O retrato, de Osvaldo Peralva, é um dos resultados da crise do comunismo, em fins dos anos 1950, desencadeada pelo documento de condenação de Stálin submetido ao xx Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). O documento ficou conhecido primeiro como “relatório secreto” e, depois, como “Relatório Kruschev”. [O “Informe secreto ao XX Congresso do PCUS”, de 25 de fevereiro de 1956, pode ser lido aqui, em espanhol] Nunca chegou a ser divulgado oficialmente. Quando o texto integral se difundiu no Ocidente, os comunistas, durante algum tempo e de modo geral, contentavam-se em dizer que se tratava de uma “invenção da cia”.
Entretanto, sua leitura fora presenciada por dirigentes comunistas estrangeiros presentes ao xx Congresso (exceto os de algumas delegações, entre elas a brasileira). Além disso, o documento foi dado ao conhecimento das organizações partidárias e da juventude na União Soviética. Em 1962, uma versão reduzida foi publicada em Moscou, em um jornal que se editava em francês (Nouvelles de Moscou). Supõe-se mesmo que essa iniciativa fazia parte da movimentação com o objetivo de derrubar Kruschev, o que veio a consumar-se dois anos depois. Àquela altura, os dirigentes soviéticos já demonstravam dar-se conta de que o regime não aguentaria nenhum tipo de abertura democrática. E, quanto ao culto à personalidade, desde que se tratasse do chefe no poder, não era tão mau assim…
O retrato relata a angústia que tomou conta dos dirigentes comunistas com a notícia dos crimes praticados por Stálin (que, depois, se concluiu que eram os denominados “crimes do comunismo”). O livro leva em conta tanto a experiência e os sentimentos pessoais de Peralva como o impacto das revelações nos representantes de outros partidos comunistas com os quais convivia, na condição de representante do pcb, na organização internacional ressuscitada pelos russos – com a denominação de Kominform –, com sede na Romênia. Também trata do ambiente de perplexidade que encontrou entre os comunistas brasileiros depois de seu retorno ao país, em fins de 1956, e como amadurece, no seu grupo, a ideia de abandonar o pcb.
Escrito em pouco tempo, O retrato corresponde, na verdade, a uma espécie de catarse. Peralva relutou muito em publicá-lo, só o fazendo em 1960, primeiramente na forma de capítulos em O Estado de S. Paulo e depois em livro, pela Editora Itatiaia. Reviu-o, sem grandes alterações, em uma segunda edição, feita em 1962 pela Editora Globo. Pouco tempo antes de morrer, em 1992, fez nova revisão, em que eliminou principalmente erros tipográficos, preparando a obra para uma nova edição, que é esta ora entregue ao leitor.
Adesão ridícula
Descendente de espanhóis, nascido em 1918 no município de Saúde, na Bahia, Peralva bacharelou-se em direito, mas nunca exerceu a advocacia, optando por ser jornalista profissional. Ingressou no Partido Comunista do Brasil na época da Segunda Guerra, aos 25 anos. Considerava-se antifascista e ansiava por presenciar o fim do Estado Novo. Equivocadamente, como perceberia depois de muitos sofrimentos, deixou-se encantar pelo canto da sereia do comunismo, o que era compreensível na época. Naquele momento, a União Soviética fazia parte do campo aliado da guerra contra o nazifascismo. Ninguém mais se lembrava dos processos de Moscou (1936), dos acordos de Stálin com Hitler (o pacto Molotov-Ribbentrop, de 1939) ou da existência de campos de concentração na União Soviética. Com o fim da guerra, a vitória dos soviéticos, a queda do Estado Novo e a libertação de Luís Carlos Prestes, a intelectualidade aderiu em massa ao Partido Comunista.
Gradativamente, Peralva ascende no aparelho do PCB e acaba tornando-se o quarto homem na hierarquia, que estava assim distribuída: em primeiro lugar, o chefe russo do pc, em Moscou; em segundo, Prestes (na clandestinidade); e, em terceiro, Diógenes Arruda Câmara (secretário-geral com todos os poderes na organização). Em tal posição e tendo vivido na União Soviética, Peralva pôde adquirir uma ampla visão do comunismo.
O retrato descreve, brevemente, a trajetória do Partido Comunista do Brasil [antiga denominação do PCB. sobre o assunto, ver pp. 415-6. (N.E.)]. Detém-se, principalmente, no período em que o autor viveu em Moscou. Também aborda o funcionamento do Kominform.
Sempre foram um mistério as razões pelas quais os russos não reconstituíram simplesmente a Internacional Comunista com o nome consagrado de Komintern (abreviatura em russo). Especialistas em história da Rússia garantem que o fato retrata o peso da tradição, presente nos diversos aspectos do comunismo, notadamente o chamado “despotismo oriental”. O país aderiu ao cristianismo através de Bizâncio, uma cisão da Igreja Romana, por isso mesmo batizado de “Segunda Roma”. Quando caiu Constantinopla, em 1453, Moscou proclamou-se “Terceira Roma” – e “não haverá Quarta”, acrescentou a hierarquia da Igreja Ortodoxa.
A Segunda Internacional, criada em 1889, praticamente deixou de existir em 1914, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Os russos, quando a reconstituíram, em 1919, a chamaram de “Terceira Internacional”. Por imposição dos Estados Unidos, fornecedor de armas à urss, dissolveram-na durante a Segunda Guerra, em 1943. Assim, quando retomaram a praxe de manter sob a sua orientação direta os diversos partidos comunistas, o mais lógico seria que o pcus denominasse a organização de “Quarta Internacional”. Em vez disso, chamaram-na de Kominform.
Na terceira parte de O retrato, o autor procede à descrição do impacto do Relatório Kruschev no Brasil com o correspondente desfecho: um grupo grande afastou-se do comunismo e acabou preferindo o sistema democrático-representativo. Prestes dominou a antiga máquina e preservou-a, adotando uma atitude de fidelidade à União Soviética. Afastaram-se também aqueles que criaram o chamado pcdob, de franca inspiração totalitária, ancorados no pc chinês, mas que, por desinteresse deste, acabaram melancolicamente aderindo à Albânia, um dos fenômenos mais ridículos de nossa história política. A Albânia, até hoje, corresponde a uma das regiões mais atrasadas e pobres da Europa. Sua capital, Tirana, é menor que Aracaju.
Caldo de cultura
No livro, Peralva optou por chamar pelos nomes próprios apenas aqueles dirigentes comunistas muito conhecidos. Nos demais casos, ele empregou sempre “nomes de guerra”, como se dizia na gíria comunista. Apesar de O retrato representar um documento importantíssimo de crítica ao comunismo, de modo geral, após o Golpe de 64, os militares arrolaram Peralva nos inquéritos sobre o Partido Comunista e o denunciaram por ter se recusado a decodificar aqueles nomes. Esse fato atesta bem a estreiteza de visão do grupo que, com a ditadura militar, se apossou da hegemonia. O episódio, porém, possui o mérito de evidenciar que teria sido melhor correr o risco da chamada “ditadura sindicalista”, insuflada pelos comunistas e sonhada por João Goulart, do que tentar preservar a democracia por meio de golpes de Estado. Foi, então, contra o governo militar que Peralva empreendeu sua nova batalha, à frente do jornal carioca Correio da Manhã, do qual foi diretor depois de seu afastamento do Partido Comunista. Após a decretação do ai-5, em 1968, foi preso e obrigado a deixar o país. Viveu na então Alemanha Ocidental e só regressou com a promulgação da Lei da Anistia, em 1979. De volta ao Brasil, integrou o Conselho Editorial da Folha de S.Paulo, jornal do qual foi também correspondente no Japão.
Como notará o leitor em O retrato, Peralva manteve sua crença nas virtudes do socialismo, mas desde que associado à democracia. Embora ele não o tenha explicitado, a sua opção é pelo “socialismo moral”, que conta no Ocidente com expressivas personalidades, tratando-se, portanto, de uma decisão respeitável, embora eu pessoalmente não a aprove. A reedição deste livro é uma oportunidade dada a jovens simpatizantes do comunismo para que conheçam uma experiência concreta de contato com aquela ideologia e sua organização, tanto mais importante porque vivenciada por um brasileiro.
Acreditamos ser útil fazer acompanhar O retrato da leitura do Relatório Kruschev, documento de 1956 que acabou caindo no esquecimento. Ele contém uma parte de louvação a Lênin, mas, essencialmente, é a primeira sistematização dos “crimes do comunismo”. Mais tarde, várias obras foram publicadas sobre o tema, como O livro negro do comunismo – crimes, terror e repressão, obra coletiva organizada por Stéphane Courtois, que reúne toda a documentação liberada após o fim da União Soviética. Em seu relatório, Nikita Kruschev (1896-1971) procura apresentar a repressão e os fuzilamentos como uma invenção stalinista. Courtois, entretanto, apresenta um documento comprovando que, apenas no mês de novembro de 1918, foram fuziladas 15 mil pessoas. E faz essa comparação com o despotismo czarista: entre 1825 e 1917, portanto ao longo de quase um século, os tribunais políticos do czar condenaram 6.321 pessoas, das quais 1.310 foram sentenciadas à morte.
Os crimes políticos ao longo dos setenta anos de existência da União Soviética atingiram milhões de russos. No fim do relatório, Kruschev tenta explicar como foi possível tamanha barbárie, mas não encontra um modo razoável de fazê-lo. Foi derrubado do poder em 1964, por um golpe de Estado, como era da tradição comunista. A repressão prosseguiu ininterruptamente sob o governo Leonid Brejnev, até a morte deste, em 1982.
Supõe-se que a denúncia de Stálin tenha ocorrido em razão da necessidade de rever as diretrizes econômicas que havia deixado como herança à União Soviética. Todas as empresas pertenciam ao Estado, a economia industrial era muito complexa e o país dispunha de uma elite técnica responsável por sua condução. Essa mesma elite havia se dado conta da urgência de a urss superar a estagnação que a vinha dominando, o que exigia abertura econômica. O substituto de Brejnev, Iúri Andropov (1914-1984), fora o responsável pela abertura econômica da Hungria e, presumivelmente, pretendia fazer o mesmo na União Soviética – sem, contudo, eliminar a hegemonia do partido único. Mikhail Gorbatchov (1931) também não conseguiu operar essa mágica. E, em seu governo, assistimos ao fim da mais dramática experiência social do século passado.
No Brasil, em decorrência de tradições culturais – entre elas, a origem católica e contrarreformista – que alimentam o ódio ao lucro e à riqueza, criou-se um caldo de cultura propício à sobrevivência do marxismo e de organizações políticas de perfil ideológico francamente totalitário. A leitura de O retrato pode contribuir para que pessoas de bom senso revejam esse tipo de opção.
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Antonio Paim (1927) estudou filosofia na Universidade Lomonosov (Moscou) e na Universidade do Brasil (Rio de Janeiro). Foi professor de filosofia em várias universidades. É autor de dezenas de livros, entre eles História das ideias filosóficas no Brasil (Editora UEL, 1997), História do liberalismo brasileiro (Mandarim, 1998), O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação (Editora Senac São Paulo, 2000) e Tratado de ética (Humanidades, 2003). Ingressou no Partido Comunista Brasileiro ao mesmo tempo que Osvaldo Peralva. Juntos, eles vivenciaram a crise provocada pelo Relatório Kruschev e decidiram se afastar do PCB.