‘Os dois lados da favela’ é o título escolhido por alguns estudantes de escolas municipais da Vila Cruzeiro – tão em foco ultimamente no Rio de Janeiro – para uma animação que produzimos com eles e seus professores em 2007, no âmbito da proposta ‘Cartas Animadas pela Paz’. Desenvolvemos esta proposta entre os anos de 2001 a 2008, quando dirigimos a MultiRio, empresa municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio, ligada à Secretaria Municipal de Educação.
Os estudantes ainda não liam ou escreviam com desenvoltura, embora tivessem idade para tanto. Apáticos, dispersivos ou agressivos – fruto , em parte, de seu convívio próximo com a violência –, interessaram-se, contudo, a revelar suas sensações e experiências de vivência naquela comunidade, participando das oficinas de animação com seus professores. Falar, desenhar e descobrir que o registro gráfico e animado poderia ser compartilhado e admirado, abriu novas portas para o conhecimento. Conhecimento carregado de sentidos e afetos, representados em seu universo simbólico, pelo refrão que compuseram para o fundo musical da animação: ….’na favela também tem trabalhador….’
Em consequência, o desejo de ler e escrever contribuía para sua autoestima e fortalecia sua autoimagem, posto que, também seriam lidos e ouvidos. Esta estratégia pedagógica integrando mídia à educação, derivava da política educacional alimentada pelo Núcleo Curricular Básico Multieducação, criado e desenvolvido com a participação de cerca de 73% dos milhares de professores municipais do Rio, quando fomos responsáveis pela Secretaria Municipal de Educação entre 1993 a 1996. Na mesma ocasião, criamos a MultiRio, por lei municipal aprovada na Câmara de Vereadores. A Multieducação propunha que as ações pedagógicas nas escolas municipais fossem articuladas pelos princípios educativos da cultura, do trabalho, do meio ambiente e das linguagens, interagindo com os núcleos conceituais da identidade, do tempo, do espaço e da transformação, iluminados pelos princípios éticos da autonomia, da solidariedade e da responsabilidade.
A improvisação de gestores
Buscando integrar mídia audiovisual à educação, ‘Cartas Animadas pela Paz’, produzidas por estudantes cariocas das escolas municipais em regiões de maior violência na cidade, recebeu da Unesco em 2005 o reconhecimento público internacional, ao ser considerada como uma das ‘melhores práticas de mídia e educação na América Latina’.
Impressiona constatar em suas várias narrativas que os muitos conflitos relatados culminavam na escola municipal, vista como um oásis, onde no diálogo com seus professores, as lutas e dificuldades eram compreendidas e encaminhadas, num tom de esperança, confiança e transformação. Este pequeno fragmento – bem avaliado e bem-sucedido – era parte de uma política educacional que foi interrompida e abandonada, com as mudanças de governos.
Discute-se muito, agora, os contínuos maus resultados do desempenho educacional do Brasil na avaliação do Pisa, promovida pela OCDE. As soluções apontadas enfatizam sempre a necessidade de maiores verbas para a Educação. Verbas são indispensáveis, sejam as constitucionais ou, mais recentemente, as do Fundeb visando, em especial, a salários condizentes com as responsabilidades e dificuldades de ser professor nos dias de hoje, além da introdução e manutenção de planos de carreira.
Mas para obter êxito, tanto a aplicação das verbas, quanto a viabilização de políticas educacionais necessitam de gestão competente e profissional. No entanto, a improvisação de pessoas em gestores educacionais, desde o nível federal aos estaduais e municipais, continua sendo um dos piores problemas para a educação pública em nosso país. A cada mudança de governo há, muitas vezes, a destruição – por incompetência ou abandono – de políticas públicas laboriosamente construídas por profissionais da educação com seus colegas professores e diretores de escolas municipais e estaduais. Nestas, por direito e dever, deveria educar-se com êxito a maioria de crianças, adolescentes e jovens brasileiros.
Transformações e resultados
A improvisação na gestão e o retalhamento das redes públicas em uma grande quantidade de ‘projetos’, mercadejados ao sabor dos interesses de ‘especialistas’ e dos gestores do momento , contribuem para a desagregação, o descrédito e o desânimo reinante entre os docentes. Isto porque passa a ser muito mais ‘prático’ obter resultados pontuais positivos em avaliações periódicas – para efeitos de marketing, mesmo que não correspondam à realidade – do que o processo de criar, desenvolver, fortalecer e analisar crítica e honestamente, políticas educacionais consistentes, eficazes, transformadoras e democráticas , aperfeiçoando-as.
Aos professores, se atribui uma gama crescente de responsabilidades, sem que venham das Universidades – em especial dos cursos de Pedagogia – com uma preparação adequada para o trabalho nas escolas públicas deste início de milênio e século. O novo paradigma educacional que exige conhecimentos sobre educação, mídia, valores, conflitos e sua resolução é timidamente enfrentado por universidades públicas e privadas, além de trabalhado mediocremente no âmbito das atualizações em serviço.
As lições de ‘Os dois lados da favela’, como outras mais, ensinadas pela criatividade, bravura e resiliência de equipes de professores, profissionais de mídia e de áreas das ciências e da cultura, junto com nossos estudantes das escolas públicas – quando articulados e administrados por gestores qualificados no campo da educação – são valiosas.
Se aprendidas com humildade e honestidade, contribuirão para que as transformações desejadas aconteçam e os bons e verdadeiros resultados educacionais sejam obtidos, como nosso país merece.
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Consultora em Educação e Mídia, ex/secretária Municipal de Educação do Rio e ex/presidente da MultiRio