Um dos maiores fotógrafos da história na verdade queria ter sido escritor: registrar imagens com palavras, não com câmeras; deslizar a pena sobre o papel em vez de disparar o obturador sobre a realidade. E quem se dedicar à leitura de Ligeiramente fora de foco poderá dizer sem medo de errar que, tivesse escolhido a Olivetti em vez da Contax ou da Rolleiflex, Robert Capa acabaria sendo, senão um belo escritor, pelo menos um memorável contador de causos jornalísticos.
Na verdade, foi. O ‘problema’ é que suas fotos foram ainda mais pungentes que sua narrativa – direta, objetiva e lancinante. Quando escreve, Robert Capa consegue ser hilário nos momentos que permitem piadas (a maioria delas sobre si mesmo) e derramar sensibilidade quando o respeito perante a dor alheia deve prevalecer.
Ligeiramente fora de foco é um diário de bordo, um livro de viagens. Diz-se que Robert Capa o escreveu pensando em transformá-lo em roteiro de cinema. Pode ser, já que o fotógrafo tinha bons contatos em Hollywood: Capa foi amante da atriz sueca Ingrid Bergman, três vezes agraciada com o Oscar, com quem viveu na cidade, e trabalhou como autor e produtor para a International Pictures.
Talvez por isso existam especulações de que nem tudo que está no livro seja verdade. Quando lançou a primeira edição de Ligeiramente fora de foco, em 1947, o próprio autor admitiu que, diante da impossibilidade de transcrever o que realmente aconteceu, tomou a liberdade de esgarçar os limites da verdade. Ao futuro leitor de Robert Capa, basta saber que o calhamaço de 293 páginas publicado no Brasil pela editora Cosac Naify, no final de 2010, revela um mestre da fotografia humilde e sarcástico: um homem capaz de feitos jornalísticos admiráveis que não faz a menor questão de se levar a sério.
Nem quando comete a ousadia de desembarcar com as tropas aliadas na Normandia ocupada pelos nazistas e vê gente morrendo por todos os lados com tiros de fuzil e estilhaços de granada; nem quando tromba com corpos boiando ao sabor das ondas; nem quando divide com soldados a iminência da morte no epicentro da história mundial; nem quando faz imagens que se tornariam imediatamente clássicas – nem mesmo aí Robert Capa se permite autoelogios.
Pelo contrário, prefere fazer humor com a própria desgraça. O fotógrafo não levou nenhum tiro durante sua audaciosa cobertura do Dia D, porém viu o laboratório da revista Life, para quem estava trabalhando, simplesmente queimar o filme com as 106 imagens da batalha mais dramática da Segunda Guerra. Apenas oito fotos se salvaram e, ainda assim, tremidas pelo excesso de temperatura.
‘Fiquei sabendo que as fotos que eu tinha tirado eram as melhores da invasão’, escreve o fotógrafo piadista. ‘Mas o animado assistente de laboratório, ao secar os negativos, havia usado calor demais, e as emulsões derreteram e escorreram diante de todos os olhos do escritório de Londres. As legendas abaixo das fotos borradas pelo calor diziam que as mãos de Capa estavam tremendo muito.’
Estrangeiro inimigo
‘Um fotógrafo húngaro no exército dos Estados Unidos em plena campanha contra Adolf Hitler’, poderia ser um bom subtítulo para o livro de um combatente estrangeiro cujos tiros, ao invés de matar, concediam vida eterna a momentos que, não fosse sua câmera, se perderiam na multiplicidade da guerra.
Naquela época, húngaro significava ‘estrangeiro inimigo’ para o governo ianque. Tanto que Robert Capa chegou a receber um comunicado do Departamento de Justiça quando morava em Nova York: deveria entregar suas câmeras, binóculos e armas de fogo – se tivesse. Imediatamente. Sua nacionalidade sugeria que se tratava de um espião em potencial.
Mas não seria a política migratória de Eisenhower que conseguiria deter Endre Friedmann. Antes de se tornar Robert Capa, aos 17 anos o jovem Endre fora preso por suas atividades estudantis contra o regime protofascista do almirante Miklós Horthy. Passou uma noite na cadeia até que os contatos de seu pai conseguissem libertá-lo. A condição era que Endre deixasse a Hungria. O senhor Friedmann consentiu e mandou seu filho para a Alemanha em 1931. Endre se matriculou numa escola de jornalismo, conseguiu emprego numa agência fotográfica e realizou sua primeira cobertura internacional ao retratar o exílio de León Trotski na Dinamarca.
Com a ascensão de Adolf Hitler, porém, Endre trocou a Alemanha pela França. Em Paris conheceu outros fotógrafos, com os quais fez amizades, como Henri Cartier-Bresson e David ‘Chim’ Seymor, com quem futuramente fundaria a agência Magnum. Também foi na capital francesa que, em 1934, Endre conheceu a também fotógrafa Gerda Pohorylle, cúmplice no amor e no golpe de marketing que criou o ‘famoso fotógrafo americano Robert Capa’ – nascido da mescla dos nomes do ator Robert Taylor e do diretor Frank Capra. Mais tarde, a namorada também mudaria de nome e passaria a se chamar Gerda Taro.
Contudo, Endre Friedmann ganharia fama real como Robert Capa aos 22 anos, e abandonaria para sempre seu nome húngaro. Tudo porque o jovem fotógrafo resolveu embarcar para a Espanha e cobrir a Guerra Civil (1936-1939). Lá, além de conhecer o escritor Ernest Hemingway, Robert Capa abriu os braços para o estrelato ao subir as montanhas da Andaluzia com o exército republicano e retratar o exato momento – l’instant decisif, de que falava Cartier-Bresson – em que um combatente é alvejado pelos fascistas e cai de braços abertos para a morte.
Sorte ou insistência?
Sem ter chegado ainda aos 30 anos, no início da Segunda Guerra, Robert Capa driblava a perseguição aos estrangeiros vivendo em Nova York. Certa manhã, estava em seu apartamento sem maiores motivos para sair da cama. Seu dinheiro havia acabado e sua única esperança era que alguém ligasse propondo um almoço ou um empréstimo. Quiçá um trabalho. O telefone não tocou, mas o carteiro lançou três cartas sob o vão da porta. Numa delas, a revista Collier’s lhe dava a notícia que ele queria ouvir: Robert Capa, que já fotografara a Guerra Civil Espanhola e a invasão japonesa da China, estava sendo convidado a embarcar dali a dois dias para a Europa deflagrada para fazer boas imagens dos combates.
Mas chegar ao front não foi tão fácil quanto descontar o cheque de 1,5 mil dólares enviado pela revista e embarcar para a Inglaterra no primeiro navio. Ligeiramente fora de foco demonstra que um bom fotógrafo não precisa apenas enquadrar bem e clicar no momento exato: é mais que necessário saber caminhar pelas adjacências da legalidade, pagar vinhos caros às pessoas certas, dar oportunos tapinhas nas costas e destilar sem freios a boa e velha lábia. Evitar a demissão também não é tão simples, e foi com muita malandragem que Robert Capa conseguiu permanecer na guerra depois de ter sido dispensado pela Collier’s e de ter perdido as credenciais do exército norte-americano.
Quando o deixaram fotografar, o ‘estrangeiro inimigo’ deu conta do recado – e as páginas de Ligeiramente fora de foco demonstram por que Robert Capa se tornou uma lenda. Suas fotos são retratos tristes, esperançosos, eufóricos e comoventes da rotina de violência na Inglaterra, na Argélia, na Sicília, na Itália, na França e na Bélgica, em combate aberto ou durante as pequenas tréguas.
Há civis escondidos em trincheiras improvisadas, mulheres se derramando aos prantos pela morte dos filhos, camponeses recebendo alegremente os soldados aliados, cidades bombardeadas, paraquedistas em ação, generais em rendição, muitos combatentes mortos… Mas nada sobre campos de concentração. Robert Capa participou de incursões pelo interior da Alemanha, claro, e justifica sua recusa em fotografar o que nenhum colega deixou de registrar.
‘Os campos de concentração estavam cheios de fotógrafos, e cada nova foto de horror servia apenas para diminuir o efeito total. Hoje, durante um breve instante, todo mundo verá o que aconteceu com aqueles pobres coitados; amanhã, poucos se importarão com o que acontecerá a eles no futuro.’
Reflexões sobre o jornalismo de guerra se espalham pelo livro e dão profundidade à obra, que deixa, assim, de ser apenas uma narrativa autobiográfica. Robert Capa tem sua própria ética sobre quando fotografar e quando encontrar algo melhor para fazer. Geralmente, encontrava distração no pôquer, no álcool ou nas paqueras.
Para um dos maiores fotógrafos da história, a fotografia não era o mais importante. O mesmo Capa que se maravilhou com a entrada triunfal dos Aliados em Paris simplesmente não bateu uma foto sequer da batalha decisiva que acabou com a guerra no front europeu: preferiu trocar a invasão de Berlim e a derrota definitiva de Hitler por um rabo de saia em Londres – sem o menor ressentimento. Afinal, como tudo na vida, jornalismo tem limites.