Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Opus Dei processa escritora

Um caso a ser estudado e acompanhado. O Opus Dei, na França, está processando a autora do livro Camino 999, Catherine Fradier, sob a alegação de que este romance agride a imagem e a reputação da prelazia.

O livro foi publicado em março de 2007 por uma pequena editora francesa, Après la Lune, fundada há pouco mais de um ano pelo escritor Jean-Jacques Reboux. Dois meses depois do lançamento, o Opus Dei abriu um processo por difamação contra o editor e a autora. A Obra exige indenização de 30 mil euros por danos morais e a ampla divulgação de que teria havido intenção de caluniá-la.

O Opus Dei afirma que o livro em questão mistura ficção e realidade, sem alertar o leitor para a distância existente entre uma e outra. Além de mostrar o Opus Dei como uma organização criminosa, e trazer à baila o caso Matesa (1969) – escândalo político-financeiro espanhol que até hoje está mal explicado e envolveu simpatizantes da Obra –, o próprio título do livro incomoda a instituição. Camino, com suas 999 máximas, é a publicação mais conhecida do fundador, S. Josemaría Escrivá.

O advogado escolhido pela Obra é o prestigioso Alexandre Varaut, que, como tudo indica, será contratado para abrir outros processos contra quem ousar ‘difamar’ o Opus Dei. Está marcada para setembro de 2007 uma audiência preliminar entre os advogados das duas partes. Opus versus Camino. Golias versus Davi, segundo alguns jornalistas franceses.

Outros processos

O Opus Dei animou-se a abrir esse processo contra a autora e o editor de Camino 999 depois de ter conseguido, em dezembro de 2006, que a Justiça condenasse o jornal France Soir pela publicação, em 2005, de uma série de artigos sob o título ‘Revelações sobre as finanças do Opus Dei na França’.

Esta pequena vitória jurídica veio compensar a grande humilhação que a Obra sofrera em janeiro de 2005, ao perder uma ação na Justiça chilena contra a revista Opus Gay. A Obra exigia que a revista, editada pelo Movimento de Integração e de Libertação Homossexual do Chile, mudasse de nome, desfazendo o trocadilho.

A derrota no Chile explica, em parte, o modo como o Opus Dei se conduziu perante o filme O Código Da Vinci (2006). Adotou uma atitude de cautela. Nada de processar a poderosa Sony-Columbia. Com relação ao livro de Dan Brown (2003), a estratégia tinha sido diferente. A Obra aproveitou o best-seller para afirmar sua preocupação com a Igreja católica e as verdades cristãs, dizendo que o fato de o Opus Dei aparecer no romance como ‘vilão’ era algo secundário…

Já no affaire Camino 999, a Obra decidiu partir para o ataque. Na citação, o advogado opusdeico argumenta que houve um precedente importante em 2001, quando a Justiça francesa declarou difamante o romance Le Procès de Jean-Marie Le Pen (1998), do jornalista Mathieu Lindon, no qual Le Pen é apresentado como chefe de um bando de assassinos. Significativo argumento, em que o líder da extrema-direita francesa e a Obra surgem como vítimas da literatura.

Realidade ficcional ou ficção realista?

A estratégia do Opus Dei parece evidente. Trata-se de conquistar um tento judicial contra uma autora menos conhecida, de uma modesta casa editorial, num país que não seja os EUA. Vencer nestas circunstâncias é conseguir um novo ponto de apoio na jurisprudência e, então, enfrentar no futuro novos e mais fortes ‘inimigos’ que ousem produzir romances, filmes, documentários ou reportagens desabonadores.

A Obra recrimina a autora por ‘confundir ficção e realidade’. Curiosamente, toda a literatura consiste nessa mistura. E os leitores, em tese, estão cientes de que se trata de uma mistura. Nunca vi nenhum leitor de Harry Potter viajando de vassoura por aí… E quando um romance policial envolve em sua trama CIA, Nasa, FBI, polícia de Nova York, exército norte-americano, ditaduras latino-americanas, sindicalistas inescrupulosos, máfia ou o próprio Vaticano, ninguém precisa avisar ao incauto leitor que se trata de realidade misturada com ficção.

Ficção e realidade se confundem mesmo na Divina Comédia, em D. Quixote, n’Os Lusíadas… Dante, Cervantes e Camões jamais se preocupariam em acrescentar notas de rodapé para avisar aos leitores que faz parte da lógica literária criar mundos paralelos onde elementos reais e imaginação se casam harmonicamente.

O verdadeiro problema da auto-proclamada ‘Obra de Deus’ é que, habituada com a idéia de um index de livros proibidos (que a instituição impõe aos seus membros, mesmo agora, 30 anos após a Igreja católica o ter abolido), vê-se como a detentora de todos os critérios de leitura e sofre terrivelmente quando alguém a critica. Decidiu por isso recorrer ao ‘braço secular’ e impedir qualquer mácula em sua imagem, ainda que no contexto de uma construção ficcional. Ou terá a Obra receio de que a realidade ficcional acabe se mostrando uma ficção demasiadamente realista?

C’est quoi exactement, l’Opus Dei?

A pergunta é feita por Carla, protagonista de Camino 999, a outro personagem, Jacques, que responde:

‘Para todos, a Obra de Deus… Para outros, uma Igreja dentro da Igreja, Santa Máfia… o braço armado do Vaticano… Uma organização patriarcal, de índole militar, elitista e autoritária. Cultiva o gosto pelo segredo e se considera destinada a salvar a Igreja católica. É a mais forte concentração de poder radical na Igreja. Trabalha na penumbra, interessando-se pelas classes mais ricas, pelos intelectuais… Exerce uma grande influência nas esferas políticas, econômicas e culturais. A Obra dispõe de um sólido capital financeiro para tocar suas atividades através de fundações disseminadas em todos os continentes…’ (p. 258)

Até aqui, nada de novo que justificasse tamanho escarcéu. Por que processar uma escritora de romances policiais que simplesmente repete o que milhares de pessoas dizem e escrevem sobre o Opus Dei? E por que não processa então, para ficarmos apenas na França, um livro de 2005, L’Opus Dei: enquête sur une église au coeur de l´Eglise, de Bénédicte Des Mazery e Patrice Des Mazery, cujo texto da quarta capa denuncia a sede de poder da prelazia?

‘Como jornalistas, queríamos descobrir a verdadeira face da Obra de Deus […]. Embora os responsáveis pela Obra não nos tenham aberto as portas, fizemos investigações durante dois anos em Paris, Espanha e Inglaterra, recolhendo numerosos testemunhos de ex-membros. […] Pudemos comprovar que sua influência sobre os seus membros é preocupante e que esta instituição busca efetivamente o poder, mantendo estreitas relações com entidades com poder decisório, como universidades e empresas. […] O Opus Dei se organiza e progride como um movimento poderoso e secreto no coração da Igreja católica. Seu objetivo é claro: levar o ocidente cristão ao triunfo. Mas por todos os meios?’

Arnaud Gency, o porta-voz do Opus Dei na França, tem dito em entrevistas que esta ação judicial não pretende cercear a liberdade de expressão ou a criação literária. Sua única motivação é proteger a reputação de uma instituição. A Obra, segundo ele, não quer que o livro seja censurado, mas que as passagens claramente difamadoras sejam julgadas como tais pela autoridade competente:

‘Os leitores de Catherine Fradier só ganharão com isso, pois, além de se beneficiarem com uma obra literária, terão acesso também a uma informação autêntica sancionada pela autoridade jurídica.’

O que Monsieur Arnaud diz nas entrelinhas é que a instituição deseja, com esses processos, desencorajar outros autores a explorarem, não só o que ele chama de ‘fantasma de um Opus Dei secreto e criminoso’, mas deixar a todos de sobreaviso de que falar mal da Obra significa correr alguns riscos.

Um Código Da Vinci, tudo bem. Outro (o filme), ça va… Mas um terceiro, aí já seria demais. A Obra não quer de novo tornar-se alvo fácil da mídia, como aconteceu ao longo dos últimos três anos, a menos que seja para receber aplausos e canonizações.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br