Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Partido de um só homem

Com o perdão de um sábio do Rio de Janeiro, nem toda a unanimidade é burra. É difícil encontrar alguém decepcionado com a canonização de Henry Louis Mencken (1880-1956) pela Library of America. A coleção, destinada a imortalizar as letras americanas e garantir que obras fora de catálogo se mantenham em circulação, acaba de dar de presente à legião de admiradores do irascível Mencken uma bela caixa com dois tijolos que contêm os seis volumes da série ‘Prejudices’ (Preconceitos). Os artigos e ensaios, escritos entre 1919 e 1927, reúnem a prosa hilariante e indignada do mais influente jornalista americano do século 20.

Caros leitores de menos de 25 anos: ‘influente jornalista’ hoje pode soar como um oxímoro mas, acreditem, no tempo de Mencken, a pena era mais poderosa do que a espada digital de uma ex-governadora do Alasca. E por falar em personagens que Mencken teria destroçado com seu grande texto e coragem pessoal, na semana que passou, quando os americanos, mais uma vez, enfrentam o luto provocado por um massacre, sua cruzada incansável contra o obscurantismo é um contraponto bem-vindo. A seguir, numa entrevista exclusiva ao Estado, Marion Elizabeth Rodgers, responsável pela nova edição de ‘Prejudices’, autora de Mencken: The American Iconoclast, explica por que precisamos de doses regulares do Sábio de Baltimore.

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Por que ‘Prejudices’ é um bom começo para a estreia de Mencken na Library of America?

Marion Elizabeth Rodgers – ‘Prejudices’ foi uma das mais celebradas séries da obra dele. Foi com ela que ele se estabeleceu como uma das mais poderosas vozes no meio literário e social dos EUA, nos anos 20. Desde 1933, os seis volumes nunca foram lançados de uma só vez. O leitor contemporâneo ouve falar de Mencken, mas pode não compreender por que ele é tão citado. Além da beleza da caixa, nós editamos uma seção de ‘Cronologia’ e outra de ‘Anotações’ que ajudam a explicar as referências.

Qual seria uma boa iniciação a ‘Prejudices’?

M.E.R. – O espectro de tópicos que ele cobre já justifica a leitura. Para seu estilo de prosa, recomendo os perfis de Theodore Roosevelt, Abraham Lincoln e Rodolfo Valentino. Para um olhar pessoal, vale a leitura do ensaio sentimental sobre sua casa, Vivendo em Baltimore. Mencken é bastante lembrado pelo que escreveu durante o caso Scopes, em 1925 (um professor de escola secundária foi condenado por ensinar a Teoria da Evolução no Tennessee, mas o veredito foi derrubado). Em The Hills of Zion, ele descreve como os membros de um grupo religioso entram em transe e a cena me lembra o que você poderia ver num terreiro de macumba no Brasil. Para um gosto de sua crítica à cultura americana, há os ensaios sobre Hollywood e o famoso Sobre Ser Americano. Na crítica literária, recomendo As Letras Nacionais e O Saara de Bozart, em que ele estimula escritores negros e sulistas a escrever sobre si mesmos. Foi uma inspiração para a renascença literária do Harlem e do Sul americano.

Hoje há polarização na mídia e os argumentos tendem a ser neutralizados pelo excesso de postura ideológica. Há esta procura por um jornalismo que apenas confirme nossa visão do mundo. Mencken poderia ter sido tão influente neste contexto?

M.E.R. – Mencken não cabe em campo nenhum. Os conservadores o reivindicavam como um deles, especialmente porque ele apoiava a pena de morte, era crítico de impostos, da intrusão do governo e do sistema de previdência social. Ao mesmo tempo, o próprio Mencken se considerava um ‘democrata por toda a vida’. Ele defendia a liberdade de expressão, os direitos civis, dos imigrantes e das minorias, até dos socialistas. Também combateu o poder de corporações. Ele lutou por causas queridas para campos diferentes. Mas ele não queria a prisão do rótulo e dizia: ‘Eu não pertenço a partido algum. Sou meu próprio partido’. Sempre me perguntam se ele teria lugar na mídia atual. Será que teria seu programa no rádio ou na TV? O que faria com a internet? Mas essas comparações não nos levam longe. Sua astúcia não apenas fazia o leitor rir, fazia pensar e desafiar o senso comum. A iconoclastia de Mencken é necessária. Ele sabia que a opinião poderia ser manipulada. Ele acreditava que poucos americanos diziam o que pensavam. A tentativa de procurar escrever sobre o que é seguro e ser bem recebido: ele combatia isso como mau jornalismo.

Quais são, a seu ver, os ensaios desta coleção que falam mais ao nosso tempo?

M.E.R. – Eu acho que boa parte do que ele escreveu resiste à passagem do tempo. Seus conselhos em The Fringes of Love Letters, especialmente quando trata de estilo e crítica, deveriam ser lidos por todos os autores aspirantes. Se hoje os jornalistas estão em crise existencial, não era diferente no tempo de Mencken. Leiam Jornalismo na América. A cada nova eleição americana eu me lembro de Sobre Ser Americano, em que ele diz: ‘O principal negócio da nação é fabricar heróis, principalmente falsos’. E, para sua visão sobre psicologia, há Sobre Controvérsia: ‘Que eu saiba, nenhuma controvérsia jamais terminou no território onde começou’.

Sua visão do escritor mudou de alguma forma desde que, após escrever sua biografia, começou a editar sua obra?

M.E.R. – Sempre há quem diga que Mencken nunca será tão amado como Mark Twain – e acredito que seja verdade. Concordo com Charles Fecher, editor dos diários de Mencken, para quem ‘nenhum outro, antes ou depois, teve algo como o enorme poder e a influência de Mencken. Ele praticamente mudou o curso da literatura americana, trouxe um período literário à sua conclusão, inaugurou outro e, no processo, ajudou importantes figuras a se tornarem proeminentes. F. Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis são dois autores que tiveram em Mencken um defensor. Ele foi um dos primeiros críticos americanos a chamar atenção para Twain, Bernard Shaw, Ibsen e a reconhecer o talento de James Joyce. E não podemos esquecer que as revistas que ele editava – The Smart Set e The American Mercury – introduziram a escrita de negros e imigrantes no país. Em suas colunas, Mencken lutava por causas impopulares, como o fim da segregação. Nas revistas, ele transformou o jornalismo americano ao examinar raça, linguagem, narrativa folclórica, medicina e música. Acho que parte do prestígio desfrutado por ele no exterior se deve ao fato de que, além de sua sabedoria e bom senso, sua visão de mundo era internacional. Ainda que fosse um verdadeiro americano de seu tempo, ele olhava para o país ‘de fora’.

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Jornalista