Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os nossos Napoleões

“Quem não é capaz de relembrar o passado está condenado a repeti-lo” (George Santayana)

Terminei um livro instigante: Napoleão: uma biografia política, do historiador americano, radicado na França, Steven Englund. A obra, como sugere o título, faz um apanhado político do período napoleônico, desde os primórdios da infância de Napoleão Bonaparte, na Córsega, até sua morte na ilha de Santa Helena. Além do conteúdo intrínseco, um aprofundamento das condições políticas que permitiram que um jovem da baixa nobreza corsa se transformasse em um dos maiores líderes político-militares de todos os tempos, o livro aponta similaridades intrigantes na relação de poder entre Napoleão, o legislativo e a imprensa e esta mesma relação – entre o executivo, o legislativo e a imprensa – no Brasil da atualidade.

“O primeiro-cônsul, no entanto, concebia o governo como um trabalho de administração, em contraste com o qual os encargos dos deputados eram leves: rever o orçamento, receber petições do `povo´, e ratificar pro forma os projetos de lei enviados pelo Executivo. Parecia esperar que se entediassem um pouco e se sentissem subutilizados, quase incentivando-os a isso. Disputas e discussões tinham um papel, mas isso nas sessões a portas fechadas do Conselho de Estado – não nos recintos públicos do Tribunato e do Corpo Legislativo, onde a crítica poderia dar munição a jornais e facções, ambições e interesses. Esta, na visão de Bonaparte, era a maneira anglo-saxã, não a francesa.

“Discursos que o faziam parecer ridículo”

A grande maioria dos tribunos e legisladores concordava com esse ponto de vista, ou pelo menos o admitia. Outros, porém – entre os quais alguns dos mais brilhantes (p.ex., Benjamim Constant) –, tentava contestá-lo. A retórica crítica destes era recebida pelo primeiro cônsul com fúria, choque e gestos de retaliação (Bonaparte irritava-se menos com legisladores que faziam crítica serenamente, evitando discursos altissonantes). Para se defender, a oposição legislativa limitava-se a tratar de trivialidades ou de questões de princípio, conseguindo por vezes fazer as duas coisas ao mesmo tempo: por exemplo, ao discutir o uso da palavra `súditos´, em vez de `cidadãos´, num artigo de um tratado com a Rússia. Os legisladores eram capazes de fazer grandes estardalhaços em torno de um projeto irrelevante sobre arquivos, e de não dizer uma palavra de protesto ante o retorno da escravidão colonial ou a anexação da Renânia” (pág. 236 e 237).

A passagem acima poderia se referir tranquilamente à relação que muitos legislativos municipais mantêm com prefeitos, ou que muitos deputados estaduais e federais aceitam como padrão de relacionamento com governadores e com o executivo federal nos dias de hoje. Tratar de trivialidades é, como se sabe, o principal ofício de vereadores dentro do falido sistema representativo que nos é oferecido hoje. Nome de ruas, homenagens vazias e projetos autorizativos são, hoje, tão ou menos importantes que a substituição da palavra cidadão por súdito em um documento obscuro do século 19. Da mesma forma, nas esferas superiores do legislativo, o papel dos deputados é muito mais um apêndice do executivo do que propriamente o de legisladores.

Era desejo de Bonaparte – na verdade, ele ansiava por isso – manter com os deputados parlamentares relações como as que mantivera com os savants no Instituto. Volta e meia sugeria: “Em vez de perorar da tribuna, por que não vem falar pessoalmente comigo? Poderíamos conversar em família” (pág. 236).

“Críticas o indignavam e não estava acostumado a derrotas; aqueles discursos, a seu ver, o faziam parecer ridículo. Os agentes secretos de sua polícia lhe relatavam cada detalhe inútil do que os deputados diziam no Parlamento ou nos salões de elite que eles frequentavam, e Bonaparte levava tudo em conta” (pág. 237).

Visão deturpada

Mais uma vez as passagens supracitadas podem ser relacionadas ao nosso cotidiano político. Manter o contraditório entre quatro paredes, suprimir a voz discordante. Não é este o objetivo perseguido hoje por quem detém o poder? Da mesma forma, é comum – olhem para os lados agora mesmo – identificarmos nos círculos de poder contemporâneos o pavor da crítica e a rede de bajuladores que se incumbe de denunciá-la às cabeças coroadas. As coisas mudaram pouco nos últimos 200 anos.

“O que conta não é a verdade, é o que o povo pensa que é verdade” (pág. 349).

A relação de Napoleão Bonaparte com a imprensa também pode ser comparada ao que muitos de nossos dirigentes da atualidade gostariam de impor (e que alguns de fato impõem mediante a força do poder econômico que detém a esfera política).

“Para Napoleão, a `história perfeita´ era aquela não `passível de interpretação´, ou seja, a que narrasse a crônica de la politique (formação do Estado) sem cair ela própria em la politique (contestação)” (pág. 338).

Nada disso impedia que o consenso social dominante continuasse a endossar dois pontos de vista do imperador: o de que “nem toda notícia desagradável sobre o governo devia ser publicada” e a de que os jornais tinham o dever de divulgar as ideias do governo – tudo o mais era política (pág. 344).

Ora, ambas as reflexões anteriores poderiam ser atribuídas a homens públicos que nos rodeiam. A noção de que a informação deve ser subserviente ao poder permeia a nossa práxis política. Esta visão deturpada do papel da imprensa é, parte por culpa da própria imprensa, o que predomina entre nossos dirigentes.

Imprensa inglesa e a difamação

“É claro que a publicação de qualquer obra contrária ao governo seria sustada.” E cá estamos de novo: para ele, os escritores deveriam, naturalmente, usar sua arte, influência e liberdade para apoiar o Estado; se não o fizessem, estariam agindo contra o interesse público (pág. 345).

O imperador era um relações-públicas nato. Ansioso por expor sua versão de todas as coisas, não tinha nenhum escrúpulo quanto à exatidão, só sofreguidão por se pronunciar o mais rápido possível. “Não estamos aqui para discutir a opinião pública”, disse ao Conselho de Estado, “estamos aqui para controlá-la” (pág. 348).

Num grau único entre os políticos de sua época, talvez de qualquer época, Napoleão cultivou mitos acerca de seu Estado e de si mesmo em todos os setores. De fato, se entendermos “propaganda”, num sentido lato, como “o conjunto dos métodos utilizados pelo poder no intuito de obter resultados ideológicos e psicológicos”, a motivação e o alcance de Napoleão na manipulação da opinião pública foram ilimitados… (pág. 348).

Dentro das devidas proporções, o fenômeno Lula não se enquadra nos comentários anteriores pinçados do livro de Englund? O desconforto diante da crítica, a visão torta segundo a qual crítica e fiscalização por parte da imprensa é, inexoravelmente, fruto da sanha política de uma oposição inconformada com a ascensão de um operário ao poder (construção dos mitos à la Bonaparte). Incrível perceber como este líder de massas (Bonaparte) antecedeu os estadistas modernos na manipulação da imagem e no desprezo pela verdade.

Mas o imperador dos franceses também sentiu na própria pele as mazelas de uma imprensa pouco comprometida com o papel que, hoje, lhe atribuímos. A imprensa inglesa teve papel fundamental no azedamento das relações entre Inglaterra e França ao difamar Bonaparte de forma insistente, colaborando para que este mantivesse os jornais franceses sob controle restrito.

O tirano da liberdade

“Para os franceses, o tratado só teve um verdadeiro inconveniente, mas esse foi gigantesco e pessoal: os ataques da imprensa britânica ao primeiro-cônsul e à sua família que o acompanharam. Os jornalistas que produziam esta propaganda deram prova de extremo talento e perversidade; demonizavam Bonaparte (`o ogro corso, semi-africano, semi-europeu, mulato mediterrâneo´, o `macaquinho de um metro e trinta´, `um pastiche de todos os palhaços da revolução´ etc.), contavam mentiras intermináveis sobre seu passado, difamavam Josefina e insinuavam que a irmã dela mantinha relações sexuais com Napoleão. Havia relativamente pouco tempo que a opinião pública se tornara um fator de peso na política internacional e essa campanha da imprensa teve importante papel no envenenamento das relações entre os dois países” (pág. 286).

“`Será que a liberdade de imprensa vai tão longe´, escreveu Bonaparte em Le Moniteur (8 de agosto de 1802), `a ponto de ser permitido a um jornal dizer de uma nação amiga, recém-reconciliada com a Inglaterra, coisas que não ousaria dizer a um governo com que estivesse em guerra?´” (pág. 286).

Outro aspecto fascinante na obra de Englund é a dicotomia política apresentada por Bonaparte. Se por um lado virou ao avesso os ditames da Revolução Francesa, trazendo de volta a monarquia em detrimento dos valores republicanos sob o pretexto de dar um fim ao terror, por outro lado, onde quer que a influência francesa tivesse se estendido durante seu longo governo, o legado napoleônico esteve ligado a valores progressistas. Foi sempre absolvido pelos revolucionários que viriam e renegado pelos tiranos (entre eles os fascistas espanhóis, italianos e alemães).

Como a história é escrita pelos vencedores, o papel de tirano imposto a Bonaparte (em especial pelos ingleses) talvez fosse mais secundário que de protagonista. Seria ele mais tirano que os monarcas ingleses, que construíram um império sobre colônias esmagadas; ou que os prussianos e austríacos, com sua aristocracia montada em privilégios feudais; ou que os espanhóis, com sua sociedade dominada pelo fanatismo católico?

O Raskólnikov corso

“Se para ser livre bastasse desejar a liberdade, todos seriam livres. Mas a história mostra que poucos recebem os benefícios da liberdade porque poucos têm a energia, a coragem ou a virtude que ela requer” (Napoleão em Santa Helena, Pág. 19).

“Foi por isso que os homens do Brumário – homens partidários da autoridade, mas não do despotismo, e profundamente imbuídos da noção de que `sem poder não se realizam ideais´ – continuaram, com poucas exceções, a bordo da nave consular após 1802. Nem sempre felizes, e com crescentes dúvidas e premonições, mas a bordo. Só ao cabo de algum tempo alguns deles compreenderiam que, `com poder, ideais raramente sobrevivem´” (pág. 247).

Talvez uma explicação mais racional para a evolução de Napoleão Bonaparte de líder para tirano seja a reflexão que se segue:

“No fundo, escreveu Napoleão, `o espírito natural do homem é o desejo de dominar´. A visão hobbesiana é inequívoca: `O homem na natureza não conhece outra lei senão o interesse próprio: preservar-se, destruir os inimigos, esses eram seus deveres diários.´ A consequência de uma visão tão sombria é que o Estado (palavra que Napoleão escreve com inicial maiúscula, à maneira francesa) deve ser forte” (pág. 43).

Embriagado pelo orgulho, o personagem Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo, obra-chave de Dostoievski, arquiteta um assassinato sob a teoria de que aos que ele classifica como homens extraordinários tudo é permitido, visto que seus atos têm como objetivo o bem maior ou o simples “direito” de cometer o que sua vontade exigir. Aos homens ordinários, a turba, o populacho, restaria observar como rebanho os arroubos de genialidade destes homens superiores, que guiam seus atos não por uma ética que a todos submete, mas por outra, feita sob medida para cada um mediante sua genialidade.

A justificação de seus atos

“Os homens ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de transgredir a lei, uma vez que são ordinários. Os indivíduos extraordinários, por sua vez, têm o direito de cometer todos os crimes e de violar todas as leis pela única razão de serem extraordinários” Livro I pág. 346 (Crime e Castigo).

Ora, o pensamento de Bonaparte flerta com os demônios de Raskólnikov. Nos seus últimos momentos em Santa Helena, aprisionado em si mesmo, o grande herói dos franceses, o carrasco dos Bourbon, o libertador de povos assim tentou justificar seus atos diante da história:

“Em suma, grandes homens não deveriam ser julgados pelas regras comuns de moralidade: o herói como gerador de progresso merece latitude, tem o direito de agir segundo seu próprio entendimento e sua própria noção de liberdade. Só deveria ser condenado se agisse de maneira flagrantemente incorreta” (pág. 495).

******

Jornalista, bloga no Escrevinhamentos