Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os detalhes podres do métier

O momento não poderia ser mais propício. Numa época de escândalos políticos como nunca se viu antes, um livro como o romance Profanação, do jornalista Ruy Fabiano, é muito bem-vindo.

Gregório Pedra, o protagonista (cuja recomendação de só publicar seu relato confessional em futuro distante é ‘desobedecida’ pelo autor), escolheu o jornalismo mais por falta de opções do que por qualquer outra coisa, embora assistir ao filme sobre o caso Watergate tenha contado lá seus pontinhos. Ou seja, não propriamente um idealista já na origem. Chega a Brasília na década de 1980, quando o país ‘vivia os estertores da ditadura militar’, com o objetivo de se tornar jornalista político. Deslumbra-se inicialmente com os rituais do Congresso Nacional, o linguajar todo próprio, a pompa, o teatro, enfim. Habilidoso com a palavra, galga rapidamente passos em seu jornal, sendo logo alvo de vários políticos que desejam ver sua ‘mensagem’ transmitida ao eleitor. Torna-se com o tempo peça importante nesse jogo que, depois verá com clareza, é dos mais sórdidos.

O mais interessante do livro, particularmente para os leitores que não sejam nem jornalistas nem políticos, é o desnudamento de detalhes podres do métier de uns e outros (todo métier tem detalhes podres, não somente o dos jornalistas e políticos, é bom que fique claro). Logo no início, por exemplo, há um diálogo que é uma pérola. Um colega ‘cuja leviandade só era comparável à ambição’ sugere ao protagonista que precisava fazer matérias sobre a rotina do Congresso Nacional:

– Por que você não faz uma experiência? Produza a matéria antes e depois vá atrás das declarações. Induza o entrevistado a dizer o que você quer.

E em seguida vêm algumas frases de efeito batidas, mas que não deixam de horrorizar os (ainda) ingênuos leitores de jornal:

– Informação, meu amigo, é uma mercadoria como outra qualquer. E o segredo é saber manejar a indignação alheia. O leitor é masoquista, gosta de sofrer, de se indignar. Por isso, a boa notícia é a má notícia. (…) É preciso descobrir a rota da adrenalina. Jornalismo é o marketing da bílis. (…)

‘Bem mais rendoso’

As nem sempre bonitas relações entre imprensa e políticos merecem destaque nas confissões de Gregório Pedra, como mostra o trecho abaixo:

(…) Juvenal [o chefe] e Mário [Andreazza] encontravam-se quase diariamente. E Juvenal colocara o Diário a serviço da candidatura de Mário, fazendo crer que ele tinha chances e prolongando, assim, o desfile cotidiano de políticos com votos no colégio no gabinete do ministro. (…) Maluf, diante daquela circunstância, ouvia os conselhos de alguns amigos, entre eles o próprio Juvenal: Peça aos delegados que continuem prometendo votos ao Andreazza, mas que se comprometam de fato com você.

Embora o período abarcado pelo livro seja essencialmente o das Diretas Já, é impressionante (e triste) sua atualidade. Vejam esse trecho (sobre um deputado que passara de oposicionista a governista):

Estava gostando de seu novo papel de governista. Era bem mais rendoso. Intermediara a liberação de uma linha de crédito num banco estatal para uma empresa de seu estado e recebera razoável comissão, a título de ‘modesta ajuda para a campanha eleitoral’.

‘Prestador de serviços’

E esse (sobre o que acontecia nas reuniões da confraria em Brasília):

Um mensageiro de um governador comprava, em dinheiro vivo, armazenado em sacos de supermercado, o voto de parlamentares para que rejeitassem uma emenda prestes a ser submetida à Constituinte.

Ou esse (em que o chefe de Gregório, Juvenal, tenta convencê-lo a voltar pra confraria):

O marketing político transforma a eleição num empreendimento meramente técnico. Nada de ideologias. Um candidato é um produto, um sabonete, cujo êxito depende mais das leis do comércio do que da política. É preciso vendê-lo ao público. Não importa como ele é – e sim como pareça ser.

Comentando a distinção entre jornalistas e donos de jornal, o protagonista é implacável. Os primeiros se dividiriam entre idealistas e céticos, sendo o idealismo apenas uma fase transitória. Já os proprietários ‘não se mostravam muito interessados nos dilemas existenciais de seus funcionários’. Eram apenas capitalistas que encaravam seu negócio como um… negócio. Além do bônus de lhes conferir poder. Muito poder. Sendo um negócio como outro qualquer, valeria a pena qualquer jogada que rendesse, não importando que fosse imoral (mesmo que lícita), como o caso do ‘Caderno Especial sobre o Novo Estado de Rondônia’:

Aquele tipo de empreendimento, usualíssimo na imprensa de então, era uma maneira oblíqua de repassar dinheiro público a cofres privados. Arranjava-se um assunto – o novo estado de Rondônia, por exemplo. A partir daí, quanto mais criativo o editor, mais verbas, mais anunciantes. (…) Pegavam-se dados no órgão estatal específico e fazia-se o texto óbvio (…). Pronta a matéria, ia-se aos diversos órgãos públicos interessados no assunto e agenciavam-se os anúncios. (…) [O jornal] de quebra, posava para seus leitores como prestador de serviços de interesse público (…)

Merece mais

O livro segue com outras interessantes revelações sobre a rotina do Congresso Nacional (principalmente o uso descarado de ghost writers pelos congressistas), além de mais detalhes sobre a podridão que foram os bastidores das Diretas Já (dá vergonha de perceber como éramos ingênuos). Vai bem até o último terço, quando considero que se perde um pouco, enveredando por um misticismo e por um dostoievskianismo (quase) piegas. ‘Se não havia sentido na busca de transcendência, então valia tudo’, afirma karamazovianamente o protagonista no capítulo 27.

Há também alguns deslizes. Um deles, pequeno, como situar o médium Chico Xavier em Uberlândia (o correto é Uberaba – aliás, esse é o tipo de confusão que mais irrita um uberabense). Outro deslize seria o que considero uma falha na narrativa. A não ser que tenha me escapado algum detalhe na leitura (e sendo o caso ficarei feliz em me corrigir), o protagonista não poderia dizer, na página 242: ‘A tsunami que flagelou parte do litoral asiático em dezembro de 2004 provocou o primeiro deslocamento no eixo da Terra’. Ora, em 2004 ele está morto (o último capítulo e o posfácio dão a entender que Gregório Pedra morreu por volta da eleição de Fernando Collor).

A não ser que estejamos diante de outras Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que não creio ser o caso, já que quem abre e fecha o relato é seu amigo (seu próprio ‘Max Brod’, que desobedece a ordem de demorar para publicar). Se me escapou algum detalhe e eu estiver errado, repito, ficarei feliz em me retratar. Caso contrário, o livro merece uma segunda edição revisada. Merece mais. Merece ser mais lido, comentado, discutido, xingado. Esse livro tem que levantar mais poeira.

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Médico, doutor em Oftalmologia pela UFMG, postdoc fellow pela Universidade de Harvard, mestre (UFGO) e doutorando (UFSCar) em Filosofia, autor de Epitáfio (Nankin Editorial)