Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

PC Farias, a reportagem que não houve

Praia de Guaxuma, Maceió, madrugada de 23 de junho de 1996. Num quarto de sua casa, PC Farias acaba de ser morto com um tiro. A autora do disparo: Suzana Marcolino, sua namorada, que se matou em seguida. O motivo: PC estaria prestes a abandoná-la. Tão simples assim? O ex-tesoureiro de Fernando Collor e um dos homens mais poderosos da chamada ‘República de Alagoas’ foi vítima de um crime passional?

Sim, e o caso não teria enveredado por um extenso roteiro de intrigas se não fosse o sensacionalismo da imprensa, que desde o primeiro momento construiu as versões de queima de arquivo, crime político ou vingança. Do senso comum aos colunistas de plantão, todos pareciam apostar as fichas num enredo mais ‘novelístico’. As mais fantasiosas hipóteses foram levantadas com o objetivo de prolongar o mistério.

Na contracorrente dessa cobertura rumorosa estava o repórter Joaquim de Carvalho, na época investigando o caso para a revista Veja. Ele não teve dúvidas de que se tratava de um assassinato seguido de suicídio. ‘Suzana tinha o motivo, o instrumento e a oportunidade’, diz.

Oito anos depois do crime de Guaxuma, Joaquim decidiu reunir o que viu e apurou no livro Basta! – Sensacionalismo e farsa na cobertura do assassinato de PC Farias, uma crítica a um mau momento da nossa mídia. ‘A cobertura da morte de PC e das investigações que se seguiram tem ingredientes da disputa insana por audiência e público’, escreve Joaquim na apresentação. Por que todo esse tempo para contar o que sabia? Ele tinha receio de ser acusado de favorecer a uma ou a outra parte, caso tivesse optado pela publicação no calor dos acontecimentos. O livro expõe ainda os bastidores da batalha dos laudos que tentaram explicar o caso – o leitor conhecerá o calvário do legista Badan Palhares, linchado em razão da perícia que comprovou a natureza passional do crime, conclusão afinal aceita pelo Supremo Tribunal Federal em 2002, dando ponto final à polêmica.

A cobertura da morte de PC mostrou uma atuação ‘pobre do nosso jornalismo’, acredita Joaquim de Carvalho, que começou no jornalismo aos 18 anos, ainda estudante do primeiro ano da Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo. Trabalhou sete anos na Veja. Em seguida atuou como repórter na TV Bandeirantes, na TV Globo e no SBT. Conquistou dois prêmios de jornalismo – o Esso de 1992, em equipe, com uma série de reportagens sobre a corrupção no governo Collor, e o Prêmio de Jornalismo Social, da revista Imprensa, em 1996, sobre trabalho infantil no Brasil. Atualmente é professor do curso de Comunicação Social da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) e repórter da TV Record.

A morte de PC Farias, no entanto, não foi um caso isolado de manipulação da informação, e não será o último, haja vista os vícios estruturais a que está submetida a imprensa no Brasil. ‘Temos colunistas demais e reportagens de menos’, diz Joaquim, nesta entrevista por e-mail. Segundo ele, o comando das redações está nas mãos de jornalistas que chegaram a essa posição pela ‘via administrativa’. A conseqüência: ‘As redações, lamentavelmente, são dirigidas pelos coveiros da profissão.’

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Por que somente após oito anos você decidiu mostrar o que apurou sobre o caso PC?

Joaquim de Carvalho – Esperei que a mais alta Corte de Justiça do país se pronunciasse, no caso o Supremo Tribunal Federal, que em dezembro de 2002, por decisão da Procuradoria-Geral da República, arquivou as denúncias que chegaram lá. Tinha certeza de que esse seria o desfecho, porque as denúncias de queima de arquivo não tinham fundamento e só se sustentavam pelo sensacionalismo. Se publicasse antes, poderiam dizer que eu estaria querendo favorecer A ou B. E meu objetivo não é defender ninguém, nem acusar. É apenas expor fatos, que na minha opinião revelam a pobreza do jornalismo brasileiro naquele episódio.

Desde o início você acreditou na tese de crime passional. O que lhe dava essa certeza?

J. C. – Para elucidar um assassinato é preciso analisar três variáveis. É preciso um motivo para matar, é preciso o instrumento e é preciso a oportunidade. Suzana tinha motivo (efetivamente ela estava sendo abandonada por PC), o instrumento (ela comprou a arma nove dias antes do crime e treinou tiro ao alvo) e teve oportunidade (PC, bêbado, dormia). Além disso, na cena do crime, o quarto, havia duas pessoas, um revólver, com dois projéteis deflagrados, que foram parar nos corpos ali presentes, uma bala em cada um. Um recado deixado por Suzana Marcolino na caixa postal de um dentista, com expressões como ‘te encontro no outro mundo’, ‘na eternidade’, seria o equivalente a um bilhete suicida. Observe-se também que, para o crime ser consumado ali, era preciso contar com a cumplicidade de pelo menos nove pessoas, incluindo duas crianças. A conspiração não resiste a tanta gente envolvida. Há outras evidências de crime passional. Queima de arquivo, morte por encomenda tem outras características, como pudemos ver em exemplos recentes. A freira Dorothy Stang recebeu vários tiros, inclusive na cabeça. PC foi morto com um tiro dado na região das axilas. O tiro teve uma trajetória anômala. Não foi coisa de profissional. Tudo isso recomendava cautela ao jornalista.

Em que momento a cobertura enveredou para o sensacionalismo?

J. C. – Desde o primeiro momento e é fácil entender por quê: PC era o arqui-vilão da República, tinha aparência de chefe mafioso. Era difícil acreditar que seria morto por uma mulher rejeitada. Eu mesmo pensei assim, mas quando o jornalista cobre um fato ele deve se despir de preconceitos, ou seja, de versões pré-concebidas. Quando cheguei lá, procurei fazer isso. Foi difícil. O ambiente contamina, e é por isso que eu procurei ficar num hotel afastado, longe da imprensa. É preciso também fugir da tentação de buscar histórias que atendam à suposta expectativa da opinião pública. É assim que começam os linchamentos na imprensa.

O prolongamento do suspense em torno do assassinato se deveu unicamente ao sensacionalismo da imprensa?

J. C. – Deveu-se ao sensacionalismo da imprensa e ao oportunismo de algumas autoridades. Pessoas que deveriam trabalhar com isenção alimentavam o noticiário com meias verdades (que, afinal, são meias mentiras, se é que isso é possível). Uma delas elegeu-se vereador, depois de tentar cargo eletivo várias vezes.

Por sua postura diante do caso, atribuíram a você o ganho de propinas. Você também sofreu ameaças?

J. C. – Ameaças, não. Apenas o dissabor da injúria.

No seu livro você faz uma defesa do legista Badan Palhares. Ele se mantém como a única voz abalizada no caso?

J. C. – Procurei não defender ninguém. Apenas expus fatos e os fatos dão razão a Badan. Evidentemente, e deixo isso claro no livro, Badan não trabalhou sozinho. O laudo, que é conhecido pelo nome dele, leva a assinatura de 11 pessoas, muitas renomadas no meio jurídico e de instituições respeitáveis: o Instituto de Criminalística de São Paulo, o IML de Campinas, a Unicamp, o Instituto de Criminalística de Alagoas e o IML de Alagoas. Também digo que a necropsia em Suzana e PC contou com a participação de um representante da Sociedade Brasileira de Medicina Legal. Nenhuma dessas pessoas recuou. É importante notar também que muitas delas levavam uma vida financeiramente apertada antes do laudo e anos depois continuavam na mesma dificuldade. Não ostentaram sinais de riqueza, como se poderia esperar no caso de um laudo vendido.

Por outro lado, a sua apuração questiona a competência de legistas como Nélson Massini e George Sanguinetti. Você não temeu represálias?

J. C. – Nélson Massini não participou diretamente de nenhum laudo, embora desse dicas a Sanguinetti, segundo este me contou. O Massini é citado por se revelar um oportunista das perícias. Pouco antes de Badan Palhares divulgar o laudo dele, a Folha publicou entrevista com a conclusão de Massini sobre o caso e ele disse que considerava alta a probabilidade de Suzana Marcolino ter matado PC e se suicidado em seguida. Ele disse, está no arquivo na Folha. Depois, quando ele viu Badan cair em desgraça, deu entrevista para dizer que Badan era desonesto e que Suzana jamais poderia ter cometido aquele crime. Quanto a George Sanguinetti, basta analisar o currículo profissional dele para não lhe dar crédito: ao longo de sua ‘carreira’ no Instituto Médico Legal de Alagoas, Sanguinetti tinha feito apenas dois exames de corpo de delito. Não tinha registro de perito e sua especialidade era a psiquiatria.

A sua reportagem põe sob crivo nomes consagrados da imprensa brasileira, como Jânio de Freitas e Eliane Cantanhêde, que embarcaram na tese de queima de arquivo, sem sequer terem participado da apuração. Você acredita que esse é um vício comum ao nosso colunismo?

J. C. – Temos colunistas demais e reportagens de menos. Ou, como dizia um jornalista experiente, a imprensa hoje é como Roma: colunas e ruínas.Veja-se um exemplo recente: onde estavam os jornalistas que não levaram a sério a eleição de Severino Cavalcanti? Se houvesse mais jornalistas em campo ouvindo deputados, a eleição não seria uma surpresa: a reportagem teria notado a movimentação na Câmara. Já o colunista costuma trabalhar mais com o telefone, conversando com as fontes de sempre. Quando algo novo surge no horizonte, a imprensa fica perdida. Quando a notícia foge ao senso comum, caso da morte de PC, a imprensa se perde.

Um jornalista da Folha, criticado no livro, cometeu segundo você um erro por aceitar integralmente uma informação da Polícia Federal. Como você analisa o dano causado por esse fontismo atribuído não somente à PF, mas também ao Ministério Público, comum no jornalismo atual?

J. C. – A Polícia Federal e o Ministério Público viraram a muleta do repórter incompetente. Quando ele tem uma hipótese, ou a hipótese é do editor que ele quer agradar ou teme contrariar, e o repórter não consegue sustentá-la, atribui informações a fontes dessas duas instituições. Mais tarde, descobre-se que era uma barriga, mas ninguém corrige a informação, muito menos aponta quem induziu ao erro. Aposta-se na falta de memória do público. Mas o leitor não esquece. É esse comportamento que corrói a credibilidade da imprensa. Não é à toa que estamos em crise.

Em sua opinião, existe algum limite para a investigação jornalística?

J. C. – Só não é válido distorcer fatos, mentir, inventar situações. O limite é o da ética, não da ética do jornalista. Da ética da sociedade. Mas é preciso investigar mais e não ter medo de divulgar o que se apurou. Aliás, a imprensa anda pobre em investigação de verdade.

Você acredita que a criação de conselhos é o melhor caminho para tornar o jornalismo mais ético?

J. C. – De jeito nenhum. O conselho seria uma ameaça à liberdade de imprensa. A saída é não ter medo do debate, de discutir nosso trabalho. Nos Estados Unidos, os jornalistas têm especialistas na cobertura da imprensa. Ninguém considera a crítica um ataque pessoal. É preciso apontar os erros e ter a coragem de corrigi-los, se necessário afastando maus profissionais. Mas quem deve afastá-los não é nenhum conselho. Seriam as redações comprometidas em oferecer ao público produtos jornalísticos de qualidade.

Em sua opinião, os fatores que permitiram o surgimento da ‘República de Alagoas’ foram enterrados com PC Farias, ou ainda estariam aí?

J. C. – Acho que uma apuração rigorosa mostraria que os atributos da tal ‘República de Alagoas’ se encontram vivos. Mas não apenas em Alagoas. Veja-se o caso da CPI do Banestado. Nomes que apareceram em transações suspeitas envolvem pessoas ligadas a todos os partidos políticos, de estados diferentes, principalmente de São Paulo, meu querido estado.

Segundo o seu livro, o caso PC Farias revelou uma cobertura falaciosa e até irresponsável da imprensa. Passados nove anos, ela está mais conseqüente, ou continua a mesma?

J. C. – Continua a mesma. O problema é estrutural. Com raras exceções, e eu conheço essas exceções, quem dirige as redações hoje não são os melhores jornalistas. São profissionais que fizeram a carreira por dentro, pela via administrativa. São eles que concordam com medidas que aumentam o lucro das empresas, em detrimento da qualidade do produto que oferecem. São os responsáveis pelo fechamento de postos de correspondentes no exterior, corte nas despesas de viagem e demissões em massa. As redações, lamentavelmente, são dirigidas pelos coveiros da profissão.

E como você vê a mudança na linha editorial da própria revista Veja, na qual você trabalhou?

J. C. – Veja continua uma instituição nacional. Quando publica uma denúncia, ela repercute. O problema é que ela não tem se dedicado a investigações de peso. Raramente é publicado um trabalho de fôlego. As reportagens de peso que ela costuma publicar são aquelas que se referem ao peso da balança. Nossa! Como aumentou o número de capas sobre obesidade!…

O livro traz ainda a cobertura que você fez dos casos Fernando Dutra Pinto, Suzana Von Richthofen e Proconsult. Qual dessas reportagens foi mais desafiante para você? Por quê?

J. C. – Todas as reportagens são desafiantes. Acho que me saí melhor no caso da Suzana Von Ritchthofen. Mas quem tem autoridade para avaliar meu desempenho é o público.

O que você espera da publicação do livro?

J. C. – Que motive o debate. Precisamos do confronto de idéias, de escolas de jornalismo, para salvarmos a profissão.

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Formando em Jornalismo pela Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)