É difícil para o homem e a mulher realizarem o distanciamento da mídia eletrônica na contemporaneidade. É complicado, mesmo quando se esteja armado de discursos críticos, implodir o aparato e os sistemas discursivos que invadem o cotidiano. Qual é esse poder? Como penetra e se exerce? Que respostas provoca?
Tudo que está à nossa frente se apresenta com tanta naturalidade e veracidade que somos, muitas vezes, incapazes de romper com os mecanismos dessa operação de sedução que é tão eficazmente orquestrada. As imagens (belas) e os discursos verbalizados (incluídas as antigas falas revestidas de novidade) penetram e tornam quase desnecessário exercitar a imaginação, pois o receptor é chamado para assistir, para acatar o moralismo de estar informado; não é para questionar o oceano de elementos confusos disponibilizados pela TV ou para protestar pelo movimento incessante ou as aparições evanescentes na tela doméstica.
Os produtos da mídia eletrônica estão ali na sua incalculável diversidade para serem consumidos: a Amazônia, a guerra do Iraque, as últimas eleições no Brasil ou em qualquer país, o jogo de futebol, o desfile da escola de samba, um desastre natural qualquer ou uma paisagem profundamente bela.
Os discursos sociais sobre a Amazônia
O fenômeno de poder de penetrabilidade das tecnologias de informação e de entretenimento em todas as sociedades contemporâneas de que fala Castells [CASTELLS, Manoel. A era da Informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999 (vol. I. p. 50)] constitui uma fase apenas; a outra é a capacidade e plasticidade dos discursos que guardam certas características e formas paradoxais: a fluidez derrotando a estabilidade; as diferenças sufocadas pelo imperativo da homogeneidade e da globalização; a superabundância de informações, inseparável do empobrecimento do conteúdo; a separação e a distância de culturas e mundos quebradas pela representação de proximidade, familiaridade e banalidade.
Ao longo de anos de pesquisa, Manuel Sena Dutra, jornalista e professor da UFPA e da Universidade da Amazônia (Unama), construiu, como objeto de análise, a discursividade da mídia buscando mostrar a capacidade desta de produzir uma repetibilidade fragmentária de textos historicamente produzidos sobre a Amazônia. Essas reflexões convergiram para a elaboração da tese que foi defendida no curso de doutorado do PDTU/NAEA [Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará], em fevereiro de 2003, e estão na origem deste livro.
Trata-se de uma série de indagações sobre o discurso midiático para compreender como este reedita e atualiza idéias cristalizadas, eterniza noções sobre ‘índios’ e ‘caboclos’ e sobre a natureza. O livro contribui, de forma original, para uma reflexão sobre a discursividade sobre a Amazônia na TV. O objeto deste estudo são os discursos sociais que incluem o enunciado Amazônia e aqueles outros a ela tão recorrentemente associados, como biodiversidade, meio ambiente, desenvolvimento sustentável, ou uma Amazônia midiatizada que se constitui em produto principal dos dispositivos emissores, portanto, a análise de operações discursivas da instituição mídia quando coloca essa região em circulação no mercado simbólico.
Penetração no imaginário e lacunas
O novo deste trabalho é explicitar as faces do discurso das descobertas da mídia e interpretar suas condições de produção e o exercício de poder daqueles que produzem seu sentido, o veiculam e reproduzem. A Amazônia da TV descobre-se nas matrizes do discurso colonial que carrega as noções estereotipadas que operam a invisibilidade histórica e social de índios, negros e os chamados `povos da floresta´, reproduzindo uma visão de tempos e de história. A hipótese do autor é a percepção, pelos produtores midiáticos e pelas elites, desses grupos como congelados no espaço-tempo, e uma Amazônia como sendo um lugar estabilizado no tempo, vazio humano, pleno de recursos em meio aos quais índios e demais `povos da floresta´ permanecem tanto invisíveis quanto ineptos para dar racionalidade econômica aos recursos naturais. Por isso, aqueles `povos´ são midiatizados como diferentes, exóticos, e só em virtude destes pré-construídos tornam-se freqüentes nas pautas da mídia.
Essa hipótese é um discurso interpretativo sobre a alteridade. Ela abala as certezas da mídia, desaloja as mensagens e força a dolorosos questionamentos.
O discurso da mídia produz deslocamentos de sentidos ao provocar inversões discursivas. É pelo reconhecimento dessa operação e mecanismo que Manuel Sena Dutra convida a realizar uma leitura da suposta coerência discursiva dos textos televisivos sobre a Amazônia. Mas antes indica quais são suas armadilhas e identifica sua penetração no imaginário coletivo e os pontos lacunares do discurso. Para o autor, essa decifração permitirá, no futuro, observar como são preenchidas as lacunas e exercitar a compreensão do próprio funcionamento da sociedade.
Rigor teórico e metodológico
A Amazônia fabricada pela mídia produz mal-estares sociais mediatizados à Champagne [CHAMPAGNE, Patrick. ‘A visão mediática’. In: BOURDIEU, Pierre et al. A Miséria do Mundo. Petrópolis, Vozes, 1999 (p. 63-79)]. Este escreve que ‘os mal-estares não são todos igualmente `mediáticos´ e os que o são sofrem inevitavelmente um certo número de deformações a partir do momento em que são tratados pela mídia porque, longe de se limitar a registrá-los, o tratamento jornalístico os faz experimentar um verdadeiro trabalho de construção, que depende muito amplamente dos interesses próprios deste setor de atividade’.
Vários desses mal-estares sociais mediatizados, Manuel Sena Dutra interpreta e mostra neste trabalho de pesquisa, crítico e desenvolvido com rigor teórico e metodológico ao descer à gênese dos discursos enquanto práticas sociais. O reconhecimento da elevada contribuição deste trabalho acadêmico foi feito, primeiro pela banca de exame de tese e, mais recentemente, pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, a Intercom, em nível nacional, durante o XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Porto Alegre, o que pode ser um mecanismo para atingir os produtores midiáticos no seu lugar de emissão e de poder. Igualmente em nível regional, o trabalho que dá origem a este livro foi reconhecido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da UFPA, obtendo o primeiro lugar em concurso bi-anual.
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Historiadora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (UFPA), Belém, PA