Em 2001 a Geração Editorial publicou a biografia do senador Antonio Carlos Magalhães, Memória das Trevas, que tinha 766 páginas, com um subtítulo promissor (mas irrealizado): ‘Uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães’. Agora lançou Honoráveis Bandidos, sobre o senador José Sarney, com 207 páginas e também um subtítulo convidativo: ‘Um retrato do Brasil na era Sarney’. A concepção da capa das duas publicações, com um close dos personagens atrás dos inefáveis óculos escuros, que constituem uma das características dos ditadores latino-americanos, sugere comparações. Qual o mais importante – ou o mais danoso – dentre os dois coronéis da política brasileira?
A julgar pelo volume dos livros, ACM, sem dúvida: ele mereceu quase quatro vezes mais páginas do que Sarney. No entanto, teve que dividir espaço com o autor da sua biografia, João Carlos Teixeira Gomes, que cuidou tanto da própria biografia quanto da do desafeto. Seu trabalho, por isso, perdeu a objetividade necessária e se esparramou em considerações pessoais sem maior interesse público, prendendo-se em demasia às quizílias locais. Já o ensaio de Palmério Dória é de melhor jornalismo. Bem escrito, fluente, equilibrado na seleção de fatos que convencem seu leitor sobre o argumento central da obra: o papel negativo que os coronéis da política desempenham no país e, em particular, nos seus redutos, que funcionam como autênticas satrapias.
A correlação entre o babalorixá baiano e o senhor maranhense ajudará a iluminar um pouco a análise de um dos problemas graves da vida nacional: o papel antipedagógico dos seus líderes. Ambos transitaram da República de 1946 para o regime militar de 1964 e dele conseguiram sobreviver com a redemocratização de 1985, tão ou mais poderosos do que antes. Sarney chegou ao posto máximo do país, a presidência da República. Antônio Carlos parou num ministério.
ACM teve que renunciar à presidência do Senado num episódio menor das suas muitas e espantosas malvadezas, mas, novamente, teve fôlego para retornar ao posto, em cujo exercício morreu. Os maus feitos de Sarney, na mesma função, foram superiores ao do exemplar baiano e sua exposição muito mais extensa, mas ele não foi cassado e nem precisou renunciar. O drama ainda não terminou, mas Sarney parece ter escapado, salvo pela retórica de Lula e pelo soar da campainha para a próxima eleição.
Antonio Carlos, conseguindo superar a oposição interna, se tornou um rei na Bahia, mercê de sua política de mão dupla: com a parte de fora fustigava e reprimia os adversários, fazendo jus ao título de Toninho Malvadeza, incapaz de controlar a própria truculência, quando contrariado; com a parte de dentro cultivava a imagem de painho, a proteger e afagar personalidades públicas, como os artistas (velhos e novos baianos foram acusados por certa mídia de integrar a ‘máfia do dendê’, à sombra de ACM). Nos últimos tempos sua força já não era a mesma e tendia ao declínio, agravado pela morte prematura do seu herdeiro, o filho, Luís Eduardo.
Mas Antônio Carlos não precisou se deslocar para outro estado em busca dos votos que já lhe faltassem na terra natal, como fez Sarney, que só conseguiu se reeleger porque transferiu seu domicílio eleitoral para o Amapá. Seu desgaste pessoal no Maranhão já era enorme. Não lhe possibilita mais vitória em disputas majoritárias e descer do Senado para a Câmara Federal seria um sinal de decadência (e uma realidade efetiva) para as pretensões e convicções de Sarney. Ainda assim, ele consegue manter o seu domínio na política local através dos filhos, sobretudo de Roseana, e dos compadres, afilhados e aderentes. Para isso, porém, é preciso contar com conexões nacionais. Só os mecanismos locais de poder não são suficientes.
Conforme demonstram os livros de José Carlos Teixeira e de Palmério Dória, a hegemonia dos dois coronéis é causa do atraso ou da falta de autonomia dos seus estados porque eles exercem seu poder com mão de ferro, mantendo os esquemas de controle, as teias de interesses, e sufocando a renovação das lideranças. Mas é preciso encontrar e reconstituir os elos que eles mantêm com o mundo exterior para ter uma dimensão exata do universo em que atuam. ACM provavelmente foi além de Sarney nessas conexões graças à sua desenvoltura na primeira linha da administração federal, sobretudo na área de telecomunicações e, com ênfase, na mídia, que lhe deu retaguarda forte para muitas de suas manobras.
ACM, porém, sempre foi mais estrondoso e visível do que Sarney nesse aspecto, o que não significa que o político maranhense não seja mais eficiente em tal desempenho. Sarney não teve a seu serviço uma empreiteira do porte da OAS, mas sempre contou com uma multiplicidade de satélites e toda uma constelação formada em torno do Ministério das Minas e Energia, com suas hidrelétricas de custos faraônicos. A reconstituição rigorosa dessa hierarquia poderá resultar na caracterização de uma autêntica máfia, organizada em torno da ormetà e do compromisso com a fidelidade ao chefe.
No momento em que os militares desmontavam o governo de João Goulart, em abril de 1964, Sarney dava cobertura para que um dos políticos perseguidos, o udenista paraense Clóvis Ferro Costa, conseguisse asilo numa embaixada do Leste europeu e escapasse da prisão iminente. Esse gesto ousado, ao que parece, nada custou a Sarney junto aos novos donos do poder, aos quais serviu até a véspera de sua retirada do palco decisório. Nesse momento, Ferro Costa, que, afastado da política, sobrevivia da sua advocacia esperta, ganhou um dos melhores empregos da República, na Itaipu Binacional, sob a chefia do futuro consultor-geral, o brilhante Saulo Ramos, por obra e graça de Sarney, a quem devia muito. Ele e vários outros notáveis, aos quais o mecenas maranhense recorria quando precisava, e precisava muito, sem precisar cobrar os créditos.
O cenário maranhense (como o baiano) só será completo se a ele forem adicionados os outros ambientes de circulação desses coronéis de aparência antediluviana, dados a provincianismos incuráveis, como a obsessão de José Sarney pela vida literária e as glórias acadêmicas, sem dispor das qualidades minimamente requeridas pela titulação. Essa combinação das partes aparentemente discrepantes, mas na verdade complementares, impede que um suposto Brasil moderno e vibrante aponte o dedo sujo para um Brasil arcaico e soturno, como o que nos surge das memórias das trevas e dos honoráveis bandidos, com o qual o distinto público do Sul Maravilha alega que não tem qualquer afinidade.
Talvez a Geração Editorial possa nos dar um terceiro livro com as correlações sugeridas desses dois anteriores, em especial do último, o paraense Palmério Dória, sucesso de vendas enquanto provavelmente o personagem contrariado e enfurecido rumina alguma forma de reação, que já não pode ser imediata nem suficiente para um coronel atropelado pelo tempo.
******
Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)