“As relações entre as agências da Grã-Bretanha e da Líbia ficaram muito próximas.” (David Cameron, primeiro-ministro britânico)
Notícias que dão muito o que pensar. Provêm do conturbado e incandescente cenário árabe.CartaCapital assevera que a guerra na Líbia foi também, em parte, um conflito interno dos Estados Unidos. Explica o porquê. Enquanto Barack Obama festejava a vitória dos rebeldes, conquistada com a ajuda militar da Otan, a Al-Jazira, bem informada rede televisiva, revelava que David Welch, ex-subsecretário de Estado do governo Bush Júnior, antecessor republicano do atual mandatário norte-americano, reuniu-se com funcionários do ditador Muamar Kadafi – vejam só a data, 2 de agosto último – quando o triunfo dos insurretos já se delineava claramente no horizonte, para orientá-los a procurar uma saída da encalacrada em que se meteram.
A orientação – pasmo dos pasmos! – foi no sentido de que Kadafi buscasse entrar em contato com o serviço secreto de Israel, o célebre Mossad, e agências de inteligência de alguns países árabes, com o fito de denunciar a presença nas fileiras dos adversários do tirano líbio, ao que parece já devidamente constatada, de guerrilheiros da Al Qaida.
O conselho do representante dos republicanos americanos foi mais longe: exortou Kadafi a explorar a “incoerência do governo Obama” por haver concordado com a invasão da Líbia embora fizesse questão de se conservar indiferente à brutal repressão policial às multidões atritadas com o governo nos restantes países árabes sublevados. O comentário conclusivo é da revista mencionada: “Nada como um especialista em hipocrisia para denunciar outro”.
O jogo sibilino
Outra notícia desconcertante, na mesmíssima linha. Foi distribuída por agências internacionais.
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, assegurou, dias atrás, que uma investigação nacional de política antiterrorista vai examinar as acusações de ligações bastante próximas registradas entre os serviços de inteligência de seu país e o regime despótico de Muamar Kadafi. Acontece que acabam de vir a lume – e isso ocorreu após a queda de Trípoli – alguns documentos altamente comprometedores concernentes a contatos recentíssimos, bastante chegados, entre representantes do M16, serviço secreto inglês, e o sistema equivalente da cambaleante ditadura líbia.
Os documentos demonstram que elementos da oposição a Kadafi, capturados por agentes britânicos, eram habitualmente entregues às forças policiais líbias. Para tornar a situação ainda mais embaraçosa e perturbante, o cidadão líbio Abdel-Hakim Belhaj, que não é outro senão o comandante militar em chefe das tropas rebeldes que se opuseram a Kadafi, acusou frontalmente a Inglaterra e os Estados Unidos de planejarem sua captura para entregá-lo à ditadura, além de haverem enviado agentes para acompanhar o interrogatório, tocado na base de tortura, a que foi submetido nos porões do regime de Trípoli. Sua captura – acrescentou – ocorreu em 2004, em Bangcoc, Tailândia, numa ação conjunta do M16 e CIA.
O governo de Sua Majestade – segundo a mesma fonte – assinala agora que os documentos liberados são reveladores de que, sob a última administração britânica, comandada por Tony Blair, como se recorda, fiel aspençada do xerife Bush, as relações entre as agências de inteligência da Grã-Bretanha e da Líbia de Kadafi “ficaram muito próximas, particularmente em 2003”. O parlamentar Jack Straw, que exerceu o cargo de secretário do Exterior no governo trabalhista de Blair naquele ano (2003), confessa candidamente que seu país era “totalmente contrário a aplicação de tortura”, mas reconhece ser “totalmente correta” a investigação proposta com o objetivo de examinar as acusações de que o Reino Unido ofereceu apoio inconveniente ao ditador Kadafi.
Essa sequência nauseante de atos atentatórios à dignidade humana e de retórica hipócrita semeiam justificados temores e incertezas. O jogo sibilino das grandes potências no xadrez político árabe pode deixar sem resposta convincente o apelo pró-democracia que, na essência de sua manifestação inconformista, gigantescas e entusiásticas multidões, com predominância de jovens, levaram às ruas e praças em históricas passeatas da assim chamada “primavera árabe”.
Ora, veja, pois!
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[Cesar Vanucci é jornalista, Belo Horizonte, MG]