Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘O sargentão derrotou o estrategista’

O jornalista e escritor cearense Lira Neto, 40 anos, lança nesta quarta-feira, dia 10/3, Castello: a marcha para a ditadura, biografia do primeiro presidente do regime militar – talvez o mais desconhecido protagonista da ditadura, embora um dos mais falados. Dono de belíssimo texto, o autor conta, nesta entrevista por e-mail, que procurou fugir do maniqueísmo que costuma rechear as opiniões sobre o polêmico biografado. ‘Sei que corro o risco de desagradar a todos, de uma só vez’, diz. ‘Os que colocam Castello no pedestal talvez se sintam profundamente incomodados ao ver narradas, com todas as letras, suas hesitações, artimanhas, ardis e dissimulações. De modo idêntico, os que simplesmente o satanizam encontrarão, no livro, situações ambíguas, em que o mesmo Castello se mostra radicalmente contrário aos rumos que a história tomou’.

Lira não é estreante no gênero: em 1999 publicou O poder e a peste (Fundação Demócrito), a fascinante história, ignorada pela maioria dos brasileiros, do farmacêutico Rodolfo Teófilo, que no início do século 20 combateu praticamente sozinho, no Ceará, uma epidemia de varíola que já dizimara um quinto da população de Fortaleza. Em 2000 Lira publicou também A herança de Sísifo, a arte de carregar pedras como ombudsman na imprensa (Demócrito): depois de ser repórter, editor e chefe de redação de O Povo, do Ceará, foi o primeiro ombudsman do jornal (suas colunas eram reproduzidas aqui no Observatório).

A pesquisa de Castello exigiu três anos de leitura e muita negociação com os militares da Eceme, que abriga o arquivo pessoal do marechal, morto em 1967 em acidente de avião dado como suspeito. O livro conta um bem guardado segredo de família – as circunstâncias da morte do coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, no Rio Grande do Sul – e revela a maior derrota de Castello Branco, que se julgava estrategista imbatível: perder a disputa pela sucessão presidencial para o general Costa e Silva, a seu ver ‘um sargentão rude e semi-analfabeto’. Abaixo, a entrevista de Lira Neto.

Como lembra o texto de apresentação do livro, o Brasil é dividido entre os que vêem Castello Branco como intelectual e estrategista e os que o vêem como truculento e vaidoso. O senhor pendeu para que lado, após a pesquisa?

Lira Neto – O livro, na verdade, procura fugir dos estereótipos típicos do gênero biografia. Biógrafos, com honrosas exceções, costumam cair na vala comum para onde escorregam apologistas e detratores. Preferi mostrar Castello em toda a sua complexidade, ou seja, revelar um sujeito imerso em inevitáveis contradições, a exemplo de qualquer ser humano. Como se trata de um personagem central da história brasileira, protagonista de um momento crítico e controvertido da vida nacional, é normal que sobre ele recaiam admirações e ódios. De fato, os militares o têm na conta do mais culto e democrático entre seus pares. Tal opinião, inclusive, não está restrita aos quartéis. Dia desses, Luís Nassif escreveu um artigo na Folha em que classificava Castello Branco como um grande estadista, um dos maiores que o país já teve. Por outro lado, quem amargou, na própria carne a violência do regime inaugurado pelo marechal terá, sem dúvida, idéia absolutamente diversa. Mais do que proceder a um julgamento póstumo, procurei oferecer ao leitor o maior número possível de informações, traçar um retrato do corpo inteiro do biografado. Sei que corro o risco de desagradar a todos, de uma só vez. Os que colocam Castello no pedestal talvez se sintam profundamente incomodados ao ver narradas, com todas as letras, suas hesitações, artimanhas, ardis e dissimulações. De modo idêntico, os que simplesmente o satanizam encontrarão, no livro, situações ambíguas, em que o mesmo Castello se mostra radicalmente contrário aos rumos que a história tomou. Não é, portanto, um livro maniqueísta, apesar das armadilhas que o gênero – e, principalmente, o tema – proporcionam a quem se aventure nele.

É impossível não comparar: foi difícil fazer um livro em área paralela (embora anterior) à de Elio Gaspari, depois de todo aquele carnaval em torno da obra dele? O que o senhor achou do trabalho de Gaspari? Sua pesquisa contradiz Gaspari em alguma questão?

L.N. – O trabalho do Gaspari é muito bom. Claro que li os três volumes que já saíram, e que estão devidamente incluídos na bibliografia de meu livro sobre Castello. Estamos falando de um assunto ainda rico do ponto de vista jornalístico e histórico. Uma fonte inesgotável de pesquisa, apesar de já existir uma considerável produção editorial sobre o regime militar. Porém, penso que quanto mais livros se publicarem sobre o tema, mais luz se jogará sobre aquele que foi, indiscutivelmente, um dos períodos mais escuros de nossa história. Gaspari, como não poderia deixar de ser, por causa da natureza e dos objetivos de seu projeto, faz um vôo rasante sobre a vida e o governo de Castello Branco. Meu livro tem por obrigação descer às minúcias, mostrar o cotidiano do poder, as tramas palacianas, mas também pôr em foco a personalidade contraditória de Castello, vasculhar a intimidade do marechal, compreender suas motivações, inclusive as mais inconfessáveis.

Um detalhe que julgo importante no livro é que, entrelaçado à narrativa da vida pessoal e profissional do personagem central – militar de longa carreira –, todo um contexto histórico se desdobra ao longo das páginas, explicitando as recorrentes interferências das Forças Armadas na vida política nacional. O tenentismo, a Coluna Prestes, a Revolução de 30, a ‘Intentona Comunista’, o Estado Novo, a participação da FEB na Segunda Guerra, o anticomunismo típico da Guerra Fria, o suicídio de Getúlio, a ascensão de Juscelino, os contragolpes de Lott, a renúncia de Jânio, a queda de Jango, está tudo lá. É a história de Castello, mas é também, por tabela, a história da política brasileira ao longo do século XX.

Quais são os documentos inéditos no livro? Há alguma revelação ‘espetacular’ (como foi vista por alguns a declaração de Geisel sobre a execução de presos políticos, neste último livro de Elio Gaspari)?

L.N. – O livro Castello: a marcha para a ditadura é fruto de quase três anos de pesquisa. Utilizei como fonte básica, além das entrevistas, o arquivo particular de Castello Branco, que está sob a guarda da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, a Eceme, localizada na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Foram consultados mais de três mil documentos – cartas pessoais, correspondência oficial, memorandos secretos, bilhetes, anotações de próprio punho do ex-presidente, diários etc. Muito disso estava inédito até aqui.

Também me foi bastante útil a ajuda do brasilianista John Walter Foster Dulles, o primeiro biógrafo de Castello Branco. Dulles me mandou, generosamente, dos Estados Unidos, nove volumes enormes, com as notas datilografadas das cerca de 300 entrevistas que fez à época, no início dos anos 70, para escrever seus dois livros sobre Castello. Como Dulles fez uma biografia autorizada, submetida à família do marechal, muita coisa ali não pôde ser utilizada por ele. No arquivo de Castello existem inclusive cópias dos originais de seus livros, com trechos assinalados e suprimidos pelo filho do marechal, Paulo Castello Branco, já falecido.

Um dos segredos mais bem guardados da família, por exemplo, diz respeito à ligação de parentesco entre Castello Branco e o então capitão da Aeronáutica Roberto Hipólito da Costa, que fuzilou, quatro dias após o golpe, o coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, no Rio Grande do Sul. Alfeu, deposto do comando da Base Aérea de Canoas, havia se recusado a receber a ordem de prisão em nome da ‘Revolução’. Ao resistir, acabou morto pelas costas por Hipólito da Costa. Castello, tio de Hipólito, tratou de despachar o sobrinho para os Estados Unidos, como adido militar. Os militares até hoje evitam falar no assunto. Nem a família do oficial morto sabia de tal ligação. Quando, há dois anos, procurei Malena Monteiro, filha de Alfeu, para tratar do assunto, ela ficou surpresa.

Como a família do marechal recebeu sua intenção de fazer essa biografia? Houve algum atrito? E a receptividade do Exército? Algum documento lhe foi sonegado?

L.N. – Nas muitas viagens que fiz ao Rio de Janeiro durante a pesquisa, liguei várias vezes para a filha de Castello, Antonieta Castello Branco, tentando marcar uma entrevista. Ela, porém, nunca encontrou tempo para me receber. Vi então que teria de prosseguir por outros rumos, atacar em outros flancos. Procurei, em Belo Horizonte, a família da mulher de Castello – dona Argentina Vianna Castello Branco, morta poucos meses antes do marido assumir a presidência. Os parentes de Argentina me abriram o baú da família. Contaram-me histórias, confiaram-me fotos e documentos, deram pistas para novas descobertas.

Já no Exército, após uma notória e esperada desconfiança inicial, também consegui importantes informações. Contudo, nas primeiras visitas à Eceme, fui proibido de abrir uma série de pastas, vedadas à consulta, segundo me informaram, por exigência da própria filha da Castello. Percebi, é lógico, que ali estava o quente para minha pesquisa. Não adiantou argumentar que, por força de lei, toda aquela documentação era considerada de utilidade pública. Não, não me deixariam pôr os olhos nela, avisaram. Aos poucos, porém, após alguma negociação, fui tendo acesso às pastas proibidas. A cada nova visita, conseguia a liberação de uma nova prateleira de documentos. As peças foram se juntando e o livro sendo finalmente escrito.

O livro chega a alguma conclusão sobre a posição de Castello quanto aos rumos do regime?

L.N. – A correspondência pessoal de Castello não deixa margens para dúvida. Ao assumir o poder, ele tinha a convicção de que passaria a faixa presidencial para um civil. Para Castello Branco, o golpe de 64 deveria ser uma intervenção cirúrgica, rápida e precisa. Logo as circunstâncias acabaram demonstrando que as coisas não correriam como ele planejara. O racha entre a linha-dura e o grupo a que pertencia Castello – o dos militares ligados à Escola Superior de Guerra, a chamada ‘Sorbonne dos quartéis’ – contribuiu para conduzir o país a outro rumo. Castello estabeleceu uma estratégia perigosa, feita de avanços e recuos táticos, para segurar as rédeas da linha-dura, enquanto impunha ao país um receituário econômico amargo, idealizado por Roberto Campos.

Acabou seu governo sem quase nenhuma sustentação política, com um dos maiores índices de impopularidade já experimentada por um presidente brasileiro e, ainda por cima, pressionado pelos militares radicais, pela classe média, pelos latifundiários e pelo empresariado – justamente aqueles que haviam apoiado e construído o golpe. Seu tão decantado senso de estratégia resultou em retumbante fracasso, ao ponto de ser obrigado a engolir como sucessor na presidência um adversário dentro da caserna: o general Costa e Silva. A morte precoce de Castello – vítima de um espetacular acidente aéreo, episódio sob o qual até hoje ainda pairam acirradas controvérsias – impediu que ele viesse a ser, talvez, uma voz até certo ponto dissonante dentro do regime que ajudou a criar. Isso não significa que viria a estabelecer uma dissidência aberta com Costa e Silva – pois foi justamente o receio de dividir as Forças Armadas que o levou a aceitá-lo, sem protestos, como seu sucessor.

Castello foi vítima ou algoz?

L.N. – Se Castello foi alguma espécie de vítima, terá sido de seus próprios erros. E, também, de suas incontáveis contradições. Era, de fato, um homem bem complexo. Feio, atarracado, quase corcunda, estava longe da figura atlética e de porte marcial perseguida pelos colegas de farda. Quando cadete, não podendo competir nas instruções de campo e nos puxados exercícios físicos, tratou de construir para si próprio uma reputação de soldado culto, imagem que cultivaria cuidadosamente pelo resto da vida. Mas os próprios admiradores reconheciam que ele era um poço de recalques. Castello cultivava uma vaidade intelectual exacerbada e fora de propósito, justamente como defesa para seu notório complexo de inferioridade. Era um homem taciturno e, ao mesmo tempo, irreverente, descrito como uma ostra e casmurro por uns, brincalhão e espirituoso por outros.

Gabava-se de ser imbatível estrategista, mas perdeu a batalha principal de sua vida – a disputa pela sucessão presidencial – para aquele que considerava apenas um sargentão rude e semi-analfabeto. Nunca se conformaria com o fato de Costa e Silva, o inveterado jogador de pôquer, ter derrotado a ele, o ardiloso estrategista da Sorbonne. Entre as tantas contradições que vivenciou, uma delas, no entanto, a maior de todas, afetaria a vida uma nação inteira: o presidente que, após ser ‘eleito’ por um Congresso acuado, jurou entregar o país saneado e pleno de democracia, acabou empurrando o Brasil para vinte anos de arbítrio.