Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os desdobramentos da aldeia global

Volte comigo aos anos 1990, ao Vale do Silício, à euforia da Internet e aos dois monstros sagrados da www que profetizaram o advento da World Wide Web.

Era novembro de 1999 e eu estava em Palo Alto, Califórnia, na capital de fato do Vale do Silício. Exatamente aqui, no Vale, a indústria de computadores produzira catorze novos bilionários nos doze meses precedentes. Todas as manhãs eu via bilionários tomando o desjejum. Todas as manhãs; o cenário do desjejum-do-poder do Vale era um restaurante chamado Il Fornaio, que por acaso ficava no andar térreo do meu hotel, o Garden Court. Eu adorava o espetáculo. Ninguém me impediria de participar dele.

Os bilionários eram um espetáculo à parte. Todos eles chegavam vestindo calças justas jeans ou cáquis, camisas com mangas arregaçadas e desabotoadas até o umbigo, mostrando a pele e os pêlos do peito, quando os tinham, e mocassins de couro sem meias, pondo a nu a estrutura óssea dos tornozelos e metatarsos… mesmo os cinqüentões, com seus cabelos de arame brotando das orelhas acima dos lóbulos, que se arqueavam tão desleixadamente como seus ombros e costas e se curvavam como a letra n. Pareciam uns ratos de praia bem penteados. Suas roupas eram tão justas que não lhes permitiam carregar um celular ou mesmo um bip, e muito menos um Palm Pilot, um Black-Berry, um RIM pager ou uma calculadora HP-19B. Atrás de cada bilionário ia um ajudante-de-ordens, que provavelmente não custava menos de 60 ou 70 milhões, usando o mesmo traje mais uma jaqueta esporte. Por que uma jaqueta esporte? Por causa dos bolsos, onde podiam levar o celular, o bip, o Palm Pilot, o BlackBerry, o RIM Pager e a calculadora HP-19B. Bilionários em trajes de criança! No Il Fornaio a gente podia sentir uma euforia de segunda mão.

Mas boa parte dessa sublime euforia provinha de algo mais nobre do que os bilhões de IPO overnight e similares, algo que beirava o espiritual. O ciberespaço tinha os seus visionários, e eles diziam a todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes todas as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando literalmente a natureza da besta humana. Todos no Vale acreditavam nisso e vestiam-se a caráter. Devotos fiéis da Força não sairiam por aí empertigados em ternos tristes e insossas camisas brancas com ‘curiosas’ gravatas Hermès e sapatos pretos oxford, ao estilo do maçante e antiquado pessoal de Wall Street.

A Web – o W sempre foi capitalizado – era o mundo do futuro, a saber o Universo Digital, e a Força tinha suas próprias publicações evangélicas. O editor da revista Upside, Richard L. Brandt, declarou (em setembro de 1998) que esperava ‘assistir à derrocada do governo dos EUA durante a minha vida’, não por agressores revolucionários ou estrangeiros, mas pela Microsoft de Bill Gates. O software que Gates e a Microsoft forneciam à World Wide Web ‘aos poucos tornaria o governo americano obsoleto’. Comparado a isso, o próprio Gates era a Modéstia em pessoa quando escreveu que estava participando de ‘uma mudança memorável’que ‘afetará o mundo sismicamente’. Sismicamente significa ‘como um terremoto’. A evolução costumava ser medida em unidades de cem mil anos. Mas o especialista em computação Danny Hillis escreveu na revista Wired que hoje, ‘graças à telefonia, aos computadores e aos CD-ROMs, a evolução acontece em microssegundos. . . Estamos decolando… Não somos os últimos produtos da evolução. Algo virá depois de nós, e imagino que seja algo maravilhoso. Mas pode ser que nunca venhamos a entendê-lo, da mesma forma que uma lagarta não consegue imaginar a si mesma transformada em borboleta’.

Perspectiva alterada

Euforia, como disse, de uma visão Milenar – e tudo isso foi inspirado por um literato canadense que morreu quinze anos antes que a Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do Canadá até a publicação do livro Para entender os meios de comunicação, em 1964, era Marshall McLuhan. Em 1996, os fiéis da cibernética viam a obra e as profecias de McLuhan como a nova teoria da evolução.

Não consigo pensar em outra figura que haja dominado todo um campo de estudo na segunda metade do século XX. Na virada do século XIX e nas primeiras décadas do XX houve Darwin na Biologia, Marx na Ciência Política, Einstein na Física e Freud na Psicologia. Depois deles só houve McLuhan nos estudos de Comunicação ou, para ser mais exato, McLuhan e um parceiro silencioso. Fora o parceiro silencioso que fizera do mcluhanismo o que ele era: uma teoria científica estabelecida sobre uma base religiosa invisível, tácita, inviolável.

McLuhan foi criado como batista em uma família (segundo todas as aparências exteriores) típica dos colonos do vasto Oeste canadense. Eram protestantes escoto-irlandeses que diziam howse e abowt em vez de house e about. Os antepassados de seu pai eram fazendeiros. Seu próprio pai era corretor de seguros. Mas a mãe, Elsie Hall McLuhan, era outra história. Ela era a mulher cosmopolita, culta, oriunda do Leste, das Províncias Marítimas, de ascendência inglesa, bem-educada e declamadora por formação, uma figura conhecida nos círculos que viajavam pelo Canadá fazendo leituras dramáticas. Apesar de suas muitas ausências, era ela quem dirigia a família, e foi ela quem orientou Marshall e seu irmão caçula, Maurice, que se tornou ministro presbiteriano, para carreiras intelectuais. Uma vez que, no Canadá ocidental, nem estrelas declamadoras e muito menos corretores de seguros ganhavam muito dinheiro, os McLuhans viviam modestamente, mas Elsie McLuhan tomou todas as providências para que, no devido tempo, seu filho Marshall, a estrela acadêmica, fosse educado no exterior. Em 1920, quando ele tinha nove anos, a família mudou-se de Edmonton para Winnipeg, e foi ali que ele cursou o colegial e a faculdade, formando-se pela Universidade de Manitoba, que distava um quilômetro e meio de sua casa, obtendo o bacharelado em 1932 e o mestrado em Literatura Inglesa em 1933. Estimulado por ela, solicitou e obteve uma bolsa de estudos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.

A essa altura, McLuhan era o típico jovem estudioso tradicional, o ‘literato’, tipo que mais tarde ele haveria de ridicularizar como alguém presunçosamente ignorante da natureza do próprio meio de comunicação que ele estudava e no qual atuava, a saber, a imprensa. A vida literária em Cambridge, Oxford e Londres era tudo menos tradicional. Era o tempo da Grande Depressão, e os intelectuais britânicos haviam começado a se interessar pelas classes subalternas, pelas ‘massas’; muitos deles se notabilizaram como marxistas e outros como estudiosos daquela que mais tarde viria a ser chamada de cultura popular. McLuhan foi atraído pelos trabalhos de Wyndham Lewis e do professor de Cambridge F. R. Leavis, que tratavam o cinema, o rádio, os anúncios e mesmo as histórias em quadrinhos como uma nova ‘linguagem’.

Era também a época de florescimento de escritores católicos como Hilaire Belloc e G. K. Chesterton, cuja inteligência e requinte tornaram o catolicismo repentinamente atrativo, e até mesmo espirituoso, nos círculos literários. Dois dos literatos mais brilhantes e aparentemente cínicos de Londres, W. H. Auden e Evelyn Waugh, converteram-se ao catolicismo nesse período. O mesmo sucedeu com McLuhan. Ele converteu-se à Igreja Unitária – e ao estudo da cultura popular. Embora quase nada nos escritos de McLuhan viesse a ser declaradamente religioso, essas duas paixões acabaram se unindo para criar o mcluhanismo.

Após receber um segundo grau de bacharel em Cambridge, em 1936, começou sua carreira de professor, ingressando na Universidade de Wisconsin, nos EUA. Voltou a Cambridge em 1939 e nos três anos seguintes obteve um mestrado e um doutorado em Literatura Inglesa. Depois de Wisconsin, só lecionou em instituições católicas, primeiro na Universidade de St. Louis, depois na Universidade da Assunção em Windsor, Ontário, e finalmente na faculdade católica de St. Michael, na Universidade de Toronto, a partir de 1946.

Nessa época, Marshall McLuhan tinha trinta e cinco anos e era a própria encarnação do apetite de Elsie McLuhan por coisas culturais – e pelo centro do palco. Era conhecido tanto como literato, especializado na literatura inglesa dos séculos XVI e XVII e na obra de James Joyce, quanto como uma figura carismática que cativava grupos de alunos e professores com socráticas reuniões extracurriculares dedicadas ao ‘folclore do homem industrial’, como ele o denominava, em que decodificava o que via como uma linguagem oculta dos anúncios, das histórias em quadrinhos e da imprensa. Ele mostraria o slide de um anúncio da Aspirina Bayer representando uma baliza usando um capacete militar e botas de cano alto, empunhando um bastão do tamanho de uma clava. A legenda dizia: ‘Em 13, 9 segundos uma baliza pode girar um bastão vinte e cinco vezes… mas em apenas DOIS SEGUNDOS a Aspirina Bayer está pronta para agir!’Você perguntaria: Qual é a verdadeira linguagem de tal anúncio? O que é que ela realmente veicula? Qual o motivo dessa ‘combinação de marcha militar em passo de ganso e um erotismo de botas de cano alto’, desse casamento de sexo e tecnologia, tema publicitário recorrente que ele batizou de ‘a noiva mecânica’?

Esse foi o título do seu primeiro livro, publicado em 1951, quando tinha quarenta anos. A noiva mecânica tinha o viés anticomercial convencional do homem literário, visando, como visava, libertar o público das manipulações da indústria publicitária; mas também impeliu McLuhan para a órbita de seu colega de Toronto, o historiador econômico Harold Innis. Como o próprio McLuhan se apressava em declarar, foi de dois livros publicados por Innis em 1950 e 1951, Império e comunicações e O viés da comunicação, que ele extraiu o conceito central do mcluhanismo: o de que qualquer grande novo meio de comunicação altera toda a perspectiva das pessoas que o usam. Innis insistia em que a imprensa, inventada no século XV por Johann Gutenberg, havia provocado a expansão do nacionalismo, em oposição ao tribalismo, durante os quinhentos anos subseqüentes. McLuhan publicou seu primeiro trabalho teórico importante, A galáxia de Gutenberg, em 1962, quando tinha cinqüenta e um anos. Chamoua de ‘uma nota de rodapé à obra de Harold Innis’.

Evolução natural

Seu golpe de mestre veio dois anos depois, quando trouxe a abordagem de Innis para o século XX e para a era da televisão com Para compreender os meios de comunicação. McLuhan teorizou que a imprensa promoveu o sentido visual do homem ocidental em detrimento de seus outros sentidos, que, por sua vez, levaram a muitas formas de especialização e fragmentação, desde a burocracia, o exército moderno e as guerras nacionalistas até a esquizofrenia, as úlceras pépticas, o culto da infância, que ele via como uma fragmentação por idade, e a pornografia, a fragmentação do sexo em relação ao amor.

Na segunda metade do século XX… a televisão entra em cena. A televisão, dizia McLuhan, inverte o processo e faz os cinco sentidos do homem retornarem ao seu ‘equilíbrio tribal’, pré-letrado, anterior à imprensa. O público e os sentidos tácteis voltam a entrar em jogo, e o homem começa de novo a usar todos os seus sentidos numa ‘rede inconsútil’de experiência unificada. A televisão, dizia McLuhan, não é um meio de comunicação visual, mas ‘audiotátil’. Isso era uma espécie de afirmação contraditória que ele se comprazia em fazer, contrariando o senso comum, sem se dar ao trabalho de explicá-la ou debatê-la. O mundo, dizia, estava se tornando rapidamente uma ‘aldeia global’, como resultado da difusão da rede inconsútil da televisão por toda a Terra.

Os efeitos imediatos da televisão sobre o sistema nervoso central, dizia McLuhan, podem ser vistos nos jovens de hoje, que constituem a primeira geração televisiva. A chamada assintonia entre gerações, como ele a diagnosticava, não era ideológica, mas neurológica: a disparidade entre a geração formada pela imprensa e a sua prole audiotátil, neotribal. McLuhan estava observando a nova geração bem de perto. No verão de 1939 ele estivera na Califórnia visitando sua mãe, que lecionava na Pasadena Playhouse, quando conheceu uma atriz americana, Corinne Lewis; apaixonou-se por ela, pediu-a em casamento, desposou-a ali mesmo e levou-a para Cambridge, tudo isso num lapso tão breve que ela teve de telefonar a seus pais para informá-los de que era agora a Sra. McLuhan. Marshall e Corinne McLuhan tiveram quatro filhas e dois filhos. Pessoalmente, McLuhan tinha pouca paciência com a televisão ou qualquer outro meio de comunicação eletrônico, mas ficava assombrado quando via seus filhos estudarem, assistirem à televisão, conversarem ao telefone, ouvirem rádio e tirarem fotografias, tudo ao mesmo tempo. Segundo ele, a nova geração estava fadada a se entediar em salas de aula dirigidas por professores pertencentes ao mundo da imprensa. Isso, dizia, significava que o sistema educacional devia ser totalmente modificado.

Mas o novo equilíbrio sensorial haveria de produzir a Mudança Total – ele fazia questão das letras maiúsculas. Assim como a roda era uma extensão do pé humano, observava, e o eixo uma extensão do braço, os meios de comunicação elétricos eram extensões do sistema nervoso central humano, e esses sistemas nervosos haveriam de fundir-se de maneira irresistível. Suas predições não eram experimentais. A natureza humana agora seria diferente. O nacionalismo, produto da imprensa, tornar-se-ia impossível. Em lugar dele, a aldeia global. Na aldeia global, predizia McLuhan, já não seria possível isolar grupos raciais uns dos outros. Em vez disso, todos estariam ‘irrevogavelmente envolvidos uns com os outros e seriam responsáveis uns pelos outros’. McLuhan advertia que a aldeia global não era uma prescrição de utopia. Na verdade, ela poderia com a mesma facilidade tornar-se um banho de sangue. Afinal de contas, perguntava ele, onde é que encontramos os mais completos carniceiros? Nas aldeias. A aldeia global poderia reunir toda a humanidade para a carnificina tão facilmente como para qualquer outra coisa.

No entanto, ele também acreditava que a nova era oferecia a possibilidade de algo muito mais sublime do que a utopia, que é, afinal, um conceito secular. ‘O conceito cristão de corpo místico’, escreveu McLuhan em uma de suas poucas referências explícitas ao mais acalentado de seus sonhos, ‘de todos os homens como membros do corpo de Cristo – isto se torna tecnologicamente um fato sob as condições eletrônicas. ‘

E aqui vemos a sombra da intrigante figura que influenciou McLuhan tanto quanto Harold Innis, mas a quem ele nunca se referiu de maneira explícita: Pierre Teilhard de Chardin. Teilhard de Chardin era um geólogo e paleontólogo francês que se notabilizara inicialmente por suas expedições em busca de fósseis na China e na Ásia Central. Aos trinta anos, em 1911 (aliás, o ano em que McLuhan nasceu), tornou-se sacerdote jesuíta e passou a lecionar Geologia no Instituto Católico de Paris. A missão de sua vida, segundo ele, era pegar a teoria darwiniana da evolução, que tão severamente abalara a fé cristã, e mostrar que ela era simplesmente o primeiro passo no grande projeto de Deus para a evolução do homem. Deus estava dirigindo, nesse exato momento, o século XX, a evolução do homem para uma noosfera – termo cunhado por Teilhard de Chardin –, uma unificação de todos os sistemas nervosos humanos, todas as almas humanas, por meio da tecnologia. Teilhard (pronuncia-se Têi-iar, que era como costumavam chamá-lo) menciona o rádio, a televisão e os computadores em especial com pormenores consideráveis, e alude à cibernética.

Independentemente do que se pudesse pensar de sua teologia, os poderes de predição do homem eram assombrosos. Ele faleceu em 1955, quando a difusão da televisão ainda era muito recente e nem sequer se inventara o microchip. Os computadores eram máquinas enormes, do tamanho de uma sala de estar suburbana, que ainda não estavam sendo produzidas em série. Mas ele já escrevia sobre ‘a extraordinária rede de comunicação por rádio e televisão que nos reúne numa espécie de consciência humana ‘eterizada’’ e sobre ‘aqueles espantosos computadores eletrônicos que aumentam a ‘velocidade do pensamento’e abrem caminho para uma revolução na esfera da pesquisa’. Essa tecnologia estava criando um ‘sistema nervoso para a humanidade’, escreveu ele, ‘uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a Terra’, uma ‘estupenda máquina pensante’. ‘A era da civilização terminou, e a da civilização unificada‘– ele sublinhava civilização unificada – ‘está começando’. Essa membrana inteiriça, essa noosfera, era, naturalmente a ‘rede inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia global’.

Podemos pensar, escreveu Teilhard, que essas tecnologias são ‘artificiais’ e completamente ‘exteriores aos nossos corpos’, mas na realidade elas são parte da evolução ‘natural, profunda’, do nosso sistema nervoso. ‘Podemos pensar que estamos apenas nos divertindo’ ao usá-las, ‘ou apenas desenvolvendo o nosso comércio, ou apenas propagando idéias. Na realidade, o que estamos fazendo é nada menos do que continuar num plano superior, por outros meios, a obra ininterrupta da evolução biológica’. Ou, para dizer de outro modo: ‘O meio é a mensagem’.

Ritmo assombroso

Particularmente, McLuhan reconhecia a sua tremenda dívida para com Teilhard de Chardin. Publicamente, nunca o fez. Por quê? Por medo de que isso abalasse sua reputação de originalidade? Isso está fora de cogitação. Afinal, ele reconhecia abertamente sua dívida para com Harold Innis e lhe era grato. A razão mais provável é que, nos círculos intelectuais católicos – e devemos lembrar que McLuhan fazia parte do corpo docente da Faculdade Católica de St. Michael, da Universidade de Toronto –, pairava sobre Teilhard de Chardin uma nuvem de heterodoxia. Décadas antes, a Igreja o proibira de ensinar ou publicar a sua teoria da evolução, já que ele aceitava a maior parte do darwinismo como verdadeira. Nenhum dos seus seis livros sobre o assunto foi publicado durante sua vida. Mas, entre os intelectuais de St. Mike’s, como eles chamavam a Faculdade de St. Michael, havia um subterrâneo vivo, um samizdat [N. do T.: termo utilizado para definir os manuscritos que circulavam clandestinamente na ex-URSS, e que procuravam quebrar o monopólio do Estado] jesuítico nos manuscritos de Teilhard de Chardin, especialmente depois que ele se mudou para os Estados Unidos, em 1951. McLuhan era fascinado por Chardin, mas este representava um problema. Mesmo depois de sua morte ele permaneceu fora dos limites da teologia católica, e McLuhan levava sua fé muito a sério, principalmente por ser um ex-protestante convertido que ensinava numa importante instituição católica.

Mas Teilhard representava também um problema secular. McLuhan vivia numa época em que o trabalho acadêmico, ainda que com um tênue matiz religioso, não seria levado a sério. Dentro da Igreja, Teilhard deve ter sido visto como um cientista demasiado darwinista, enquanto fora da Igreja o viam muito mais como um místico católico. Quando sua obra Para compreender os meios de comunicação foi publicada, em 1964, estava impregnada das idéias de Teilhard de Chardin, mas seria preciso outro entusiasta de Teilhard para notálo, pois não havia ali uma única nota teológica.

Na verdade, Para compreender os meios de comunicação explodiu no mundo intelectual em meados dos anos 1960 com um fulgor nitidamente mundano e chamou rapidamente a atenção de muitas das mentes mais devotadamente materialistas e práticas do comércio e da indústria. Em parte, foi o título falaciosamente simples, Para compreender os meios de comunicação, que surgiu como um desafio: ‘Vocês que usam os meios de comunicação, que são donos dos meios de comunicação, que investem milhões nos meios de comunicação e dependem deles – vocês nem sequer começaram a entender os meios de comunicação e o modo como eles realmente afetam os seres humanos’. Em fins de 1964, corporações como a General Electric e a IBM convidaram McLuhan a ir aos Estados Unidos fazer palestras para seus executivos. A atitude deles não era tanto a de ‘Ele está certo!’ quanto a de ‘E se ele estiver certo? (É melhor a gente descobrir)’.

McLuhan declarou ao pessoal da General Electric que eles podiam pensar que estavam no negócio da produção de lâmpadas, mas na verdade estavam no ramo da nova informação da mesma forma que a AT&T. A luz elétrica era pura informação, um meio sem uma mensagem. Já a IBM mereceu os seus condescendentes elogios por ter, enfim, compreendido que o seu negócio não era a fabricação de equipamentos, mas o processamento de informação. McLuhan primava por dizer a pessoas poderosas e presumivelmente bem informadas que elas não tinham a mais vaga compreensão de suas próprias empresas. Apesar disso, nunca adotou um tom impactante. Era sempre o intelectual falando com toda a seriedade. Tinha um jeito de abaixar o queixo e olhar por sobre o nariz de seu rosto comprido de proprietário de terras escocês antes de fazer os mais oraculares dos seus pronunciamentos. Parecia estar muito além e muito acima de todos eles, observando-os do plano cósmico de um vidente.

Porém, o que transformou Marshall McLuhan de um professor da Universidade de Toronto, criador de uma teoria interessante, em McLuhan, um nome conhecido mundialmente, foi a curiosa intervenção de um publicitário de San Francisco, Howard Gossage. Fascinado por Para compreender os meios de comunicação, Gossage tomou a si a tarefa de, às suas próprias expensas, tornar-se um arauto de McLuhan, levando-o para os Estados Unidos em 1965 e apresentando-o à imprensa e à indústria publicitária na Costa Oeste e em Nova York. A campanha revelou-se brilhante. Artigos em revistas, reportagens em jornais e aparições na tevê foram-se sucedendo num ritmo assombroso. No final de 1965, tanto a Harper’s Magazine quanto a New York Magazine publicaram importantes matérias sobre McLuhan. Só em 1966 o número de trabalhos a seu respeito elevou-se a mais de 120, ocupando praticamente todas as publicações importantes dos Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha. O alvoroço provinha da possibilidade de que ali podia estar um homem com uma percepção de proporções darwinianas ou freudianas.

Exército de jovens

À medida que sua fama crescia, avolumavam-se também as fileiras dos seus detratores, sobretudo entre os literatos, a quem ele tachava regularmente de preconceituosos, reacionários e esquecidos do modo como realmente funcionava o próprio meio que utilizavam, a imprensa. Os cientistas, entrementes, não sabiam o que pensar sobre ele. O cerne de sua teoria, o conceito do ‘equilíbrio sensorial’ humano, influiu no campo da psicologia cognitiva ou, de maneira mais ampla, da neurociência. Hoje a neurociência é o tema mais quente do mundo acadêmico, mas mesmo agora não há como determinar se tal equilíbrio existe ou não, ou se um meio de comunicação como a televisão pode ou não alterar o sistema nervoso de um indivíduo, quanto mais uma sociedade inteira e o curso da história. McLuhan tratava toda e qualquer crítica com uma indiferença de enlouquecer. Não estava tentando criar um corpo de teoria fechado, insistia ele – embora na verdade provavelmente o estivesse –, era um pioneiro penetrando numa vasta terra incógnita. Sabia-se muito pouco, e o tempo era curto. Sua missão era explorar, fazer ‘sondagens’, para usar uma de suas palavras favoritas, desbravar o território. Outros, os que viessem depois, poderiam empreender as investigações sistemáticas, fazer as experiências clínicas, organizar os dados e solucionar as questões. Encarava qualquer oposição como aquilo que Freud chamava de ‘resistência’: uma relutância em libertar-se das noções confortáveis do passado em face das novas e brilhantes revelações acerca da natureza do animal humano.

Na esteira de todo o rebuliço que se levantou em torno de Para compreender os meios de comunicação, McLuhan criou o Centro para a Cultura e a Tecnologia na Universidade de Toronto. Era um nome pomposo para o que constituía, na realidade, pouco mais que um papel timbrado, uma escrivaninha, um papel pautado no qual ele escrevia à mão e com sua mente espantosamente fértil e espontânea. Nesse aspecto, McLuhan era como Sigmund Freud. Muito pouco do que Freud tinha a dizer sobreviveu ao escrutínio científico do último meio século. Em nossa percepção atual, podemos ver que ele era um brilhante filósofo da velha escola, a quem sucedeu viver numa época em que somente a ciência era aceita como verdade evangélica. Assim, à noite ele entrava com suas especulações filosóficas pela porta de trás de sua clínica e de manhã saía pela porta da frente apresentando-as como descobertas científicas. McLuhan fazia o mesmo no Centro para a Cultura e a Tecnologia. No fundo, McLuhan continuou sendo, em meio a tudo isso, um literato da grande tradição de Samuel Johnson, Thomas Carlyle, Matthew Arnold e G. K. Chesterton, um homem capaz de luminosos lampejos de percepção relacionados com a época em que vivia.

Nunca, porém, conquistou as boas graças dos literatos, porque muitos dos seus ditos mais espirituosos, à semelhança dos de Chesterton, eram dirigidos a eles. Solicitado a comentar a impetuosa adesão dos escritores e intelectuais aos movimentos de protestos que eclodiram nos anos 1960, ele declarou: ‘A amargura moral é uma técnica básica para conferir dignidade ao idiota’.

Em meados e no final da década de 1970, os que eram alvo de suas ironias tiveram sua vingança. McLuhan parecia não se dar conta de que uma celebridade acadêmica, para manter a sua preeminência mundana, é obrigada a agir com total indiferença em relação aos jornalistas, ao pessoal do show biz e aos editores que tão alegremente elevam sua reputação ao status de estrela. Freud e Einstein compreenderam isso muito bem. Em 1922, o Chicago Tribune ofereceu a Freud vinte e cinco mil dólares, o equivalente a trezentos mil dólares hoje, para ir aos Estados Unidos tecer um comentário psicanalítico que o Tribune pudesse publicar durante o julgamento dos terríveis assassinos Leopold e Loeb. O senhor barbado não aceitou. Foi aos Estados Unidos somente para fazer uma abstrusa conferência na Universidade Clark de Massachusetts. McLuhan, em contraste, publicou livros co-redigidos com títulos chamativos como O meio são as massagens (Record) e permitiu que Woody Allen o pusesse na comédia Annie Hall desempenhando o papel dele mesmo, como um figurão, como um recôndito teórico fazedor de trocadilhos. Quando ele morreu, aos 69 anos, em 1980, após uma série de derrames cerebrais, seus críticos, especialmente os intelectuais de Nova York, rotularam-no com sucesso de ‘não-sério’ e, por isso mesmo, ultrapassado.

No entanto, McLuhan introduzira uma noção segundo a qual a rápida proliferação de novas técnicas de computação do fin de siècle não arrefeceria, ou seja, a idéia de que novos meios de comunicação como a televisão tinham o poder de alterar a mente humana e, portanto, a própria história. O ano de 1992 chegou e com ele – plah! – um novo meio de comunicação, os computadores ligados por linhas telefônicas para criar a Internet. A Internet reanimou o mcluhanismo, e ele próprio foi ressuscitado como algo próximo de um padroeiro. Foi certamente isso para a mais aguçada e mais proeminente das novas publicações ponto-com, a Wired, que ostentava sua foto perto do cabeçalho de cada número.

Santo Deus – e se Marshall estivesse vivo nos anos 1990? O que aqueles dez anos não teriam sido para ele! Como teria adorado a Web! Em que tremeluzente Oz não teria ele transformado esta aldeia global! Eis que se cumprem as profecias feitas há trinta anos! O sonho de uma unidade mística de toda a humanidade… concretizado!

Claro, nem bem começara o terceiro milênio e a bolha ponto-com explodiu e os jovens apóstolos de McLuhan do Vale do Silício despertaram com um choque. Sacudiram a cabeça para aclará-la e tentaram reconcentrar a sua visão no futuro. Muitos não o conseguiram. Mas um imenso exército de jovens logrou vislumbrar uma minúscula lâmpada de halogênio, não maior que um tubo de pasta dentifrícia para viagem, ainda ardendo… e sua luz brilhou ao redor deles… e dizem que ainda brilha.

Novos teóricos da comunicação surgirão, nascidos diretamente do asfalto, do concreto, das telhas de vinil ou da inundação de PermaPour. Uma coisa, porém, não mudará. Primeiro eles terão de se haver com McLuhan.

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Jornalista e escritor