Via de regra, e nos perdoem os conhecedores do chavão, via de regra os manuais de redação prometem tudo. ‘Auxiliar as pessoas a escrever com fluência, respeitando as regras da língua portuguesa e, ao mesmo tempo, adotando o tom coloquial que facilita o entendimento da linguagem escrita por parte de todos os que são levados a ler textos, independente de escolaridade ou especialização’, independente de qualquer cuidado, promete-nos um deles. Com tais maravilhas, se prometessem um tapete voador, prometeriam menos. Porque escrever com fluência e em estrito respeito às regras da língua e em tom coloquial e de tal maneira que todos, todos, todos compreendam, se é possível tal encanto, ele jamais será conseguido a partir das luzes de um manual de redação.
Os manuais de redação da grande imprensa, porque mais preciosos e utópicos, na maioria se chamam ‘de redação e estilo’. Eles mais que prometem. O manual do Estado de S.Paulo dispõe que o redator seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso. Isto numa só frase, no manual. E em todas as frases, para o redator do Estadão. O da Folha de S.Paulo não muda muito, nessa cadeia de cópia que os manuais possuem, como se fossem dicionários: o texto, determina a Folha, deve ser claro e direto. Deve ser exato e conciso. E mais, prescrevem estes e todos os jornais: o texto deve estar redigido em nível intermediário, ou seja, utilizar-se das formas mais simples admitidas pela norma culta da língua; que os parágrafos e frases sejam curtos e que cada frase contenha uma só idéia; que verbos e substantivos etc., etc.
O resultado, pelo que lemos todos os dias, é sabido. Mas longe está do sábio.
Manual de Redação e Estilo dos Associados
Feito esse nariz-de-cera, ou dizendo melhor, para evitar feito ambíguo, realizado esse nariz-de-cera, vejamos em que difere dos outros o Manual de Redação e Estilo dos Associados escrito pela professora Dad Squarisi, colunista do Diário de Pernambuco. Em conteúdo, no miolo mesmo, quase nada. Ah, mas na capa, sim. Falar sobre ela, a capa, geraria todo um novo nariz-de-cera. Os manuais dos jornais, lembremos rápido e esqueçamos a rima, sempre estiveram vinculados ao nome dos jornais. Essa coisa óbvia muda, e fala na transformação, com o novo manual de redação dos Diários Associados.
Ah, se o atrevido que lhes fala não desconhecesse também as artes de um designer, com o devido perdão do estrangeirismo! Se tal insuficiência não tivesse, então surgiria para todos uma capa em que o nome da empresa jornalística ocupa um modesto cantinho à esquerda, abaixo, azul no lilás, quase num estrangeiro flash subliminar. Mas tudo de forma fashion, como diria um colunista social. Mui elegante. Ela, a capa, destaca mais a autoria da jornalista que a empresa.
E isto é mais que um hiato, de produção e designer. Ela, a autora, está longe de um hiato – é um nome reconhecido além da empresa Diários Associados, com sua coluna, dela, Dad Squarisi, de regras do certo e do errado na língua portuguesa, sempre escritas de forma bem-humorada, dir-se-ia até com a pena da galhofa, sem a tinta da melancolia. Talvez por isto o seu nome seja o de um manual que em circunstâncias outras deveria ressaltar o nome dos Associados. Talvez, e tal vez aqui significa não enfiar muito a cabeça na boca escancarada do leão.
Ao livro
Ao trabalho. O Manual de Redação e Estilo por Dad Squarisi é um livro de 323 páginas que para o grande público tem menos de 100. Explicamos por quê. Composto por uma ‘Apresentação’, mais um ‘Vender o peixe’ (apresentação da notícia), mais ‘Preparar o peixe’ (elementos do estilo), mais ‘Embalar o peixe’ (padronização), um ‘SOS’ (pronto-socorro gramatical) e ‘Anexos’, ele inclui até a história de pioneirismo dos Associados. Que é uma história de grande interesse – e de patrocínio, reconheçamos.
Agora somem e subtraiam. Retiradas as páginas em branco, e as informações especializadas, que transcrevem matérias inteiras para ilustrar as definições brevíssimas do que é ‘artigo’ (‘opinião de especialista sobre o assunto em pauta’), ‘texto-legenda’ etc., etc., menos a ‘Padronização’, as normas das publicações dos Associados, os ‘Anexos’, que relacionam pleonasmos, tribos indígenas, siglas, países e código de ética, sobra o quê?. Setenta e cinco páginas de SOS gramatical e doze de ‘Elementos do estilo’.
Bueno, espanholismo, se não se tem uma boa gramática ou dicionário, o SOS salva o sorriso: nada como o conhecimento de que AAS é sigla do ácido acetilsalicílico.
Os elementos do estilo
É claro que elemento aqui nada tem a ver com marginal, delinqüente. Os elementos são partes essenciais (e que parte não é essencial, não é, amigos?) de um todo. Dad Squarisi remete, logo na abertura, a um clássico: ‘Montaigne, há 400 anos, disse que o estilo deve ter três virtudes: clareza, clareza e clareza’. Sim, mas como chegar lá?
‘Primeiro requisito: seja natural. Imagine que o leitor esteja à sua frente conversando com você’.
Bueno, se não se imagina que tipo de leitor temos à nossa frente, a naturalidade está perdida. Mas não esmoreçamos.
‘Segundo requisito: seja gentil. Fuja do nariz-de-cera’.
A próxima.
‘Terceiro requisito: seja leve. Não canse o leitor. Nem o obrigue a ter o dicionário ao lado’.
Mas se o leitor tem um vade-mécum ao lado, como o Manual de redação e estilo por Dad Squarsi, qualquer texto pesado é leve.
Então entramos no reino dos preceitos recomendados por especialistas, depois de longos anos, observação e canseiras. ‘Clareza e precisão – qualidades essenciais do estilo – têm íntima relação com as palavras’, sim, mas… ‘Buscar o vocábulo certo para o contexto é trabalho árduo. Consultar dicionários, textos especializados’, como um certo Manual de redação e estilo, ‘deve fazer parte da rotina do repórter’. Sim, mas … ‘Para atingir o objetivo, o repórter percorre três trilhas. A primeira passa pelo vocabulário. A segunda, pela frase. A última, pelo texto’. Maior clareza, do éter, impossível. Adiante, não percamos a esperança, porque já entramos.
As três trilhas (e alguns acidentes)
Na trilha das palavras, o melhor começo é o das simples e curtas, amigos.
‘Entre dois vocábulos, fique com o mais curto. Entre dois curtos, o mais simples. Fuja dos antipáticos e pretensiosos.’
Já se vê, os vocábulos surgem como entes autônomos, independentes, eles não vêm por necessidade interna do texto. São pessoas, pior, monstros ou santos. Ao antigo derramamento oco, retórico, opõe-se uma estatística gerada por vocabulário norte-americano. Adiante.
‘Substantivos e verbos são a roupa e o sapato da frase. As demais classes gramaticais, os acessórios. Escreva com a convicção de que no idioma só existem nomes e verbos….’.
Acreditamos haver uma lei que proíbe qualquer comentário a um trecho assim. Mas a quem escreve não é dado o direito do silêncio. Por isto, anos de observação e canseiras, reflitam por favor: todo o homem, todo homem pensa em verbo, ainda que disto não se dê conta. Até mesmo a interjeição, até mesmo os mais primitivos e elementares substantivos são momentos de síntese do universo que não teve tempo ou momento de expansão. É próprio, no entanto, do escrever, do expor o pensamento, a decomposição, para do seu conjunto compor. Então vêm os acessórios, fundamentais, para cimentar e erguer castelos e moinhos de papel.
Mas esqueçamos tal acidente, e passemos ao largo das recomendações sobre uso de ‘Adjetivos’, ‘Advérbios’, ‘Estrangeirismos’, ‘Politicamente correto’, e paremos um pouquinho só no parágrafo da ‘Voz ativa’.
‘Dizem que o brasileiro dá uma boiada para não assumir um compromisso. A voz passiva lhe presta uma senhora ajuda. O agente fica lá atrás ou nem aparece. Resultado: a declaração fica frouxa, flácida e desbotada. Melhor partir pra ativa. Ela é mais direta, vigorosa e concisa que a passiva’.
Olhem, mais não cito porque não tenho scanner, esse estrangeirismo. Pero espanholismos e conjunções antigas me socorram: a superioridade da voz ativa sobre a passiva é uma burrice repetida há gerações em periódicos daqui e do exterior.
Imaginem algo como ‘O rio passa a cidade como um cachorro passa por uma rua’. Banal, não? Agora mudem: ‘A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro’. A superioridade, que há, reside agora na voz passiva. Temos um pensamento luminoso de poesia na primeira expressão. E o motivo não reside somente de que estamos falando de um poema, que na prosa, que na comunicação, nos jornais, seria diferente. A razão é outra.
Acompanhem, por favor: quando dizemos, ou queremos dizer algo, selecionamos o que merece ênfase, o que deve avultar diante dos ouvidos e do espírito de quem nos lê e ouve. Quando alguém escreve, ou diz, ‘aquela mulher foi amada por mim’, ele quer apontar, dar ênfase àquela mulher, sim, a que causa admiração, aquela mesma, que recebeu o seu amor. Seria diferente, aos ouvidos e alma do ouvinte, se ele dissesse, ‘eu amei aquela mulher’. Neste caso, o idiota, em voz ativa, chamaria a atenção para a própria pessoa, e não traria ao espírito o mesmo grau de paixão que houve naquele tempo, e que, talvez, resista ainda hoje. Pior, poderia até deixar a impressão de que amou aquela senhora sem que disso ela soubesse.
É claro que em muitos casos a voz ativa é melhor, e mais adequada, e mais eloqüente que uma construção passiva. Ninguém dirá, por exemplo, ‘o senhor será morto por mim’, num momento de fúria, de explosão de raiva. Diz-se, ‘vou matá-lo’, ou melhor, ou pior, nada se diz, faz-se. Mas imaginem um indivíduo vingativo, daqueles que alimentam a própria vingança com leite e doces, que nessa vingança se compraz, como o delinqüente cassado nesses dias. Ele dirá, com mais eloqüência e sabor aos ouvidos de quem odeia: ‘O senhor será morto por mim’, a sorrir, para os distantes do cochicho.
O que não se pode, e aí e aqui e lá repete-se a burrice universal, é tornar absoluto um modo e nuança de expressão. Se as pessoas, se os redatores escrevessem com o apertar de um botão, como se máquinas fossem, well and y bueno, os verbos somente seriam escritos na voz ativa, porque mais estúpido e mais simples.
Bush é morto no Egito
As exigências para o estilo, não somente neste, mas em todo e qualquer manual normativo, terminam por ser um puro ato de vontade. Os manuais de redação orientam, desorientam, recomendam, determinam que o estilo deve ter clareza, clareza e clareza, mas, claro, jamais conseguirão o impossível, abrir a porta que nos leve a esse reino de luz. Como não conseguem tamanha impossibilidade, tacam regras, salgam, pagam regras e fórmulas. Como aqui, em Dad Squarisi:
‘O termo mais curto (com menor número de sílabas) deve preceder o mais longo’.
Suspiraram em dó menor? Ou melhor: em dó menor suspiraram? Há mais, amantes da frase:
‘Outro aliado da harmonia é o truque do três. Ninguém sabe por quê. Mas trios bajulam os ouvidos. Pai, Filho e Espírito Santo formam a Santíssima Trindade. Liberdade, igualdade e fraternidade são os lemas da Revolução Francesa…’
E como ela nada diz dos Dez Mandamentos de Jeová, de Ordem e Progresso, de Pão e Circo, ou de Vou e Volto, acrescenta três exemplos, dos quais cito a desarmonia de um:
‘Vamos trabalhar com afinco, vontade e competência’.
Imagine o leitor o pobre do repórter na hora augusta e angustiosa do texto, na urgência miserável da hora, enquanto soam as trombetas da madrugada na redação. Como escrever, por onde ir na selva escura do três? E uma férula, e uma fera, e um chicote da editora a brandir, clareza, clareza e clareza. Voz ativa, senhores, frase curta, meninos, forma positiva, senhoras, verbos de dizer não são verbos de sentir, senhoritas. Se alcançarem e já viram semelhante quadro, então compreendem o resultado que lêem todos os dias nos jornais. E perdoam e perdoarão o mártir, o repórter.
Ah, por fim, a razão do intertítulo Bush é morto no Egito: é só vontade, é puro desejo de quem jamais escreverá um manual de redação e estilo.
******
Jornalista e escritor