O grande drama do jornalismo literário no Brasil é que jamais se tentou criar um mercado de leitores no país. Daí a pergunta: para quem se dirige o jornalismo literário? País com baixa densidade de leitores, o mundo literário não passa de uma ficção, de terreno para viagens egocêntricas.
O livro, mesmo nos momentos em que a literatura foi tratada com desconfiança e os escritores mandados para a prisão ou para o exílio, sempre foi cultuado como instrumento abstrato de cultura e tratado como objeto de veneração. O resultado desse exagerado respeito pelo livro, ao contrário do que se deveria esperar, não foi o aumento do número de leitores. Os bons sentimentos pelo livro não passavam de cortina de fumaça para encobrir ações que promoviam arraigados preconceitos culturais e certa visão extremamente frívola do ato de escrever e publicar livros.
Enquanto em certos países o livro ganhava a condição de produto vendável, de mercadoria, com a conseqüente formação de mercados literários, na América Latina o fenômeno se limitava – e apenas em alguns momentos e em algumas contingências – a certos países maiores, dominando a idéia de que a um homem de letras era vergonhoso e impróprio obter remuneração por seu trabalho literário. Assim, no lugar do livro como produto comercial, institucionalizou-se o livro como capital social. Ou seja, não se escrevia para os leitores que compram nas livrarias, mas para constar de um currículo capaz de servir de lastro nas negociações sociais. Num quadro como este, o jornalismo literário não poderia ter outra função que sustentar as ilusões.
Amanuenses, diplomatas, burocratas…
Os mais nostálgicos relembram os tempos da crítica de rodapé, os suplementos literários e os cadernos de livros de fim de semana. Todas essas janelas de exposição e reflexão crítica sobre a produção literária desapareceram no Brasil a partir dos anos 80. Praticamente, os jornais aboliram ou reduziram drasticamente o espaço para a publicação de resenhas de livros e cessaram de pagar os autores das resenhas. A situação é tão grave que a credibilidade das resenhas publicadas caiu aos níveis mais baixos, já que quase sempre os comentários e críticas estampados nos jornais foram previamente encomendados e pagos pela editora, ou pelo autor.
Neste quadro, em que se reduziu ao mínimo o espaço de publicação, mesmo as resenhas de alguns jornais, que ainda contratam resenhistas, pecam pela superficialidade e sectarismo. A revista Veja e o jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, trabalham com um enorme ressentimento em relação à produção cultural brasileira – e à literatura em particular. Preferem a abertura de espaço para autores estrangeiros e para a sedução da indústria cultural, que se debruçar com honestidade sobre os livros de autores brasileiros. Como a indústria editorial é omissa na questão da publicidade, sempre agindo com extrema timidez ou se eximindo completamente, os jornais, por sua natureza empresarial, tratam o espaço literário com extremo solipsismo e um perverso voluntarismo. O solipsismo está na preferência de editoras e autores com capacidade de auto-promoção. O voluntarismo vem da pouca idade e da pouca experiência dos jornalistas que, no afã de ser moderno e antenado, acabam perfilando a velha e desbotada igrejinha. No meio do jornalismo cultural há mais igrejas que no mundo da religião.
Para completar, os próprio autores colaboram para a manutenção deste sistema grotesco. Porque, embora se tenha produzido uma literatura de alta categoria, com grande penetração internacional e prestígio nas academias, isto pouco significou em termos de mudança na perspectiva de profissionalização dos escritores, muito menos na ampliação do mercado interno brasileiro. A precariedade do ofício fez com que a maioria dos escritores se tornasse dependente de algum meio de subsistência extra-literária. E não deixa de ser irônico que o país que elevou a retórica da literatura livre ao sublime tenha uma imensa lista de escritores amanuenses, escritores diplomatas, escritores burocratas, escritores professores…
Leilão público da mente
Também a ilusão da arte pura e o culto ao beletrismo vêm impedindo que os escritores considerem o seu ofício como uma profissão, ou mesmo se pensem como profissionais. Assim, para que um escritor brasileiro possa desenvolver o seu ofício, seja ele prosador ou poeta, será sempre necessário que ele esteja vinculado a um emprego, de preferência no governo, ou a uma universidade, isto é, que ele tenha uma fonte segura de renda. Prossegue neste começo de novo milênio, tão cioso das urgências do mercado capitalista, o velho mito sacrossanto de que as coisas do espírito, como a literatura, não têm nada a ver com dinheiro. É um mito piedoso, que serviu no século 19 para melhorar a posição dos escritores nas sociedades oligárquicas, que sempre consideraram Arte coisa de ociosos e vagabundos. Aliás, diga-se de passagem, este discurso despistador nunca passou de discurso para a maioria dos escritores realmente talentosos.
Na prática, a produção literária funciona bem ao contrário do mito, e não foi por acaso que a consolidação do princípio dos Direitos Autorais começou justamente no século 18, na Europa, com o sucesso cada vez crescente dos romances populares. Por outro lado, países como os Estados Unidos, Inglaterra, França etc. estavam atravessando o processo de criar um público de leitores, uma audiência para espetáculos, enfim, um mercado de entretenimento.
É claro que havia quem destoasse. Alguns até mesmo de forma extrema, como a poeta Emily Dickinson, uma vocação totalmente introspectiva, que escrevia uma poesia tão íntima que ela não desejava que fosse lida por mais ninguém. Dickinson considerava sua poesia algo tão pessoal, que dispensava leitores. Mas o exemplo de Dickinson não serve de argumento para os defensores da ‘literatura pura’. Primeiro porque ela chegou a mandar seus poemas para um leitor, o escritor Thomas Wentworth Higginson, pedindo-lhe uma opinião editorial. Higginson era um homem de muitos contatos literários, contribuía em jornais e até escreveu um conhecido artigo oferecendo conselhos e encorajamento aos jovens escritores que queriam se tornar profissionais. A Dickinson, ele respondeu com uma carta tecendo críticas ao que ele considerava hermetismo, mas externando alguns elogios – e seria o único leitor que a poeta teria em vida. Mas ainda que não existisse essa prova de que Emily Dickinson tentou escapar do isolamento, ela jamais serviria de paradigma do escritor puro, desinteressado, que se recusa a comercializar seu talento e sua arte.
Dickinson foi um caso bastante radical de recusa, bem distante do discurso purista mas que não hesita em muitas vezes pagar do próprio bolso a publicação da obra, participar de noites de autógrafo e de entrevistas. Ritual que acaba com a adição do título ao currículo. Embora Emily Dickinson tenha talvez escrito os mais perfeitos poemas dos Estados Unidos no século 19, a sua recusa em ingressar no mercado não serve como lastro para sancionar o discurso da literatura pura como missão porque, ao recusar o leilão público de sua mente, ela também nunca usou a literatura como capital social.
Doações indiscriminadas
É justamente nos Estados Unidos que melhor se reconhece o esforço dos escritores para elevar o status do trabalho literário. Benjamin Franklin, por exemplo, praticamente criou sozinho a categoria, o mercado e os leitores, fundando solidamente uma tradição que logo teria seguidores do porte de um Washington Irwing ou Emerson. É surpreendente para um latino-americano observar como Benjamin Franklin construiu as bases necessárias para os autores manterem sua autonomia, livres dos desdobramentos do poder. E a única possibilidade de defender esta autonomia era ter como aliado um número significativo de leitores.
Outros países, como a França, atravessaram caminhos distintos para a construção de seu mercado editorial. Mas, em todos aqueles países, os agentes principais, ou seja, autores e editores, logo se deram conta da importância de dar identidade ao mercado, reconhecendo-o como um espaço da criação literária, distinto dos espaços da academia e das carreiras públicas. O jornalismo literário nesses países se consolidou e respondeu a esta realidade concreta.
Não é por nada que justamente em países como os Estados Unidos, a França e a Espanha, o jornalismo cultural esteja vivo e cada vez mais profissional e respeitado. Vale a pena abrir todas as semanas o New York Times Book Review, os suplementos dos jornais franceses e o magnífico caderno semanal do El País. É claro que o jornalismo de lá também abre espaço, talvez até com mais generosidade, para as fofocas e factóides da indústria cultural, mas as páginas dedicadas às artes gozam de grande credibilidade e respeito. Uma resenha na revista The New York significa que naquela semana aquele livro vai vender 5.000 exemplares só nas livrarias da cidade. Nem por isso o corpo editorial do The New York Times Book Review vai aceitar um garoto arrogante que acabou de sair da escola de comunicação e nada sabe de jornalismo na prática, muito menos se deixar levar pelo solipsismo e pelo voluntarismo. Convido o leitor deste artigo a abrir uma edição recente do suplemento do El País, e verificar o currículo dos colaboradores.
A indústria editorial brasileira tem grande potencialidade, mas por outro lado é arcaica na sua ponta comercial, na medida em que conta basicamente com vendas diretas de livros ao consumidor através de livrarias, utilizando o sistema de distribuição quase que como único meio de escoar a produção, quando em alguns países as livrarias representam apenas 20% das vendas de livros. Para completar, é uma indústria situada num país em que 30% da população é de analfabetos absolutos que vivem abaixo da linha de pobreza, e onde 70% da população economicamente ativa não está instrumentalizada para espontaneamente consumir livros – para não falar das políticas públicas, que confundem aquisição de acervos para atualização de bibliotecas com campanhas de doações indiscriminadas de livros descartados. Ou seja, o Brasil é um dos piores consumidores de livros. E só poderia sustentar um dos piores jornalismos literário do planeta
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Escritor