçados a conceder: essa onipresença é uma vitoriosa ação de marketing da editora, sem dúvida.

Pero não só. Esse homem, esse compositor é talvez o nosso maior fenômeno, musical, digamos assim. Dizemos assim, nesse ‘digamos assim’, porque o Rei Roberto é mais compósito que compositor, porque nele há um composto heterogêneo onde a música não é o mais forte e preponderante elemento. Sim, ele canta e compõe, é claro. Interpreta, corrigem-nos os seus admiradores, numa apropriação arrancada de outros reinos, de Mário Reis a Elis Regina. Bem entendemos essa violência. O Rei como intérprete é uma apropriação imprópria de uma paixão. Sim, quem cantaria ‘detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes pra esquecer’ como ele? O coração freme.

Que coisa extraordinária é esse artista! O quanto ele canta bem o nosso espírito medíocre! Até parece um igual, reconhecemos. Se a nós não é dado o gozo de arte mais humana, ‘se um outro cabeludo aparecer na sua rua, e isso lhe trouxer saudades minhas’, sabem, ‘a culpa é sua’. Isso na voz do Rei é tão inolvidável quanto aqueles drinks de coca e rum em uma noite deserta de tudo, menos do vômito. Inolvidável, ainda que soframos de novo com a sua lembrança. Pero esse extraordinário intérprete talvez deva mais os seus dons de interpretação a reinos menos artísticos, de arte como uma exigência mais alta, compreendam. Ele é o sucesso. Ele é o homem do sucesso.

E a música entrou como uma circunstância, porque nem todos podem jogar futebol, por exemplo. Um sucesso calculado por empresário dos discos, onde ele, o artista, Roberto Carlos, foi sempre o último a ser ouvido. Aliás, nem mesmo precisava ser.

Linguagem de rugidos

Quando uma biografia de Roberto Carlos é lançada em dezembro com o anúncio de que desta vez o livro é de um historiador, uma curiosidade se acende. Então vamos à crítica da Folha de S.Paulo de sábado (2/12):

‘Livro ajuda a entender melhor a obra do Rei

O grande poder de Roberto Carlos é seu carisma. Além de ser excelente cantor e ótimo compositor, existe algo em seu olhar que não consegue disfarçar sua humanidade, sua suavidade, sua candura – mesmo sendo o maior popstar da música brasileira. Ninguém teve tantos hits – seja como cantor ou compositor-, fez tanto sucesso, ficou tanto tempo no inconsciente coletivo do público ou foi tão aceito como Roberto.

Você pode saber disso tudo sem nunca ter tido um disco ou lido uma linha sobre ele. Mas, para efetivamente entender isso tudo, há agora o livro de Paulo Cesar de Araújo, ‘Roberto Carlos em Detalhes’’.

O que é isto? Uma crítica?! Mire o leitor. Se em lugar de Roberto Carlos você puser Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque ou João Gilberto, ainda assim as linhas ficam com um excesso de bagagem. Mirem. Carisma assim nem a voz de Nat King Cole e os olhos esbugalhados de Louis Armstrong conseguiriam. Mas continua, a crítica, certamente rumo a um paroxismo:

‘Nenhuma obra havia ido tão fundo na compreensão do mito e da humanidade do cantor. Registro afetivo, mas exaustivamente detalhista e analítico da vida e obra de Roberto, ‘…em Detalhes’ esmiúça – respeitosamente, mas sem pudores – todas as histórias que já foram contadas superficialmente em um ou outro lugar, além de trazer muitos novos detalhes…

O capítulo ‘Roberto Carlos e a MPB’, por exemplo, oferece novos e esclarecedores pontos de vista sobre a importância do cantor para a tropicália e a música brasileira pós-anos 60. Ao final, fica claro o tamanho da obra de Roberto, mesmo diante de outros artistas mais bem considerados intelectualmente, como Caetano e Chico. Com sua boa narrativa, ótimo levantamento de fatos, centenas de aspas de Roberto e todos os envolvidos e notável análise, está tudo lá. Daqui pra frente, tudo vai ser diferente’.

Diante de semelhante peça publicitária, Nelson Rodrigues diria que o autor do livro, a ver estrelas, com os olhos rútilos, caiu vítima de um ataque apoplético. A dose de propaganda nas linhas é tão excessiva quanto o óleo no rum, envenenado com coca-cola, naqueles tempos dos versos fatais da letal poesia da perversa canção:

‘O ronco barulhento do seu carro

A velha calça desbotada ou coisa assim

Imediatamente você vai… você vai lembrar de mim

Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido

Palavras de amor como eu falei, mas eu duvido

Duvido que ele tenha tanto amor

E até os erros do meu português ruim

E nessa hora você vai… você vai lembrar de mim…’

Bem, se a amada recorda os versos do português ruim do compositor, nada mais deveria ser adicionado. Há uma linguagem de rugidos no ponto culminante da paixão que talvez seja digna de uma reminiscência. Com mais justiça e nostalgia. Voltemos ao livro.

Segundo o Globo Online, ‘o livro se impõe como o levantamento mais completo e detalhado feito da vida e carreira do artista’, o artista é Roberto Carlos, e ‘… Araújo também defende a tese de que o Rei conquistou a majestade graças a suas canções’.

Considerem. Não há pudor algum em usar e abusar de palavras como rei, majestade, em avaliações dignas da mais absoluta ignorância. Está certo, o mês é dezembro, as pessoas ficam com os corações mais moles e estúpidas, compreendemos. Está bem, o produto Roberto Carlos é uma tradição da mediocridade nacional nesta época do ano. Ele faz parte do kit peru, queijo, ceia e agradeço a deus pelo ano bom que tivemos, mas o papel da imprensa, supondo que ainda exista um, deveria ser um pouco mais respeitoso para com a inteligência. Porque mirem e acompanhem as pérolas de que é capaz o autor da melhor biografia de Roberto Carlos já publicada no mundo. O Globo Online, em um – por mais de um motivo – grande serviço de investigação e apuro crítico, pediu ao historiador Paulo César de Araújo que escolhesse e comentasse as 10 mais de Roberto Carlos. Entre as 10 melhores canções recolhemos dois comentários da pequena antologia:

Quero que vá tudo pro inferno – ‘Maior sucesso da música brasileira. O que quero dizer é que nenhuma música lançada antes ou depois teve a repercussão dela. Mexeu com os militares, igreja, público, universidades. E definiu Roberto Carlos como o rei da MPB’.

Jesus Cristo – ‘Uma obra-prima, de grande repercussão. Foi polêmica, por tratar de um tema religioso na música pop. E é a primeira música explicitamente religiosa de Roberto, além de ser a primeira canção-mensagem….’.

Rituais obsessivos

Antes que os ardorosos admiradores do Rei me mandem para o inferno, direi algo sobre o Quero que vá tudo pro inferno. O historiador compreende mal e pior que mal o tesouro que pesquisa. Se ele entende a palavra repercussão como o número de gravações vendidas de uma só música, lamento o seu conceito, pero nada mais direi. Mas se por repercussão ele quer dizer obra que ‘repercute’ até hoje, objeto fecundante, composição que gerou filhos e filhas em toda a nossa música, seria bom que o historiador ouvisse mil e uma vezes Chega de saudade com João Gilberto. Para ele, certamente isto seria um castigo. Mas bem poderia fazer pausas, como um refresco do suplício, e nos intervalos bem pesquisaria de Milton Nascimento a Caetano, de Chico Buarque a Gilberto Gil, de Edu Lobo a Carlos Lyra, e outros ‘menores’ nobres e monarcas da nossa riquíssima Música Popular Brasileira, para saber afinal qual a música que maior repercussão teve no trabalho deles. Nos limites do Brasil, Chega de saudade repercutiu mais que a Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta no mundo.

Quanto a Jesus Cristo, aquela canção de rebeldia da juventude com os braços estendidos para o alto, a pedir uma proteção divina como uma superação deste mundo pequeno, enquanto uma parcela importante dos jovens se danava sob torturas e fuzilamentos sumários, o historiador não olhou bem a história. Onde é que estava mesmo a polêmica, em 1970, em pleno ano da ditadura Médici, para essa obra-prima do conformismo e da conformação? Como escrevemos em ‘O rei Roberto Carlos e a ditadura‘:

É sintomático em Roberto Carlos a passagem de cantor da juventude, da jovem guarda, para cantor ‘romântico’. Essa passagem se dá na medida em que os jovens de todo o mundo deixam de ser apenas um mercado de calças Lee e Coca-Cola, e passam a explodir em protestos contra a guerra do Vietnã, até mesmo em festivais de rock, como em Woodstock. Ou, se quiserem numa versão mais brasileira, o Rei Roberto se torna um senhor ‘romântico’ na medida mesma em que as botas militares pisam com mais força a vida brasileira. Ora, nesses angustiantes anos o que compõe o jovem, o ex-jovem, que um dia desejou que tudo mais fosse para o inferno? – Eu te amo, te amo, te amo, As canções que você fez pra mim, As flores do jardim da nossa casa, e, claro, para que não me vejam má vontade, Sua Estupidez…

É claro, já se vê, a passagem do Roberto Carlos Jovem Guarda para o senhor ‘romântico’ não se dá pelo envelhecimento do seu público. Ora, de 1965 a 1970 correm apenas 5 anos. O envelhecimento é outro. Nesses 5 correm sangue e enfurecimento da ditadura militar, no Brasil, e crescimento da revolta do público ‘jovem’, no mundo. Enquanto explodem conflitos, a canção de Roberto Carlos que toca nos rádios de todo o Brasil é ‘Vista a roupa, meu bem’ (e vamos nos casar). Ora. Se fizéssemos um gráfico, se projetássemos curvas de repressão política e de ‘romantismo’ de Roberto Carlos, veríamos que o ápice das duas curvas é seu ponto de encontro. O que é uma coincidência, quero dizer, os dois pontos coincidem.

Acreditamos que isto faz mais sentido, de um ponto de vista histórico, que explicar a fé religiosa, o conservadorismo do cantor, como um sintoma do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, como afirma o historiador em entrevistas. O TOC é mal que se manifesta em rituais obsessivos, feitos com uma crença de que certos atos repetidos afastam coisas ruins. Para a sua cura, dizem, uma das terapias é a utilização de técnicas cognitivas e comportamentais. Talvez fosse a hora de convencer o Rei de que a ditadura militar não mais existe. O único risco agora é saber que não é mais jovem, como nos tempos da jovem guarda.

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Jornalista e escritor