No início de 1999, quando festejávamos o centenário de A cidade e as serras (publicado somente em 1901), escrevi numa lauda os nomes dalguns jornalistas, todos discípulos do Mestre Eça de Queirós, com o intuito de formar a equipe da revista Jornal dos Jornais, nascida naquele ano. Lembro-me que no escritório da Avenida Paulista, cujos aparelhos de ar-condicionado insistiam em não funcionar, se instalara um calor de derreter os untos e, com essa expressão tipicamente eciana em mente, escrevi o primeiro nome da lista de futuros colaboradores: José Inácio Werneck.
Imaginei rechear a revista de textos admiráveis, com o objetivo de transmitir aos jovens estudantes de jornalismo, à qual se destinava, este princípio categórico: ‘Leiam e aprendam, pois é assim que se escreve’. Zé Inácio, um velho amigo e companheiro daquele Jornal do Brasil dos anos sessenta referido por Roberto Porto na orelha deste livro, é um desses raros cultores do texto de que a imprensa sempre esteve tão necessitada. Advogado militante, num tempo em que advogados se situavam acima dos diplomas e muito além das petições cartoriais, no JB era repórter e redator de esportes, por decisão pessoal; se quisesse, trabalharia noutras e mais exigentes editorias, porque não lhe faltava instrumental.
O trabalho de Zé Inácio, tanto aquele dos bons tempos da reportagem quanto o deste livro, passando ainda pelas colunas esportivas que manteve ao longo da vida, ajuda a demonstrar a tese defendida desde a juventude por este prefaciador: o texto jornalístico adquire grandeza à medida que se aproxima da literatura. Ao contrário do que inúmeros lorpas e pascácios têm exalado nas redações brasileiras, não existe incompatibilidade entre literatura e jornalismo. Ora, se ambos encontram na palavra sua matéria-prima, como poderiam se dissociar, simplesmente porque uma se vale (quase sempre) da mais pura ficção e o outro se atém aos limites da realidade? José Inácio Werneck, que desde menino recebe os eflúvios assoprados da Quinta de Tormes e de um certo quintal do Cosme Velho, não tivesse ele se criado entre personagens de A cidade e as serras e Memórias póstumas de Brás Cubas, aprendeu a escrever com os mestres e por tal razão lhe é tão generoso o verbo.
Bastam poucas linhas deste livro para que, num átimo, o considerado leitor se convença do deslavado conúbio entre jornalismo e literatura.
Primeiro porto
O texto desse talentoso filho de Niterói teria, certamente, servido de exemplo a Alceu Amoroso Lima (primeiro sogro de Roberto Porto, autor da orelha deste livro, vejam que coincidência…), quando o festejado mestre da crítica literária escreveu O jornalismo como gênero literário (Agir, 1958). Na introdução ao raro livrinho, diz aquele que também se chamou Tristão de Athayde:
‘Mas o que a evolução dos meios modernos de publicidade nos vai demonstrando é que o jornalismo vai conquistando de mais em mais os seus foros de verdadeiro gênero literário. Assim como a fotografia ‘libertou a pintura’, na frase famosa de Jean Cocteau, o rádio e a televisão libertaram o jornalismo de suas funções subalternas. E com isso vai ele consolidando a sua ascensão literária a gênero de primeira grandeza’.
Com esperança no coração…, exemplo de excelente jornalismo ornamentado com o melhor estilo literário, talvez não tivesse competidor se fosse transformado em série de reportagens e inscrito entre os concorrentes ao Prêmio Esso por algum grande jornal brasileiro. E é mister que se informe neste prefácio: o livro de José Inácio Werneck tanto encanta quanto assusta. Muitas histórias aqui contadas cumprem a missão de alertar os sonhadores de que não se avista a riqueza americana quando se chega ao México; faltam ainda o deserto e outros perigos a percorrer, pois para um migrante ilegal a vitória está muito além de uma simples cavalgada, embora John Wayne não mais esteja no encalço dos indesejáveis, nas cercanias de El Paso.
A ilusão de alguns transforma-se num intento custoso para todos, até para os mais ilustrados que desembarcam legalmente nos aeroportos dos Estados Unidos com dólares na bagagem. O próprio autor deste livro, cuja experiência de migrante se dera décadas atrás, em Londres, padeceu ao chegar a seu primeiro ancoradouro americano. Ainda devo ter guardada aqui entre meus mais estimados papéis, uma carta que o amigo me escreveu de Wellesley, Massachusetts, com uma divertida frase na qual expunha, ao mesmo tempo, a dificuldade financeira e o modo niteroiense de enxergar o outro lado da baía: ‘Estou latindo no quintal pra economizar o cachorro’.
Deus desconhecido
Neste Com Esperança…, o maratonista, advogado militante e jornalista José Inácio Werneck conta a história de sua partida definitiva, depois de algumas decepções com a imprensa, em meados dos anos setenta. O considerado leitor conhecerá episódios jamais relatados e que envolvem o nascimento e a morte de uma revista, envolta em dificuldades financeiras, mais a intolerância de alguns e a inveja e o ressentimento de outros.
Vê-se que a parte mais significativa das peripécias desse migrante especialíssimo, que teve a sorte de encontrar nos Estados Unidos o auxílio desinteressado de amigos como o casal Susan e Chip Case e hoje poderia ter em casa um par de galgos russos, está aqui neste texto merecedor, em meio a tantas experiências alheias e igualmente fascinantes. Uma dessas reúne Jânio e Ângela Bretas, casal de brasileiros que vive em Pompano Beach, ele um requisitado piscineiro, ex-lavrador de Dores de Guanhães, perto de Governador Valadares (grande produtora de migrantes, além de gado e pedras semipreciosas), e ela uma catarinense de boa formação, jornalista e autora de quatro livros publicados nos Estados Unidos, dos quais um é best-seller entre seus pares: O sonho americano. São dois personagens reais que se apresentam, a talante do narrador, como se extraídos das páginas de um romance de bom entrecho e melhor escrita.
É também notável o tratamento literário que José Inácio Werneck empresta a outra personagem de seu livro, Eliza Oliveira Xavier, que desembarcou em Danbury (Connecticut) há 20 anos, disposta a ganhar a vida como faxineira, e hoje é uma empresária de sucesso, dona de cinco lojas chamadas Eliza’s Store, todas na Main Street da cidade, rua que lembra um dos mais famosos romances de Sinclair Lewis. Todavia, como se verá, essa também filha de Governador Valadares jamais se perdeu em devaneios bovarianos, como a Carol Kennicott de Lewis naquela outra Main Street; Eliza foi à luta e construiu seu pequeno império com a disposição da Scarlett O’Hara de Margareth Mitchell em ...E o vento levou.
E o pastor e contador Elias Meireles, que mantém firme e concorrida igreja em Framingham, Massachusetts? Diferentemente da maioria, dos ‘extenuados’ a que se refere Emma Lazarus no seu poema gravado aos pés da Estátua da Liberdade, Elias trazia dinheiro no bolso e visto de trabalho ao estacionar sua carruagem de fogo junto aos vizinhos da Rua Concord; é uma espécie de Adam Trask, aquele que chegou rico à Califórnia de Steinbeck, embora o pastor tenha vindo de mais longe, de uma terra onde a necessidade dos homens lhes apega a língua ao paladar e onde não se escutam as harpas de Sião. A esperança, esta, talvez venha de um deus desconhecido, porém é mais prudente confiar nos milagres do trabalho. É uma das muitas lições deste livro indispensável ao considerado leitor que nele planeja se aventurar e cuja leitura também se recomenda às pessoas de bom gosto.
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Jornalista e escritor