Livro disponível para
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Para estes qualquer explicação sobre o papel de uma TV pública é insuficiente, dado o preconceito presente em suas manifestações. Mas aos que foram tomados de surpresa e curiosidade com o surgimento de um novo modelo institucional de radiodifusão, diferente de tudo o que estavam acostumados a ver, o debate é valioso. Assim como a maioria dos europeus, até a década de 1980, nunca havia se deparado com uma radiodifusão mantida pela propaganda, aqui nós nunca havíamos vislumbrado a possibilidade de ter uma rede nacional de TV sem sustentação majoritariamente comercial. As dúvidas eram pertinentes.
Jogo duro
O bloqueio ao acesso a um rádio, e depois a uma televisão, sem publicidade formou gerações alienadas. Para elas o modelo brasileiro era único. Durante muitos anos, só quem tinha a possibilidade de ouvir rádio no exterior se dava conta da existência de alternativas nas formas eletrônicas de comunicação. É revelador o relato de uma das primeiras locutoras do Serviço Brasileiro da BBC, Lya Cavalcanti, ao voltar ao Brasil em 1945, depois de quatro anos na Inglaterra:
‘Quando o navio entrou em águas brasileiras e o rádio começou a transmitir anúncios eu fiquei em pânico. Estava acostumada com a BBC que tinha programas fantásticos e não tinha anúncios. Você podia escolher o programa e de repente, aqui, você tem que enfrentar meia hora de anúncios. Você tem que ouvir uma coisa que não quer ouvir. Eu fiquei apavorada. Como é que pode? Que selvagens, que loucura’.
E quando surge a televisão, a possibilidade de transmissões menos poluídas com comerciais nem sequer é aventada. O discurso do dono dos Diários e Emissoras Associados, Assis Chateaubriand (Chatô), na solenidade de inauguração da TV Tupi, em São Paulo, em 1950, gira em torno apenas dos nomes dos anunciantes da nova emissora. O sociólogo Renato Ortiz considerou a fala ‘uma bela peça do surrealismo político latino-americano’. Foi mais do que isso. Tratava-se de uma confissão pública de fé num modelo de radiodifusão alheio a qualquer tipo de preocupação com a cultura ou a educação do país. Em palavras simples, era visto apenas como mais um negócio voltado para a acumulação de riquezas materiais, associadas ao prestígio social e ao poder político, adquiridos por quem controlava as emissoras.
Afora tentativas regionais, como a da criação de uma TV Educativa pela prefeitura do então Distrito Federal, no início dos anos 1950, o único projeto de caráter nacional existente antes da atual TV Brasil girou em torno da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. O segundo governo Vargas chegou a outorgar uma concessão para o seu funcionamento. No entanto, pressionado pelas mesmas forças conservadoras que o levaram à morte, ele não concretizou a iniciativa. Seu sucessor, o presidente Juscelino Kubitschek, chegou a confirmar a outorga do canal 4 do Rio para a Nacional, em 1956. Foi literalmente ameaçado por Chateaubriand, temeroso com a possível concorrência. ‘Se V.Exa. der o canal de TV à Nacional, jogo toda a minha rede de rádio, imprensa e televisão contra o seu governo’, disse o dono da Tupi, como conta Mário Lago em suas memórias.
JK recuou, o Brasil perdeu a sua TV pública, mas quem ganhou não foi o Chatô. Em 1957, Juscelino passou a concessão para as Organizações Globo que, só em 1965, pôs a sua emissora no ar. Ficava, dessa forma, intacto o monopólio comercial da televisão brasileira. E com ele a alienação da sociedade em relação ao modelo público.
Debate ampliado
Daí a necessidade de se qualificar o debate sobre os modelos institucionais de radiodifusão existentes no mundo, refinando-se as análises teóricas e aprofundando-se no estudo dos casos já consolidados historicamente. Este livro é uma preciosa colaboração nesse sentido. Surge vinte anos depois de a Constituição ter sido promulgada, prevendo um sistema de radiodifusão em que houvesse a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Ao colocar a palavra ‘público’ no texto legal, o então senador Artur da Távola talvez não imaginasse a polêmica que provocaria pelas décadas seguintes. O que foi ótimo, na medida em que ampliou a discussão e aguçou a criatividade de quem quer trabalhar concretamente com essa forma de fazer comunicação.
Por tudo isso, este livro torna-se imprescindível. Aqui está descrito o funcionamento dos sistemas públicos de radiodifusão de doze países, distribuídos por quatro continentes. Mais importante que a diversidade geográfica são as diferenças socioeconômicas existentes entre eles, além de uma radiografia precisa da situação atual dos sistemas. Mostram-se modelos públicos consolidados, como os do Reino Unido, da Alemanha e do Japão, ao lado de experiências mais recentes como as da Colômbia e da Venezuela. Sem faltar o caso brasileiro, observado por quem o acompanha desde os seus primeiros passos.
Esta publicação do Intervozes ampliará, com certeza, o número de participantes desse fascinante debate, contribuindo para romper com a alienação em torno do tema, ainda presente em grande parte da sociedade brasileira.
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Sociólogo e jornalista, professor da USP