Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os mil encantos das marchinhas.

As expressões ‘dever de casa’ ou ‘deveres para casa’, de acordo com a região em que estavam as escolas que os recomendam, pois umas adotam o singular, outras o plural, consolidaram-se de tal forma na língua portuguesa e na cultura brasileira que essas tarefas escolares foram transformadas até em metáfora do que se deve fazer em economia para que as histórias cheguem a um final feliz, depois de peripécias, como nos contos de fada. Tornou-se frequente na mídia ouvirmos, vermos e lermos algum ministro da Fazenda reafirmar que é preciso fazer o ‘dever de casa’ e a seguir dar como exemplo países que fizeram e países que não fizeram o ‘dever de casa’.

A expressão traz embutido um lado sinistro. Fazer o ‘dever de casa’ é pagar bastante juros ao capital e economizar em investimentos públicos, vistos sempre como despesas exageradas, ainda que seja em alimentação, saúde, ensino, cultura, segurança, transportes.

Mas numa cooperação muito bonita e apropriada entre mídia e escola, fazer o ‘dever de casa’ é fortalecer essas duas aliadas na guerra diuturna contra a ignorância, para que pelo menos os eleitores sejam antes leitores, pois votariam melhor, já que mais esclarecidos, e elegeriam outros semelhantes, aperfeiçoando os processos democráticos de escolha dos que nos governam e legislam.

Jornalismo e história

Algumas iniciativas se destacam nesse particular, seja no rádio, na televisão, na internet e nas bancas de jornais e revistas. Já foi dito, aqui mesmo neste Observatório, que a mídia vem cumprindo há muitos anos a tarefa de ensinar complementos de língua portuguesa ao distinto público que, como sabemos, é composto de pessoas dotadas de extraordinária habilidade verbal, muito própria do brasileiro, que entretanto padece de uma pobreza inimaginável quando precisa escrever.

Em resumo, o brasileiro ouve e fala bem, mas lê pouco e escreve mal. Padece também de um desestímulo adicional. Até mesmo respeitadas instâncias universitárias abrigam profissionais que proclamam ser dispensável o domínio da norma culta. Claro! Primeiro eles chegaram aonde chegaram dominando a norma culta, que agora dispensam como estratégia de ascensão profissional e social para os outros.

Mas não é só em língua portuguesa que encontramos exemplos de territórios do saber em que mídia e escola se ajudam uma à outra. Tomemos outro exemplo. No caso, Aventuras na História (Editora Abril, número 79, fevereiro de 2010).

Já na ‘Carta ao Leitor’, a diretora de Redação Patrícia Hargreaves levanta questão muito pertinente, nascida de cartas e e-mails de leitores: a revista é feita por historiadores ou por jornalistas? E ela responde: ‘Somos jornalistas que dependem da informação de historiadores’.

Acontece algo semelhante em outras áreas, como exemplifica a seguir: ‘Revistas escritas por médicos são para leitura dos médicos. Revistas escritas por arquitetos são para leitura de arquitetos. História não é nem pretende ser uma revista técnica’.

Único senão

Os melhores exemplos de sua tese aparecem na sequência. As matérias semelham um cardápio repleto de pratos deliciosos, tornando difícil a escolha. O melhor é devorar todos, um por vez, é claro, voltando ao restaurante e tornando-se freguês da casa.

Destaco ‘Cheias de encantos mil’, matéria sobre as marchinhas que, a partir de 1920, com humor e boas rimas, tornaram-se presença indispensável nos carnavais. Elas de fato oferecem abundante material ao historiador e a quem quer que se interesse pelas vinculações que as marchinhas guardam com a sociedade epocal.

A sociedade brasileira ainda vacilava em aceitar sexualidades heréticas, como o lesbianismo e o homossexualismo, mas a Discoteca do Chacrinha levava até crianças a cantar: ‘Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão/ De dia é Maria, de noite é João’.

Mostrando que alguns problemas sociais parecem eternos no Brasil, Tomara que chova, marchinha lançada no carnaval de 1951, dizia: ‘Tomara que chova/ Três dias sem parar/ A minha grande mágoa/ É lá em casa não ter água/ E eu preciso me lavar’; assim concluída: ‘O trabalho não me cansa/ O que me cansa é pensar/ Que lá em casa não tem água/ Nem pra cozinhar’.

Vinte anos antes, em 1931, repercutindo a Revolução de 1930, Lamartine Babo e os Irmãos Valença diziam em O teu cabelo não nega: ‘Mulata, mulatinha meu amor/ Fui nomeado teu tenente interventor’.

Os leitores podem complementar a leitura com Antologia musical popular brasileira: as marchinhas de carnaval, de Roberto Lapiccirella (São Paulo, Musa Editora, 1996), ausente das indicações bibliográficas complementares, reduzidas a um site e a um dicionário. É o único senão da matéria, que de resto foi muito bem pautada.

E os estudantes encontram na revista boas matérias para o ‘dever de casa’.

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Escritor e professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras