Naturalmente, nenhum periódico pode registrar todos os livros que surgem a cada dia. O mercado editorial brasileiro, o segundo das Américas, tendo ultrapassado o do México e o do Canadá, lança 50 mil novos títulos anualmente.
O que está em questão é: por que são resenhados apenas alguns títulos e quase sempre da mesma meia dúzia de editoras? Por que todos os grandes jornais e revistas ignoram lançamentos importantes?
Vamos a uma dessas exclusões, que atende pelo nome de Valesca de Assis, escritora do Brasil meridional que estreou em 1990 com o romance A Valsa para Medusa. Ela tem na bagagem outros dois romances igualmente muito bem escritos: A Colheita dos Dias e Harmonia das Esferas (WS Editor).
Os dois primeiros são da Editora Movimento, que sempre revelou autores do Rio Grande do Sul, onde está sediada, a começar pelo escritor que ora apresenta o novo trabalho da escritora, o igualmente gaúcho Moacyr Scliar, que ali estreou com O Carnaval dos Animais, no longínquo 1963. Valesca de Assis é autora de diversos outros livros, foi presidente do Conselho Estadual de Cultura e reside em Porto Alegre, onde ministra oficinas de criação literária.
Frutos amargos
Pois acaba de publicar Vão pensar que estamos fugindo! A história de uma viagem quase impossível (Editora Bestiário). Apesar do título comprido e desjeitoso, é um pequeno texto que, como observa Moacyr Scliar, ‘narra ao público jovem, com vivacidade, com humor e com conhecimento’ a vinda de Dom João VI para o Brasil, em 1807, sempre assinalado pela história dita oficial como 1808, ano da chegada, estratégia que evita alusões maldosas sobre a partida, uma tremenda fuga das tropas de Napoleão, já às portas de Lisboa quando o futuro rei partiu, naquele 29 de novembro de 1807. Ele era então príncipe regente.
Na última audiência que concedeu a Lord Strangford, o embaixador inglês, Dom João VI teve que ouvir o comentário de britânica precisão: ‘De acordo com nosso sistema, Alteza, a espada deve estar totalmente embainhada ou totalmente desembainhada’.
Como se soube depois, a Inglaterra veio proteger o embarque e escoltar a Família Real até ao Brasil, mas se não embarcasse, as mesmas tropas e munição serviriam para bombardear Lisboa.
Nem toda indecisão colhe frutos amargos. A estratégia de Dom João VI deu certo. O próprio Napoleão reconheceu que foi enganado política e militarmente pelo príncipe regente de Portugal. Este, traído conjugal e politicamente pela esposa, passou a viver separado poucos anos depois do casamento, que se deu quando ele tinha 18 anos, e ela apenas 10.
Bom debate
Valesca de Assis deixa voar a imaginação da romancista e os leitores degustam o que não encontram em livros de história. Assim sabemos dos piolhos, dos vômitos pelo balanço do mar, dos detritos boiando ao redor das embarcações na famosa calmaria, quando a falta de ventos imobilizava toda a frota, pela voz narrativa de quem sabe levara adiante uma boa história:
‘Nas diversas naus, cortesãos acostumados a todos os luxos tremiam de medo e náusea, abafados nos cubículos ou curvados sobre as amuradas, vomitando o que comiam’.
A fuga ou a retirada, seja lá por que nome a prefiram designar, foi o primeiro grande e heróico passo na fundação do Brasil independente. E a escritora fez deste momento decisivo de nossa História o mote para uma curta e encantadora narrativa que a ninguém deixará indiferente.
Aos leitores, um aviso: se quiserem garimpar lançamentos importantes convém ir além, muito além, aliás, do que os grandes cadernos literários publicam e do que as grandes livrarias mostram nas estantes. Como nos tempos da imprensa nanica e de O Pasquim, livros, filmes, peças de teatro, músicas etc. devem ser buscados em outros lugares. E a Internet é a redentora desses tempos de exclusões abomináveis.
Afinal, a quem a mídia quer derrotar ao proceder a tantos apagamentos? Eis um bom tema para debates, sobretudo universitários.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor e vice-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e autor, entre outros, dos romances Avante, Soldados: Para Trás (1992), Os Guerreiros do Campo (2000) e Goethe e Barrabás (2008)