Neste estudo, temos como objetivo geral destacar e avaliar como se articula o processo de intermidialidade a serviço da crítica à publicidade realizada na literatura de Sebastião Nunes, com destaque para os poemas ‘Classificados: corações e mentes’, ‘Prometa o paraíso para comprar o inferno’, ‘Você já contou sua mentira hoje?’ e ‘A felicidade bate à sua porta’, que fazem parte do livro Somos todos assassinos (1980). Nele, a metáfora é que todo publicitário num país subdesenvolvido é um assassino, na medida em que desenvolve proposições de consumo para pessoas que não têm condição de consumir.
Especificamente, demonstraremos como a experiência publicitária e a literária vividas por este escritor mineiro se farão presentes, de maneira combinada, como traço expressivo compromissado em problematizar a mídia publicitária, fazendo uso de uma outra mídia, a literária, para levar a cabo o projeto estético e político do nosso autor em expor ao público os abusos persuasivos cometidos pelo poder da propaganda3 que ferem a ética voltada para o consumo sustentável como valor de cidadania. Sebastião Nunes se apropria parodisticamente de técnicas publicitárias e jornalísticas, do design gráfico e da citação para criticar a sociedade de consumo, a classe média e as estruturas de poder. O poeta promove, assim, uma estética da pilhagem, por meio de colagens e interferências das mais diversas naturezas.
‘Modalidades de interação lingüística’
Como metodologia de trabalho, utilizaremos como principais arcabouços teóricos de sustentação argumentativa os conceitos de ‘intermidialidade’ e ‘literatura como mídia’, desenvolvidos respectivamente por Claus Clüver (2006) e Hans Ulrich Gumbrecht (1998), que servirão de operadores de leitura para compreender como os vícios do fazer publicitário são colocados em xeque pela literatura corrosiva de Sebastião Nunes. Também serão dignos de apreciação em nossa pesquisa as concepções de literatura apregoadas por Antonio Candido (1995), Jean Paul Sartre (1999), Alfredo Bosi (2002), Joel Rufino dos Santos (2004), além dos princípios reguladores da linguagem publicitária, assinalados por Sal Randazzo (1996), João Anzanello Carrascoza (2002), Nelly de Carvalho (2002), Marilde Sievert (2003), Patrícia Burrows (2005).
A intermidialidade é uma noção bem mais recente em relação aos Estudos Interartes, pois busca incluir em sua linha de interesse não só a relação entre a Literatura e as Belas Artes, mas também a relação entre àquela e o campo midiático. Considerando o princípio nobre da ‘iluminação mútua entre as artes’, que deve ser a matriz dos estudos de Literatura Comparada, segundo Ulrich Weisstein (apud CLÜVER, 2006,12), com o desenvolvimento dos meios de comunicação em escala planetária, a partir dos anos 60 do século 20, o mundo passou a ser compreendido como uma ‘aldeia global’, conforme sentenciou Marshall McLuhan (1969). Esta percepção do teórico canadense, associada ao princípio, defendido por ele, de que ‘o meio é a mensagem’, se apresentaram como sugestivas formulações provenientes de um sintoma de adaptação a um tempo em que as fronteiras entre as linguagens estavam e ainda estão cada vez mais dissolvidas. Como produto da modernidade, tal fenômeno gerou dentre outros feitos o cinema, as instalações, as performances, as artes interativas, e se radicalizou com a tecnologia digital. Em um site, por exemplo, é possível encontrar informações em forma de música, texto, imagem e animação. São várias linguagens reunidas no mesmo meio. Diante desse contexto multimidiático, na interface da palavra ou da poesia com outras linguagens, encontram-se, no nosso entender, aproximações e distanciamentos entre diversos suportes de comunicação (mídia enquanto meio) e matrizes discursivas diversificadas (mídia enquanto conteúdo).
O reconhecimento desse desenvolvimento contido nas tecnologias da informação sustenta a noção recente de que a intertextualidade também pode ser compreendida como intermidialidade (CLÜVER, 2006, 14). Diante desses aspectos, é de suma importância explicitar o conceito de mídia com o qual estamos trabalhando, a saber: ‘‘mídia’ é aquilo ‘que transmite para, e entre, seres humanos um signo (ou um complexo sígnico) repleto de significado com o auxílio de transmissores apropriados, podendo até vencer distâncias temporais e/ou espaciais’’ (BOHN; MÜLLER; RUPPERT apud CLÜVER, 2006, 24). Partindo desse pressuposto, compreender a literatura e a publicidade como mídias, tendo como foco a produção poética de Sebastião Nunes voltada para a crítica da propaganda, faz sentido quando também se considera tais estatutos expressivos como ‘modalidades de interação lingüística’, conforme ressalta o teórico Hans Ulrich Gumbrecht (1998, 308).
‘Sátiro multimídia’
A aproximação entre os estudos literários e as manifestações midiáticas traz à tona inúmeros questionamentos: primeiro, pela impossibilidade em se apontar um único meio de comunicação que assuma totalmente o caráter literário, e, depois, por estarem envolvidos, nessa discussão, conceitos bastante imprecisos, tais como as próprias considerações sobre em que consistem os termos literatura e mídia. Em contrapartida, essa aproximação aparece, cada vez mais, como pertinente para os estudos literários quando se tem em vista o interessante e renovador diálogo estabelecido entre a literatura contemporânea e os diversos meios de comunicação, além da ressonância e dos desafios provocados por meio das transformações aceleradas pelas tecnologias midiáticas no contexto literário.
Em Modernização dos sentidos (1998), Gumbrecht, retomando o trabalho do pesquisador canadense Marshall McLuhan sobre os fenômenos comunicativos, desenvolve um panorama da história da literatura que parte da perspectiva dos mutáveis meios de comunicação como elementos constitutivos das estruturas, da articulação e da circulação do sentido. No mencionado estudo, Gumbrecht formula a teoria das materialidades da comunicação. Essa teoria tem como pretensão pôr em evidência a expressão (materialidade) em detrimento do conteúdo (significado) e, para isso, esse teórico parte de um histórico da tradição hermenêutica ocidental com o intuito de mostrar que, há séculos, existe uma hegemonia da interpretação e uma desconsideração à materialidade da comunicação. Dessa forma, Gumbrecht julga que o estudo dos meios de comunicação, sua dinâmica e o impacto desses sobre a literatura, configuram-se em uma maneira de analisar a literatura, atribuindo valor extra à materialidade da comunicação literária, restringindo, de certa forma, a prioridade atribuída à interpretação (GUMBRECHT, 1998, 137).
Mesmo apreciando a metodologia desenvolvida por Gumbrecht, que teve como objetivo destacar a importância das mídias para a viabilização da literatura, pretendemos aproveitar de maneira conjunta a articulação existente entre a materialidade e o significado para empreender o exercício de compreender os poemas de Sebastião Nunes, a partir de um operador conceitual aqui chamado de literamídia. Os textos do poeta mineiro se apresentam na nossa leitura como composições envolvendo títulos ou versos-slogans, poemas-anúncios e outdoors-poéticos. Sustentamos tais concepções a partir do projeto literário deste ‘sátiro multimídia’, sintetizado com maestria por Fabrício Marques de Oliveira:
Avaliações contundentes
A crítica principal do autor é dirigida aos jogos de poder, à idiotização da classe média condenada à ilusão do consumismo. Para efetivar essa crítica e causar certo estranhamento ao leitor, o autor utiliza-se de apropriações parodísticas dos discursos publicitário, jornalístico e fotográfico, apropriações metalingüísticas, colocando sob suspeita o próprio fazer poético e a poesia de um modo geral, além de praticar intervenções no design gráfico e no campo da perigrafia do texto (2005, 110).
Em termos de texto e imagem, a forma e o conteúdo do trabalho de Sebastião Nunes são responsáveis pela relação friccional (não-contratual) que articula certo enquadramento do fenômeno publicitário sob a lente provocadora da literatura de auto-reflexão. Verificam-se nos poemas em questão elementos caros à intermidialidade, conforme destaca Claus Clüver, tais como: ‘problemas de gênero e transformações temáticas; fronteiras entre mídias (formas e técnicas estruturais, tendências estilísticas); aspectos transmidiáticos como possibilidades e modalidades de representação, expressividade, narratividade’ (2006, 16). Nessas relações intermidiáticas, avalia Clüver, estão compreendidos os processos de transposição de uma mídia para outra e a própria união ou fusão de mídias. Tais operações fazem parte da estrutura e da rede de significados presentes nos textos de Sebastião Nunes. Compreendendo tal conjunto de escritos como ‘corpo que traduz códigos de outros corpos e que inaugura diferenças’ (CASA NOVA, 2008, 111), partiremos deste norteador caro à abordagem comparativista para atestar que o fenônemo publicitário é traduzido de maneira literária, a partir de uma perspectiva crítica concentrada não em reproduzir ou apresentar fielmente ou integralmente o mundo fascinante da propaganda, mas sim enfatizar e representar suas operações mais turbulentas de incentivo persuasivo à prática do consumo. Por isso, mais do que atestar as relações entre a literatura e a publicidade, analisaremos as ‘ralações’ entre esses dois campos, conforme sugere a linha de estudos comparados proposta por Vera Casa Nova (2008).
Para comprovar tais observações, passemos à interpretação dos quatro textos mencionados de Sebastião Nunes, que estão presentes no livro intitulado Somos todos assassinos (1995), no qual o propósito do autor é o de se apropriar do próprio discurso publicitário para rasurá-lo a partir da construção de uma ‘literatura proscrita’ que, segundo Antonio Candido (1995), significa ‘a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominantes’. Como um dos integrantes desta mobilização na contracorrente da ideologia dominante, destacamos para efeito do nosso estudo a crítica da publicidade presente na poesia de Sebastião Nunes. Trata-se de uma literatura projetada para fiscalizar eticamente a atividade propagandística, a partir do apontamento das lacunas falaciosas presentes no discurso publicitário e da formação de leitores críticos e de consumidores conscientes, simultaneamente. Para tanto, são necessárias avaliações contundentes em relação à prática do consumismo, ao fetichismo da mercadoria, ao desenvolvimento do individualismo, ao desempenho exclusivamente materialista, à objetificação do sujeito e à personificação do produto. Como mídia-alvo, a publicidade é apresentada pelo transgressor ângulo de seus vícios, operado pela mídia-fonte conduzida pela literatura de Sebastião Nunes.
Marketing e comunicação persuasiva
Requisitar a literatura para compreender criticamente o fenômeno publicitário se justifica por uma série de premissas. É preciso, primeiramente, reconhecer o valor da literatura como elemento-chave para a decifração dos significados ocultos por trás das aparências do real. Nesse sentido, Jean Paul Sartre (1999) estipula como finalidade última da literatura a substituição da arte de exis – de consumo, de deleite ou entretenimento – por uma arte de práxis – de ação na história e sobre a história, tendente a modificar as estruturas da sociedade humana. A estética sartriana, embora tenha provocado uma série de objeções, é uma das tentativas mais consistentes de atribuir à arte literária uma revelância político-social.
Otto Maria Carpeaux, a nosso ver, amplia o foco sartriano, ao destacar as sutilezas que devem ser levadas em consideração, quando se trata da sofisticada relação entre literatura e sociedade, sendo aquela focalizada dentro de uma perspectiva ampliada, ou seja, para além da condição de alegoria ideológica. Eis a contribuição de Carpeaux para o estudo dos compassos e descompassos estéticos e políticos, envolvendo os escritos de ficção e o processo cultural:
A literatura não existe no ar, e sim, no Tempo, no tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir, mas não acompanhar (…) A relação entre literatura e sociedade não é mera dependência: é uma relação complicada, de dependência recíproca e interdependência dos fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e dos fatores materiais (estrutura social e econômica) (apud BOSI, 2002, 7).
Considerando os escritos de ficção como ‘individuações descontínuas do processo cultural’, conforme salienta Alfredo Bosi, é preciso compreender que nestas individuações podem ser encontradas ‘tanto reflexos (espelhamentos) como variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo’ (BOSI, 2002, 10). Na decomposição dos ‘clichês ideológicos’ – a exemplo da publicidade – encontra-se, a nosso ver, uma importante manifestação da ‘singularidade infinita e indefinida da obra literária’ (BOSI, 2002, 8; grifo do autor). Conforme ressalta, poeticamente, o escritor e historiador Joel Rufino dos Santos, a literatura tira do esquecimento ‘as trocas invisíveis no escuro da noite, onde não chega o poder do Mercado ou do Estado. Este é o objetivo da literatura: matrimônios. Matrimônio é o que foi escondido pelo patrimônio, assim como o produto esconde o processo pelo qual se fez’ (2004, 73). A partir dessas concepções, reforçamos a tese quanto à existência de um fórum privilegiado de discussões culturais, promovido pela literatura, ao fazer ganhar relevo – no caso específico deste trabalho – não a atividade publicitária em si, mas o que há contido em seus bastidores, com destaque para os seus vícios ocultados pela hegemonia midiática e produtiva. Tal exercício de crítica da mídia publicitária se faz urgentemente necessária, principalmente se consideramos alertas como o de Sebastião Nunes, em Somos todos assassinos: ‘não cabe à publicidade, como porta-voz e ponta de lança do capitalismo, levantar problemas que ponham em risco o sistema’ (1995, 62). Cabe destacar que a publicidade ocupa papel central como manifestação da cultura massificada, já que constitui uma das ferramentas de comunicação mais utilizadas pelo marketing4, justamente por consistir em uma técnica de venda em escala de massa, baseada em artifícios de persuasão e estratégias de convencimento, que visa conquistar a atenção do consumidor e a sua ação de compra. Nesse sentido, foi levada em consideração a advertência feita por Neusa Demartini Gomes de que ‘num conceito moderno é impossível falar de publicidade sem fazer referências ao marketing e à comunicação persuasiva’ (2003, 13).
‘Erotismo de publicidade’
Percebemos nos textos de Sebastião Nunes uma arte literária empenhada em desmistificar o poderio persuasivo da publicidade, oferecendo ao leitor teses reflexivas a respeito dos desencantos reais que são velados pelos encantos virtuais acerca do que se almeja divulgar como belo, necessário e importante, de acordo exclusivamente com os interesses mercadológicos dos anunciantes. A literatura engajada produzida pelo poeta mineiro se mostra um terreno fértil no qual se processa, estética e politicamente, um debate radical sobre operações publicitárias inclinadas a favorecer o mercado em detrimento do desenvolvimento social; o alcance publicitário em detrimento da qualidade do produto; o fetiche que reveste a mercadoria em detrimento do seu valor de uso; o status do usuário promovido pela grife do produto em detrimento da promoção da auto-estima do indivíduo.
Para comprovar tais apontamentos, vejamos o enunciado do nosso primeiro texto de análise – ‘Classificados: corações e mentes’:
Avaliando a disposição gráfica do poema, destacamos o mix midiático desenvolvido por Sebastião Nunes. O termo ‘classificados’ centralizado compõe o duplo papel de título do poema, em termos literários, e de vinheta ou chamada, se utilizarmos o jargão da comunicação. Tradicionalmente, os classificados são constituídos de pequenos anúncios de oferta e procura de bens, utilidades e serviços, feitos geralmente por particulares e publicados em seção especializada de um jornal ou revista (SILVA, 2005). Na esteira do pensamento de Claus Clüver (2006), podemos dizer que a relação intermidiática nesse texto de Sebastião Nunes ocorre na transição entre gêneros textuais e nas transformações temáticas, visto que o classificado tradicional, presente na mídia comunicativa, é subvertido e transformado em um classificado nada convencional, de matriz literária, cujo foco é operar comercialmente bens intangíveis, ou seja, mentalidades e sentimentos. Como sintoma da mercantilização em larga escala que afeta também valores até então inalienáveis ou inegociáveis, corações e mentes recebem, na esfera da sociedade de consumo, o tratamento de produtos ou mercadorias que passam a ser processados como bens comerciais. Sendo novos ou usados, razão e emoção, lógica e retórica, representados, respectivamente, por corações e mentes, entram no embalo propagandístico e passam por um desinvestimento em termos abstratos com o objetivo de fazerem parte do circuito materialista, em um processo de ‘coisificação’ do sujeito e personificação do objeto5. Os verbos presentes no linguajar comercial – ‘compramos, trocamos, vendemos, reformamos, adaptamos’ (NUNES, 1995, 36) – sustentam a proposta de condicionar a satisfação do pensamento e do afeto humano à competência aquisitiva da produção capitalista divulgada pela publicidade. Trata-se do empobrecimento ético dos indivíduos envolvidos pela ‘dança macabra das coisas sólidas’, como já salientava Machado de Assis (1997, 407), em crônica publicada em O Cruzeiro, de 01/09/1878. Naquela oportunidade, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas já criticava o ‘erotismo de publicidade’ que já dominava a cena social brasileira em pleno capitalismo escravocrata vigente no século 19, sendo os desdobramentos daquele sistema ainda hoje perceptíveis.
A ‘economia libidinal’
Diferentemente da disposição gráfica convencional, na qual há vários classificados disputando espaço na página de um jornal, o anúncio proposto ironicamente por Sebastião Nunes encontra-se isolado em meio ao espaço branco. Especularemos várias hipóteses de interpretação do significado desse ‘vazio desconcertante’. Trata-se, talvez, de um classificado destacado dentre os demais, devido à oferta surpreendente e ao mesmo tempo absurda ou inusitada de inserir explicitamente na rota de transações comerciais corações e mentes. Tal fato pode ter espantado a concorrência que não teve condições de apresentar uma proposta que pudesse derrubar o anúncio de procura comercial de ‘corações e mentes’, impedindo a existência de outras ofertas naquele classificado. Ou ainda, o anunciante pode ter comprado todo o espaço daquela página apenas para divulgar o seu produto com exclusividade naquele espaço dos classificados. Podemos também admitir como hipótese o fato de que os outros anúncios presentes nos classificados conseguiram desencadear os seus efeitos de induzir o leitor/consumidor à procura do produto divulgado, e, por isso, já não se encontram mais presentes na página. Em contrapartida, encontra-se ‘empacada’ a negociação de corações e mentes, proposta pela ‘agência de grande porte’, o que justifica a permanência solitária deste anúncio nos classificados.
Quando Sebastião Nunes revela, por meio da assinatura do classificado, que a ‘agência de grande porte’ é o anunciante da proposta publicitária de comercialização de corações e mentes, o autor destaca as artimanhas do texto publicitário. Este é a associação de uma ou mais ideias que apelam, simultaneamente, para o racional e o emocional das pessoas, com argumentações sedutoras através da palavra. Segundo Marilde Sievert, ‘é ponto pacífico que a maneira mais segura de induzir o público para a aquisição de qualquer coisa é apelar para as suas emoções’ (2003, 21). Propaganda eficiente vende, assim, não só produtos, mas principalmente vantagens, desejos, sonhos que possam ser alcançados por meio do produto, da marca e do serviço anunciados.
Ciente de tais estratégias, Sebastião Nunes, rasurando as fronteiras intermidiáticas e explorando aspectos transmidiáticos, se aproveita de sua atuação interdisciplinar, como ex-publicitário e poeta, para destacar, às avessas, a partir da formulação de um classificado literário as coordenadas do caminho publicitário, quais sejam: a persuasão (representada pelo ‘coração’) e o convencimento (simbolizado pela ‘mente’). Explica João Anzanello Carrascoza (2002) que um discurso que deseja convencer é dirigido à razão por meio de raciocínio lógico e provas objetivas, podendo atingir um ‘auditório’ universal. O discurso que deseja persuadir tem um caráter mais ideológico, subjetivo e intemporal: busca atingir a vontade e o sentimento do interlocutor por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis, visando obter a sua adesão, dirigindo-se assim mais para um ‘auditório’ particular. Convencer é, pois, um esforço direcionado à mente, à psique; persuadir é domínio do emotivo, próprio de Vênus, deusa do amor, daí a sua proximidade com a arte da sedução. Nesse sentido, é curioso notar que ‘o termo alemão para publicidade (die Werbung) significa literalmente a procura amorosa. Der umworbene Mensch tanto é o homem investido pela publicidade como o homem solicitado sexualmente’ (BAUDRILLARD, 2002, 182, grifos do autor). Reside na procura amorosa do consumo sustentada pela publicidade um dos componentes primordiais para o fenômeno descrito por Sigmund Freud como ‘economia libidinal’ (apud STIEGLER, 2008, 34).
Rentabilidade e sustentabilidade
Diante de tais norteadores, compreendemos a avaliação de Carrascoza, a respeito do exercício retórico de promoção do consumo via propaganda:
Não há dúvida entre os estudiosos da comunicação de que a publicidade é um exemplo notável de discurso persuasivo, com a finalidade de chamar a atenção do público para as qualidades deste ou daquele produto/serviço, ou de uma marca em caso de campanhas corporativas. Seu objetivo preclaro é não apenas informar, mas informar e persuadir […] qualquer peça publicitária intenta alcançar um alto grau de persuasão, uma vez que idealmente deve desencadear uma ação, o ato de consumo, ainda que num futuro impreciso (2002, 18).
A comunicação persuasiva, da qual o marketing faz uso constante, conferiu à publicidade o status de ‘linguagem da sedução’, segundo Nelly de Carvalho (2002), pois, conforme salienta Sal Randazzo, em virtude do emparelhamento cada vez maior dos produtos quanto às suas capacidades técnicas de atender ao consumidor, ‘as batalhas mercadológicas realmente importantes estão acontecendo em campo psicológico: uma luta para conseguir uma fatia maior do coração do consumidor’ (1996, 45). Os profissionais de marketing reconhecem cada vez mais que para manter e/ou ampliar a fatia de mercado, também é preciso fazer uso de artifícios persuasivos para conquistar a ‘fatia do coração’ do público-alvo. Ao privilegiar por excelência o coração, terreno emocional das adesões sentimentais, em relação à cabeça, espaço da reflexão crítica, o marketing está mais empenhado em persuadir do que convencer.
Os classificados poéticos de Sebastião Nunes trazem à baila conflitos éticos que representam a sociedade em situações-limite. Munida deste propósito, tal literatura se comporta como importante operador de leitura e de compreensão das condutas que hegemonicamente marcam o campo publicitário. Trata-se de uma aguçada crítica a uma sociedade marcada por apelos publicitários. Estabelecendo uma correlação entre verdade e lógica, e uma outra envolvendo a opinião e a retórica, podemos compreender que o discurso publicitário é de cunho retórico. Na esteira do pensamento de Aristóteles (apud FIORIN, 2007), chegamos à conclusão de que os publicitários abrem mão dos ‘raciocínios necessários’ que sustentam a Lógica para fortalecer o seu discurso persuasivo a partir de ‘raciocínios preferíveis’. A partir das teses propagandísticas que articulam a promoção de seus feitos e a omissão de suas limitações, o mercado de anunciantes busca no primeiro plano a rentabilidade, deixando a sustentabilidade a reboque daquele objetivo.
O argumentativo falacioso da National
Partiremos agora para a análise do segundo e terceiro poema de Sebastião Nunes – ‘Prometa o paraíso para criar o inferno’ e ‘Você já contou sua mentira hoje’:
Utilizando como parâmetro os elementos da intermidialidade ressaltados por Claus Clüver (2006) e já enumerados ao longo desse trabalho, podemos compreender os mencionados textos como uma espécie de versos-slogans compreendidos em uma estrutura de outdoor-poético. Trata-se de uma intervenção artística diante de uma estrutura clássica do mundo da propaganda. As orações em destaque atendem bem ao seguinte princípio literário e também publicitário tão em evidência na era da condensação enunciativa: no mínimo de espaço, o máximo de expressão. Tal parâmetro de construção textual é indicado tanto na composição de slogans como na de aforismos ou de micro-composições. Nos dois escritos de Sebastião Nunes destacados anteriormente, os versos-slogans aparecem em letras garrafais e não prescindidos de imagem. Mais uma vez ganha relevância o espaço em branco, para que o comando textual não tenha suas atenções públicas divididas com outros elementos visuais. As telas em branco podem representar também o ‘apagão mental’ que promove a prática do consumo de forma mais instintiva e, portanto, menos racional e crítica. Podemos compreender a promessa do paraíso (explicitada pela publicidade) e a conseqüente criação do inferno (omitida pela propaganda), segundo a mensagem transmitida no poema-anúncio de Sebastião Nunes, como alegorias relativas aos abusos cometidos pelo marketing persuasivo que propaga de maneira sedutora os sonhos de consumo sem dimensionar o quanto faz despertar os pesadelos da carência do consumidor. Veiculam-se midiaticamente a noção de compra apenas como investimento e o poder financeiro do comprador somente como fonte inesgotável e abundante de recursos (noção de lucro), não havendo a mesma atenção para reportar que a mesma operação, na realidade, se traduz em despesa e como tal precisa ser quitada, para que não sejam gerados transtornos ao consumidor e ao sistema produtivo (noção de prejuízo).
Considerando o cenário em que a propaganda é dirigida pelo princípio da ‘manipulação disfarçada’ (CARVALHO, 2002, 10), nota-se que o objetivo do anunciante é o de convencer e seduzir o público-alvo diante dos encantos apresentados pelo produto, pelo serviço e pela marca, exacerbando suas qualidades e omitindo suas limitações. Tal atitude corriqueira presente no mundo publicitário oferece margem suficiente para Sebastião Nunes alfinetar publicitários e anunciantes com a seguinte poesia-slogan, de natureza indagora e tom indignado: ‘Você já contou sua mentira hoje?’ (NUNES, 1995, 55). Este poema-anúncio, colocado lado a lado à peça publicitária da National, sugere ao leitor que o comunicado daquela publicidade presente no mundo real apresenta um forte apelo tendencioso ou até enganoso, pois o anunciante induz o público a crer que a gravação ‘com um toque profissional’ é uma especialidade exclusiva da marca anteriormente mencionada. Subtende-se que as concorrentes são amadoras. Ou seja, o poeta demonstra entre as bordas do discurso publicitário, um aspecto argumentativo falacioso da National que, ao se afirmar no mercado de gravadores, precisou nas entrelinhas negar o potencial de outras empresas do ramo para se sustentar como a marca de ponta no ramo da gravação profissional. Porém, quem afirma tal propósito é o próprio interessado que, a favor de uma causa própria, sustenta sua preferência como se fosse uma verdade válida para todos.
‘Manipulação disfarçada’
Por conta de artimanhas dessa natureza, infere-se do questionamento de Sebastião que o mundo publicitário sofre de uma anomalia que podemos chamar de ‘Complexo de Pinóquio’, em alusão ao clássico boneco de madeira acometida pela mania de mentir que acarretava no crescimento do seu nariz. Em sentido semelhante, Jean Baudrillard (2002) sugere que a linguagem publicitária se articula a partir da ‘lógica do Papai Noel’ – sabe-se da inexistência do personagem natalino no mundo real, mas se deve preservar a lenda em torno daquela figura mítica, uma vez que ela é uma das responsáveis diretas pelo imaginário fantasioso que cerca aquele especial momento aparentemente sagrado e essencialmente profanizado, por conta do consumo bastante estimulado naquela oportunidade. Trata-se, portanto, da era da imagem, na qual os indicadores individuais e coletivos valem pela sua representação, e não mais pela sua significação. Para Baudrillard, esta nova era instaurada pela imagem rompe todos os limites da farsa e falsificação. Em relação a esse tema, é emblemática esta tirinha do cartunista Ziraldo, que ironicamente, por meio do personagem ‘Menino Maluquinho’, afirma que a publicidade ocupou o lugar da mentira como antônimo da verdade:
Podemos verificar como o ‘Complexo de Pinóquio’ ou a ‘Lógica do Papai Noel’ se faz presente na promessa de satisfação imediata e de conforto garantido, projetada pela linguagem sedutora do universo publicitário, a partir de um outro poema de Sebastião Nunes, cujo título é ‘A felicidade bate à sua porta’, e um anúncio compilado por Ulisses Infante (1998) que serve como sustentação empírica para as argumentações desenvolvidas poeticamente pelo ‘sátiro multimídia’.
O título do poema em destaque foi diagramado e destacado em letras garrafais, funcionando como uma espécie de slogan e colocado dentro de uma estrutura retangular que mais lembra um outdoor. A partir desta construção, podemos compreender o texto enquanto poema-anúncio. Para um melhor entendimento do título, o leitor precisa ter conhecimento do uso da crase e da regência verbal. Sabemos que bater a porta (sem crase) significa fechá-la com força, o que pode demonstrar agressividade e falta de educação de quem fez o ato. Se nos detivermos à felicidade prometida pelos anúncios e exposta no poema, esta postura violenta não colabora com o sucesso presente, por sua vez, nas formas mais ‘leves’, sutis e sofisticadas de convencer e seduzir o receptor para a ação de compra de um determinado produto, marca ou serviço. Sebastião Nunes optou pelo ‘bater à porta’ (com crase), por conta do sentido que esta construção oferece, qual seja: bater junto à porta, para que possam abri-la e atender prontamente o chamado. Aplicada ao poema, a felicidade incorporada pelo produto anunciado pede passagem para entrar no lar ou na ‘mente’ do consumidor, com o objetivo de ser bem acolhida por ele, conforme manda o figurino. Adotando o procedimento da ‘manipulação disfarçada’ (CARVALHO, 2002, 10), o anunciante, mesmo não tendo autoridade para ordenar o uso de tal produto, adota uma publicidade projetada em um estilo, ao mesmo tempo enfático e sedutor, para ‘sugerir’ ao público que o melhor para a sua felicidade é fazer a compra do item anunciado.
Relações suspeitas
Eis o corpo do poema de Sebastião Nunes: ‘Todo mundo é feliz / nos anúncios de cigarro./ Todo mundo é feliz / nos anúncios de bebida./ Todo mundo é feliz / nos anúncios de carro./ Todo mundo é feliz/ nos anúncios de tudo./ A melhor garotapropaganda / da publicidade// é a felicidade’ (1995, 63). Tais versos levarão o poeta à conclusão de que ‘a melhor garotapropaganda da publicidade é a felicidade’ (1995, 63). Infere-se desta afirmação categórica (podendo também ser compreendida como verso-slogan) que a tristeza, mesmo fazendo parte da condição humana, está riscada do mapa comercial, pois ela pode contribuir para estimular as resistências do potencial consumidor em adquirir tal mercadoria associada àquele sentimento. Nesse sentido, ressalta a professora Patrícia Burrows:
‘Não convém […] expor o público a dificuldades ou desconfortos cujo efeito poderia ser afastar em vez de atrair o potencial consumidor. Também é preciso evitar, contornar ou apaziguar quaisquer questionamentos inconvenientes, pois esses abrem brechas para a pausa e a reflexão e arriscam desviar o consumidor da ação que se quer induzir (2005, 210-211, grifos meus).’
Ao ressaltar o papel da felicidade como carro-chefe responsável pelo sucesso da sedução publicitária, entendemos que o poeta mineiro salienta que, ao contrário do panorama caótico presente na vida cotidiana, na propaganda é criado e exibido um mundo perfeito e ideal. Tudo são luzes, calor e encanto, numa beleza perfeita e não-perecível. Nesse sentido, chega-se no anúncio real, destacado por Infante (1998), ao exagero retórico ou ilusionista de o anunciante construir um slogan falacioso que estabelece uma relação enganosa e absurda entre a felicidade como ‘estado de espírito’ e o Cartão Sollo como ‘guia espiritual’. Riqueza de espírito, nesse caso, é prometida, caso o consumidor faça uso do instrumento anunciado para que, no passe de mágica, ele se pareça com o garoto-propaganda: sorriso aberto, traje de gala e cheio de presentes. A felicidade existencial, nesse caso, deve andar à reboque da felicidade patrimonial: ‘para levantar o astral e atrair a felicidade, você só precisa de seu Cartão Sollo […] Por isso, ao invés de ficar aí meditando, concentre-se e visualize todos aqueles shopping centers, restaurantes e lugares maravilhosos onde você poderia estar neste momento com seu Cartão Sollo’ (1998, 54). Diante do glamour prometido pelo mundo encantado da propaganda, independente do produto, a felicidade é sempre convocada pelos anunciantes para promovê-lo, mesmo que sejam no mínimo suspeitas as relações entre as propriedades do objeto anunciado e o princípio de bem-estar do indivíduo.
Os princípios da publicidade para criticá-la
A apropriação das técnicas publicitárias fornece a Sebastião Nunes os próprios meios de disparar contra a poesia e a própria publicidade. Na visão crítica do poeta, o consumo se revela um campo político e poderoso elemento de dominação social, na medida em que expõe uma sociedade produtora de privilégios, e, intrínseca a essa sociedade, a publicidade, que ao mesmo tempo satisfaz e fomenta os desejos dos consumidores. Nesse mundo em que a publicidade pode ser lida como um ritual, consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo.
Nos textos escolhidos de Sebastião Nunes, notamos de forma incisiva o caráter dessacralizador do poema que se nega enquanto poema, ao mesmo tempo em que busca legitimação na rede de referências que perpassam o texto. Trata-se de uma rede dinâmica e viva, que atua a plenos pulmões sobre e com textos e imagens. São citações tanto em nível verbal quanto não-verbal, palavras que contaminam imagens, imagens que contaminam palavras. Essas apropriações ocorrem num palco em que não há uma hierarquização entre palavra e imagem. O que está em jogo na estética desenvolvida por Sebastião Nunes é um gênero híbrido, em que imagem e texto verbal têm a mesma importância, integrados um ao outro. A equivalência entre ambos apresenta uma relação de complementaridade, ou de determinação recíproca. Nessa visualidade – que se define pela soma de todos os elementos do poema – observa-se a superposição de diagramações, em que são estabelecidos níveis de integração entre a imagem e a palavra, diluindo suas possíveis fronteiras. Nessa encruzilhada sígnica, palavra e não-verbal se chocam, se contaminam, em igualdade de forças. Apropriando ao mesmo tempo de técnicas literárias e publicitárias, numa operação intitulada neste ensaio como autêntica manifestação da literamídia, Sebastião Nunes, por meio de versos-slogans, poemas-anúncios e outdoors poéticos, mina, internamente, a própria linguagem da propaganda. Ironicamente, o autor se vale dos próprios princípios (ou da falta de) da publicidade para criticá-la.
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Jornalista, doutorando em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG (bolsista de doutorado do CNPq), Belo Horizonte, MG