Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Para onde vai o jornalismo

Perplexidade é palavra que pode inicialmente fazer lembrar o famoso Guia dos Perplexos, de Moshe Ben Maimon ou Maimônides, o mais importante pensador do judaísmo na Idade Média. Complexo, denso e em muitos aspectos atual por sua inquirição sobre integridade e ética, o tratado de Maimônides sempre foi lido pelos eruditos como uma busca de conciliação entre razão e fé, mas por todos os estudiosos como um guia para o aprimoramento humano. Perplexidade não é o estado do descaminho, mas a condição de possibilidade para que, da interpretação adequada, surja a iluminação.


Acho que é bem este o sentido que se deve à palavra em Diálogos da Perplexidade, de Venício Lima e Bernardo Kucinski. Lima é professor universitário, pesquisador e ensaísta antenado com o que o discurso crítico da mídia tem de melhor. Kucinski, além de professor, tem longa experiência em redações de jornais, sempre acompanhada de veia crítica da melhor cepa, como bem demonstram seus textos, pronunciamentos e ações. Neste livro, dialogam sobre o objeto que os deixa ‘perplexos’, mais propriamente no sentido do talmudista que inspiraria S. Tomás de Aquino, assim como Spinoza e Leibniz.


Tal objeto é o destino do jornalismo em todas as suas modulações contemporâneas, sob o influxo das novas tecnologias da informação. Kucinski é taxativo: ‘Acho que a questão central, hoje, do jornalismo, são os desdobramentos dessa revolução tecnológica da internet e todas as ferramentas associadas. O que isso muda? Quer dizer, está mudando tudo, e ainda vai mudar mais, mas até que ponto já se pode fazer algumas previsões sobre o jornalismo?’.


A questão pode ser resumida, com o adicional de uma pequena suspeita (típica, aliás, da perplexidade talmúdica): Para onde vai o jornalismo, se for?


Claro sintoma


Apesar da diversidade dos temas e das inflexões pessoais, fica evidente nos diálogos que Lima e Kucinski encontram uma unidade de pensamento na constatação de que, posta num novo tempo tecnológico (o das máquinas de transmissão e estocagem eletrônicas, que condensam a temporalidade no presente), a informação pública tradicionalmente capitaneada pelo jornalismo tende a ser pontuada por sua própria operatividade técnica, ou seja, pela velocidade de transmissão, assim como pelas características de instantaneidade, espaço ilimitado e baixo custo da rede cibernética. Pessoalmente, temos repetido que, desde a velha técnica política de funcionamento da linguagem (a retórica de que se vale o jornalismo desde o começo), chegou-se a uma tecnologia de representação do mundo aparentemente mais comprometida com os valores de seu próprio funcionamento técnico (velocidade e mercado) do que com os valores da velha Polis humanista. A interação em si mesma é o valor.


Isso não é nenhuma abstração teórica. Basta escutar alguns dos analistas do jornalismo em rede eletrônica para ficar sabendo que os ‘valores’ da rede eletrônica têm mais a ver com rotinas de trabalho do que com o clássico sentido de orientações de natureza ética. Nada a ver aí com as preocupações de Maimônides no sentido de aperfeiçoamento da comunidade humana. Não se trata do simples uso de novas tecnologias, e sim de uma outra forma de pensar, que implica tanto a diversidade dos formatos industriais voltados para a maior interatividade com o público quanto uma certa despreocupação com o ideário liberal que propulsionou a imprensa do século 19 para cá. O ‘serviço’ e o entretenimento parecem deixar em segundo plano a dimensão contraditória (a política) na constituição da cidadania.


Parte daí a conhecida hipótese de que essa nova face da informação pública ponha em crise a própria identidade do jornalismo clássico como mediação discursiva e como funcionalidade específica de um grupo profissional, voltado para produção de notícias em função de uma temporalidade tradicional. Disto um claro sintoma é a questão levantada por Pierre Lévy, arauto da cibercultura: ‘Seria ainda necessário, para se manter atualizado, recorrer a esses especialistas da redução ao menor denominador comum que são os jornalistas clássicos?’.


Temas candentes


Lima e Kucinski não falam, porém, como profetas do apocalipse. Com o pressuposto implícito de que, em termos de informação pública, será sempre necessário formar uma comunidade discursiva – alimentada pelos interesses, ainda que flutuantes ou instáveis, dos leitores –, ambos deixam claro que uma outra forma de pensar e novos tipos de público são diretivas em potencial para a constituição de um jornalismo ‘de qualidade’, analítico, capaz de agendar os temas vitais para a cidadania e alternativo à informação imediata freqüente na televisão e, principalmente, na internet.


Lima mostra-se, assim, francamente esperançoso quando à internet, apontando para o seu enorme potencial no tocante a novas configurações da vida social: ‘De 2003 para cá, um fato que acho muito importante é a realização de conferências nacionais em diversas áreas de políticas públicas – saúde, meio ambiente, mulher, juventude, educação etc. –, que implicam uma mobilização de setores da sociedade civil que começa em nível local, no município, em nível regional, estadual, até chegar ao nível nacional. A grande mídia ignora esse processo, não se interessa por ele, acha que não é importante. Trabalhadores se reúnem num ginásio em Brasília, aos milhares, do país inteiro, durante toda uma semana, e a mídia não fala nada. Como se não tivesse existido’.


Diálogos da Perplexidade, como se vê, é publicação útil e oportuna. Geralmente os temas candentes do jornalismo e da rede eletrônica são abordados com linguagem arrevesada, futurística, não raro desnorteada, extraviada como uma nave em Guerra das Estrelas. Que fazem Lima e Kucinski? Não voam, nem se perdem.

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Jornalista, escritor e professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro