Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para decifrar a mídia

A compreensão dos fenômenos midiáticos tem se constituído num esforço que envolve estudiosos dos mais diversos quadrantes e tendências ideológicas. Essa produção crítica tem revelado os diversos pecados da mídia e a necessidade de transformá-la num mundo fustigado por mudanças tecnológicas velozes. Ocorre que essa mídia, quando atinge os seus mais baixos instintos, é demonizada a priori. Atira-se a primeira pedra, sem que antes se mergulhe na análise dos porquês do apelo de programas como Big Brother, Ratinho e similares, no caso brasileiro, e sua relação com a sociedade. Esse esforço de compreensão vem sendo realizado pelo professor José Marques de Melo há mais de 30 anos, em extensa produção acadêmica. Seu novo livro, A esfinge midiática, mostra que é preciso um novo enfoque pautado em novos paradigmas comunicacionais, e não somente nos velhos conceitos eurocentristas, fundados em outras realidades.

Nossas pesquisas empíricas são escassas e insuficientes, e permanecemos importando teorias exógenas, diz. O receituário para decifrar a esfinge da mídia é sugerido por esse decano da comunicação: Observar, registrar e interpretar os fenômenos peculiares ao funcionamento das indústrias midiáticas em nossa sociedade para compreendê-los e regulá-los de acordo com o interesse público.

José Marques de Melo escreveu, entre outros livros: História social da imprensa (Edipucrs), Jornalismo opinativo (Mantiqueira), Comunicação (Vozes), As telenovelas da Globo (Summus), Comunicação e transição democrática (Mercado Aberto) e História do pensamento comunicacional (Paulus). Foi docente-fundador e diretor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Na entrevista que se segue, concedida por e-mail, Marques de Melo fala do novo livro e de outros tópicos relacionados à mídia.

***

O que esse novo livro acrescenta à sua já vasta produção acadêmica?

José Marques de Melo – Meu novo livro dá continuidade às reflexões que, há mais de trinta anos, venho fazendo sobre os fenômenos comunicacionais. Ele na verdade atualiza para a conjuntura do século XXI minhas preocupações cognitivas.

Por que comparar a mídia a uma esfinge?

J.M.M. – Da mesma forma que, na mitologia grega, a esfinge de Tebas propunha enigmas aos viajantes, defrontamo-nos hoje com situação idêntica no cotidiano das vanguardas intelectuais, que se defrontam com a esfinge midiática, desdenhando-a, sem elucidá-la cognitivamente, enquanto ela devora culturalmente a nossa sociedade.

Quais são os pressupostos básicos para decifrar essa esfinge?

J.M.M. – Os pressupostos e as ferramentas que proponho são aqueles típicos da atividade científica na universidade: observar, registrar e interpretar os fenômenos peculiares ao funcionamento das indústrias midiáticas em nossa sociedade para compreendê-los e regulá-los de acordo com o interesse público.

Em seu livro, o senhor faz uma análise dos paradigmas norte-americano e latino-americano sobre a mídia. Quais as diferenças fundamentais entre um e outro?

J.M.M. – O paradigma histórico vigente na sociedade norte-americana é o da inclusão cultural, alicerçado na escola e continuado através da mídia. No caso latino-americano, vigora a tradição da exclusão cultural, tendo em vista a expulsão precoce das novas gerações das instituições educacionais, o que transforma a mídia em escola paralela, balizada por rudimentares estímulos intelectivos.

Haveria superioridade de um paradigma sobre o outro?

J.M.M. – Não se trata de superioridade ou de inferioridade. Trata-se de um descompasso histórico. Quando a mídia se desenvolve, tanto na Europa quanto na América do Norte, suas populações haviam usufruído os benefícios da universalização educativa. Aqui, ao sul do Rio Grande, nossas sociedades permanecem iletradas ou culturalmente degradadas. Logo, as indústrias midiáticas são limitadas pela ausência ou carência de requisitos cognitivos capazes de justificar a elevação dos respectivos conteúdos.

As teorias de comunicação existentes ainda explicam a mídia? Explicariam fenômenos midiáticos como os reality shows?

J.M.M. – As teorias da comunicação que circulam em nossas universidades foram produzidas em realidades distintas da nossa. Elas foram importadas da Inglaterra, França, Canadá ou Estados Unidos. Portanto, não podem ser transplantadas automaticamente para o nosso meio ambiente. Elas precisariam ser testadas empiricamente, verificando se aqui assumem o mesmo comportamento. Como as nossas pesquisas empíricas são escassas e insuficientes, permanecemos importando teorias exógenas. O conhecimento até agora disponível sobre fenômenos como os reality shows tem caráter exclusivamente mercadológico, no sentido de orientar as empresas midiáticas a adaptar ao gosto nacional formatos transplantados. O que se espera dos pesquisadores da área de comunicação é partir dos dados estocados pelas redes televisivas e dar passos adiantes, no sentido de mensurar e interpretar os impactos sócio-culturais de tais programas.

Como se explica o fascínio das telenovelas sobre o imaginário da sociedade brasileira?

J.M.M. – O fascínio pelas telenovelas advém do hábito cultural que aqui foi disseminado no século 19, quando importamos os primeiros folhetins produzidos na Europa. Em meados do século 20, esse gênero melodramático ganhou maior impacto, através das radionovelas, incorporando os contingentes analfabetos ao universo dos seus usuários. Presentemente, ele se reproduz na telinha, mobilizando o conjunto da população nacional, justamente porque substituiu, gradativamente, os conteúdos importados pelos signos sedutores da nossa cultura popular. Em meu novo livro em dedico um capítulo inteiro a essa problemática, tentando elucidar como se deu a legitimação social das telenovelas pelos formadores de opinião pública no Brasil.

Como o senhor observa a invasão dessas telenovelas também em outras sociedades, como a cubana, a russa, a portuguesa etc.?

J.M.M. – As telenovelas focalizam temas e problemas em certo sentido universais. Elas variam os cenários e os personagens, refletindo os contextos em que foram produzidos, apesar do enorme esforço para globalizá-las. Elas substituem os produtos da literatura popular nos tempos da revolução burguesa, ganhando em intensidade porque se adaptaram ao ritmo trepidante das sociedades aceleradas pela informática.

Outro tópico abordado no livro é a participação crescente da mulher nos ambientes da comunicação e da academia. Que contribuição específica esse novo perfil tem oferecido para o desenvolvimento da mídia?

J.M.M. – Ainda não se pode avaliar completamente o impacto da participação feminina no mercado midiático. As mulheres são hoje maioria no contingente profissional, embora não tenham conquistado espaço suficiente nas instâncias decisórias. Os dados até agora disponíveis sobre esse fenômeno são ainda descritivos e quantitativos. Falta, ainda, pesquisar melhor a influência feminina nos conteúdos e tendências dos produtos midiáticos.

Um estudo recente divulgado nos Estados Unidos indica um crescimento nas mídias alternativas naquele país. Isso estaria também sendo observado no Brasil?

J.M.M. – A mídia alternativa constitui rotina nas sociedades democráticas, que permitem e estimulam a produção simbólica das minorias ou das maiorias que se marginalizam em relação às correntes culturais hegemônicas. No regime de mercado, é natural que tais soluções alternativas sejam gradativamente incorporadas aos sistemas predominantes, sempre e quando correspondam às aspirações de vastos contingentes de consumidores que garantam sua rentabilidade.

Outro ponto destacado no estudo é que a internet funcionará como espaço de convergência para as outras mídias. O senhor concorda com essa previsão?

J.M.M. – Tecnologicamente, a internet foi engendrada como espaço de convergência simbólica, permitindo agregar conteúdos originalmente produzidos para veiculação através de suportes específicos. Até agora os suportes monocodificados estão funcionando concomitantemente aos suportes pluricodificados. Mas até quando permanecerá esse dualismo? As evidências científicas ainda são insuficientes para prever sua total integração.

Se essa tendência se confirmar, não implicará um hiato maior entre as populações mais pobres, excluídas do admirável mundo novo digital, e a informação?

J.M.M. – A questão não se limita ao aspecto tecnológico, até mesmo porque as tecnologias de informação digital estão sendo barateadas fabulosamente. O problema reside no domínio dos códigos. Não basta melhorar a capacidade aquisitiva dos cidadãos, ampliando seu acesso às novas tecnologias. Enquanto tivermos massas amorfas, analfabetas e ignorantes, as demandas comunicacionais permanecerão defasadas.

Pesquisa divulgada em 2003 indica que apenas uma parcela da população brasileira (25%) é capaz de discernir a leitura de uma informação escrita. Esse não é um desafio particularmente difícil para uma atuação mais séria da mídia impressa?

J.M.M. – Este é o argumento que venho reiterando desde o início. A salvação cultural da nossa sociedade está na universalização do sistema educativo.

Que tipo de lição programas como Big Brother, Hebe e Ratinho podem oferecer aos estudiosos da mídia?

J.M.M. – Pouco conhecemos sobre a natureza de tais programas, seus conteúdos e seu impacto sócio-cultural. A academia brasileira padece de aguçado preconceito, pouco ou quase nada pesquisando sobre formatos midiáticos que vêm demonizando historicamente.

Que tipo de proposta tem norteado o grupo de São Bernardo do Campo, voltado para os estudos da comunicação?

J.M.M. – A mística do Grupo de São Bernardo pode ser resumida numa frase: pragmatismo utópico. Resgatando o legado da Escola Latino-Americana de Comunicação formamos uma geração de estudiosos midiáticos vocacionados para decifrar a esfinge midiática.

A mesma proposta poderia ser ampliada para outras regiões do país?

J.M.M. – Ela começa a se difundir pelo restante do país, na medida em que nos mestres e doutores atuam em outras universidades. Se eles não logram resultados imediatos é porque se defrontam com ambiente hostil, cimentado pelas atitudes apocalípticas importadas dalém-mar, especialmente ancoradas nas defasadas teses da diáspora frankfurtiana.

Em sua opinião, a nossa universidade tem contribuído a contento para explicar as variações do fenômeno midiático no Brasil?

J.M.M. – Os estudos midiáticos na universidade brasileira são ainda muito recentes. Apesar de termos programas de formação universitária há meio século, as atividades de pesquisa são ainda embrionárias. Temos multiplicado os estudos sobre a mídia, embora eles ainda permaneçam em patamares descritos. Falta uma vanguarda capaz de dar tratamento holístico ao conhecimento estocado, evitando a desnecessária reprodução de pesquisas já feitas em outros espaços e no mesmo tempo.

Como o senhor avalia as propostas de criação de um quinto poder para atuar como um agente fiscalizador da mídia?

J.M.M. – Acho fundamental que o Estado brasileiro mantenha instâncias destinadas a monitorar cientificamente a mídia, como aliás o fazem as nações democráticas. Contudo, acho perigosa a institucionalização de um mecanismo regulatório. Somos uma nação onde a tradição autoritária continua profundamente enraizada no tecido social. Por isso, a regulação dos sistemas midiáticos deve ser feita pelo Parlamento, fiscalizada pelo Judiciário, e implementada pelo Executivo. É fundamental garantir plena liberdade de ação para que as empresas e a sociedade civil possam nele intervir, dentro dos princípios da livre iniciativa.

O Brasil real, com suas múltiplas manifestações culturais, não aparece na grande mídia, ou não está incluído na agenda midiática. Como é que essa barreira pode ser vencida?

J.M.M. – A produção cultural nas indústrias midiáticas se faz de acordo com as lentes de uma camada que oscila entre o elitismo da academia e o comercialismo dos gestores empresariais. Para incluir o Brasil real em nossa mídia seria necessário ampliar, fundamentalmente, os espaços regionais, tendo em vista continuamos a ser um arquipélago cultural. Concomitantemente, seria desejável promover nas redes escolares programas de alfabetização midiática, desmistificando e desmistificando os conceitos equivocados que permeiam as atitudes da grande maioria dos nossos agentes educacionais.

Para o senhor, quais seriam os atributos da TV ideal no Brasil, para ficar somente na mais controversa das mídias?

J.M.M. – A TV ideal é aquela, em qualquer sociedade, que está sintonizada com as aspirações culturais dos contingentes majoritários da sociedade, garantindo-se evidentemente espaços segmentados para o deleite intelectual das elites. Enquanto o sistema educacional brasileiro não for universalizado e melhorado, continuaremos a ter cidadãos incapazes de demandar conteúdos mais avançados no espectro televisivo. Na medida em que lograrmos elevar o nível cultural da nossa população, imediatamente serão elevadas as aspirações populares nos terrenos do entretenimento, do jornalismo e da educação permanente.

******

Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)