‘Ler uma reportagem de Greg Palast é um pouco como meter-se numa montanha-russa informativa. Não há frase que não represente um ponto a mais num costurado de dados, um ritmo contínuo de metralhadora da primeira à última palavra. Quando chega ao ponto final, o leitor tem a impressão de que há algo de errado com os jornais que lê todo dia: o mundo parece muito mais simples neles – e alguns de seus líderes até parecem ter salvação. Guiado por Palast, não lhe resta quase nada. Esta é a má notícia. A boa é que ‘A melhor democracia que o dinheiro pode comprar’, seu livro, já está à venda nas livrarias brasileiras, editado pela Francis.
Veja-se uma das histórias. Desde que deixou a presidência dos EUA, George Bush, o pai, pôs-se a trabalhar na arrecadação de dinheiro para o Partido Republicano. Escreveu ao ministro do petróleo do Kuwait pedindo favores à petrolífera Chevron; em troca, a Chevron doou dinheiro ao partido. Escreveu a Carlos Menem pedindo favores em nome da Mirage Casino que pretendia instalar-se na Argentina; lá veio dinheiro da Mirage para o partido. Tantos os favores, tanto o dinheiro para o partido, George Bush, o filho, terminou candidato a presidente.
Não termina. Uma das financiadoras de campanha foi a Barrick Gold Strike, empresa mineradora canadense. Uma obscura mudança na Lei de Mineração dos EUA – datava de 1872 a versão em vigor – ainda no primeiro governo Bush já havia posto nas mãos deles a maior mina de ouro norte-americana; aposentado, o ex-presidente foi ser conselheiro da empresa. Acontece que o dono desta empresa é um desconhecido chamado Peter Munk; mas ele não a ergueu sozinho. Seu sócio inicial chamava-se Adnan Khashoggi, comerciante de armas saudita – o homem da mala no antigo caso Irã-Contras. Quando estourou o escândalo da troca de armas por reféns no Irã, Khashoggi deixou sua participação na empresa.
Assim funciona Greg Palast: de uma informação, sai costurando. Num repente, a mudança de uma lei norte-americana do século 19 liga numa teia um ex-presidente norte-americano, o financiamento da campanha (vitoriosa) de seu filho e o tráfico de armas internacional. Continuasse – no livro, ele continua – as relações entre os Bush e as famílias endinheiradas sauditas aprofundavam-se. Aliás, aprofundam-se mesmo: até a proibição, por George W. Bush, de que se investigasse os investimentos da família bin Laden no terror. (Depois do 11 de Setembro, mudou.)
E não que os Bush sejam os grandes vilões da história. Esta política de não mexer demais com os sauditas, mesmo quando o assunto é financiamento do terror, o governo Clinton fez parecida. A diferença, as palavras são de Palast, é que ‘no que Clinton dizia ‘vá devagar’, Bush simplesmente ordenou ‘não vá’.
Nascido nos EUA, Greg Palast trabalha para a imprensa britânica: para o canal de TV da BBC e para o ‘Observer’ – jornal dominical parceiro do diário Guardian. É uma espécie de Michael Moore do bem – tem os mesmos tiques de ironia mas não faz tese; apega-se a fatos e apresenta documentos aos montes.
Por conta da ironia em excesso, Palast é bom lido em doses pequenas. (Tentar ler seus artigos semanais sempre enche um quê a paciência.) Ainda assim, em tempos de noticiário baseado nas declarações de autoridades e pouco mais, seu trabalho é um alento, abre janelas. Afinal, não importa de onde pince as informações iniciais – dos EUA, do Reino Unido ou da Coréia – o cruzamento de relações navega por todo o mundo. São incrivelmente globalizadas a política e a economia e quem lê os jornais todo dia mal percebe.
No livro, ele parte de como foi construído o desastre na Flórida que cassou votos para garantir a eleição de George W. Bush, passa pelo esquema global de transferência de bens do terceiro mundo para o sistema financeiro internacional – pode chamar de Consenso de Washington – e termina com o lamento de que em sua terra natal não gostam do que escreve. De brinde, a edição brasileira traz uma introdução que conta como os EUA financiaram o real para garantir a reeleição de FHC. Afinal, ele começa de qualquer canto perdido do planeta literalmente.’
A PAIXÃO DE CRISTO
Fritz Utzeri
‘A fé cega e a faca amolada, segundo ‘São’ Mel Gibson’, copyright Jornal do Brasil, 4/04/04
‘Escreve o leitor Christian Salles longa carta (publicada no Caderno B de quinta-feira) para listar uma extensa série de massacres cometidos por protestantes contra católicos, em resposta a trecho de meu artigo em que relato o massacre dos cátaros e as cruzadas. O mais notório desses massacres foi a invasão de Roma em 1527. Diz o leitor: ‘A partir de 6 de maio de 1527 começa o saque de Roma pelas tropas de Carlos V, comandadas pelo duque de Bourbon. Cerca de 40 mil homens espalharam o terror, a violência e a morte. A horda dos invasores protestantes penetrou no Hospital do Espírito Santo e degolou os enfermos.’
Terrível relato. Mas cabe lembrar que o espanhol Carlos V, que ordenou o ataque e o saque de Roma, era católico apostólico e romano e extremamente fervoroso. Os protestantes holandeses e alemães (a Holanda e parte da Alemanha estavam sob domínio espanhol) serviam a um soberano católico, que entrou em conflito com o papa Clemente VII, que só escapou porque buscou refúgio no castelo Sant’Angelo. Três anos depois, o mesmo papa coroava Carlos V imperador, os estados papais eram reconhecidos pelo monarca e tudo voltou à santa paz. Quem morreu, morreu em vão.
Voltando à Paixão (religião é algo que inflama e, como previu um leitor, o e-mail transbordou de mensagens), agora os jornais relatam casos de criminosos que se arrependeram e confessaram crimes, após ver o filme. Outros passaram mal, outros ainda parecem ter enlouquecido, como um leitor que me escreveu longa e confusa carta na qual se diz ‘tocado pela graça’, após ter visto A Paixão. Ainda não vimos paralíticos andando, cegos enxergando, ou mortos ressuscitando, mas se a coisa continua nesse tom, Mel Gibson acabará candidato à glória dos altares. Finalmente Hollywood chegou lá! São Mel Gibson, o santo de US$ 200 milhões por fim de semana. Desde que criou o homem, Deus parece ter se arrependido de sua criatura. Várias vezes voltou sua onipotência contra ela, como no dilúvio. O Criador parece ter horror à fragilidade do homem, estigmatizando-o com um ‘pecado original’. Pediu a Abraão que matasse o próprio filho para que demonstrasse gostar mais Dele que do filho. O pai então se dispõe a imolar Isaac. Se fosse crente, e Deus me pedisse tal coisa, lhe ofereceria mil vezes a minha própria vida. Mas jamais ousaria levantar a mão assassina contra um filho (meu ou de outrem), não importa quem pedisse.
Essa contínua vontade de desafiar o homem parece uma carência que pede agrados a todo o momento e que não tem cara de amor, mas de egoísmo e insegurança. O ato de mandar seu filho (Cristo) pagar por nosso pretenso pecado, herdado de Adão e Eva, é da mesma estirpe do sacrifício de Abraão, em nome de uma ‘salvação’ que só atinge um sexto da humanidade (a crer na posição da Igreja, reafirmada recentemente em documento do cardeal Ratzinger, Dominus Jesus, que causou grande polêmica entre cristãos e não cristãos) e nos legou um mundo tão selvagem, injusto e dominado pelo mal como o de antes do terrível sacrifício do Cordeiro. É só ver as imagens dos jornais mostrando os restos carbonizados de dois americanos pendurados numa ponte no Iraque – com a multidão (incluindo crianças!) dançando e comemorando macabramente o massacre – para não conseguir entender o que (ou quem), exatamente, foi salvo.
Conheço gente boa que acredita em duendes, outros são animistas, kardecistas, crêem que a gente reencarna, outros são judeus e conheci raríssimos muçulmanos. Não me oponho a nada, a nenhuma dessas opções. Respeito qualquer religião e considero que, no geral, os efeitos das religiões foram positivos para a humanidade. Mas, ao mesmo tempo em que pregam o amor, a paz e a harmonia, as religiões – quando vividas de forma hipócrita, distorcida ou radical – podem ser maléficas. Tomemos como exemplo Jerusalém. É a cidade sagrada por excelência. Ali, Salomão edificou o templo; Cristo pregou, entrou em triunfo, foi traído, crucificado e ressuscitou dentre os mortos e o profeta Maomé subiu aos céus. As três grandes religiões monoteístas do Ocidente e Oriente Médio adoram o mesmo Deus: D’us (cujo nome não pode ser escrito, segundo os judeus, e que alguns chamam de Yavé); Deus Pai (com Cristo e o Espírito Santo) para os cristãos; e Alá (cuja face não pode ser desenhada) para os islamitas.
Em nome Dele, desse mesmo Deus único, gerações incontáveis de ‘fiéis’ têm se massacrado e continuam se matando até hoje. É um lugar que jamais conheceu a paz. Ousaria dizer que a chamada ‘terra santa’ é terra maldita, tamanha a quantidade de sangue que correu (e ainda corre) ali, tamanha a cegueira dos homens lutando, fraticidamente, pela mesma coisa, sem entendê-la, em nome de uma fé cega e de faca amolada. Prefiro a razão e o amor.’
ECOS DA GUERRA
O Estado de S. Paulo
‘Cena na TV de corpos de soldados arrastados forçou saída de tropas’, copyright O Estado de S. Paulo, 1/04/04
‘As TVs americanas exibiram ontem cenas editadas do ataque de moradores de Faluja, a oeste de Bagdá, aos corpos de quatro empreiteiros americanos mortos ontem numa emboscada no centro da cidade. As imagens não incluíram cenas dos cadáveres arrastados por uma multidão festiva pelas ruas.
Em 1993, imagens de um incidente semelhante na Somália mostradas na TV provocaram forte reação da opinião pública americana contra a manutenção das tropas no país. Os militares dos EUA tinham sido enviados à Somália em missão humanitária sob autorização da ONU, para conter os confrontos entre milícias que mergulhavam o país no caos.
Os rebeldes somalis emboscaram comandos do Exército e forças especiais dos EUA durante uma sangrenta batalha de rua na capital, Mogadiscio. Dezoito americanos foram mortos. Os corpos de alguns foram arrastados pelas ruas por uma multidão em júbilo.
Essas cenas exibidas na TV foram determinantes na decisão dos EUA de retirar os soldados da Somália. Uma força de paz da ONU substituiu as tropas americanas.
A filmagem de ontem da Associated Press Television mostra um iraquiano espancando um corpo com uma barra de metal. Outros atam uma corda em outro cadáver e depois a amarram em um carro, que sai pelas ruas, cercado de uma multidão em festa. Alguns dos cadáveres foram mutilados.
Um fotógrafo da mesma agência mostrou dois corpos calcinados pendurados em uma ponte. ‘O povo de Faluja pendurou alguns corpos na velha ponte, como ovelhas esquartejadas’, disse o morador Abdul Aziz Mohammed. Um outro iraquiano mostrou o que parecia ser um pedaço de corpo. ‘Viva os mujaheddin (combatentes islâmicos). Longa vida à resistência’, gritava um taxista. O morador, Salam Aldulayme, bradava: ‘Isto é o que esses espiões merecem.’
Perto dali, um menino que não aparentava mais de 10 anos dizia, com o pé sobre um corpo; ‘Onde está Bush? Que ele venha aqui e veja isto.’
Horas depois, a cidade estava calma. Não havia nenhum soldado americano ou policial iraquiano à vista. (AP, Reuters e The New York Times)’
O Globo
‘Imprensa destaca crueldade no Iraque’, copyright O Globo, 2/4/04
‘Praticamente todos os jornais dos EUA publicaram na capa de suas edições de ontem imagens do massacre de americanos, cujos corpos foram mutilados no Iraque.
Enquanto a grande imprensa relatou sobriamente as mortes em suas manchetes, e evitou mostrar os corpos, jornais populares destacaram o que chamaram de selvageria dos iraquianos com imagens dos cadáveres.
A manchete do ‘New York Times’ foi ‘Quatro americanos mortos em emboscada no Iraque: multidão arrasta os corpos’ e a do ‘Washington Post’, ‘Civis americanos mutilados no Iraque’. Já os tablóides foram mais duros. O ‘New York Post’ e o ‘Boston Herald’ deram a mesma manchete: ‘Selvagens’. O ‘Miami Herald’ saiu com o título ‘Americanos profanados’.
Alguns jornais europeus deram destaque ao massacre, principalmente em Alemanha e Reino Unido. Já as capas dos periódicos de países árabes ignoraram o assunto. No Iraque, nenhum jornal mencionou as mortes. Segundo os editores, as maiores preocupações dos jornais são com a segurança de iraquianos e o processo de formação de um governo eleito.
TVs árabes transmitiram ao vivo o episódio. Porém, como revelaram ontem os diretores das emissoras, assim que perceberam que havia corpos carbonizados, ordenaram que as imagens fossem desfocadas.’
Folha de S. Paulo
‘TVs dos EUA não mostram ‘cenas horríveis’’, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/04
‘O secretário de imprensa da Casa Branca pediu, e as principais redes de TV americanas atenderam. ‘Esperamos que todos ajam de maneira responsável’, disse Scott McClellan, referindo-se às imagens dos civis americanos assassinados, despedaçados e arrastados pelas ruas de Fallujah -destaque nos telejornais à noite.
Alegando ‘responsabilidade’, a CBS desfocou as imagens dos corpos, ‘protegendo’ o público de ‘cenas horríveis’. ‘Não são imagens para crianças’, disse o Dan Rather.
Horríveis e, aparentemente, incompreensíveis. Na ABC, um soldado americano comentava, direto do Iraque, o evento: ‘Não entendo. Estamos aqui para ajudar essas pessoas’.
Na CNN, o apresentador Wolf Blitzer disse que as cenas eram fortes demais, e não seriam mostradas.
Lá, como na conservadora Fox News, uma imagem semelhante, em que soldados americanos mortos eram arrastados por outros miseráveis do Terceiro Mundo -na Somália, em 1993-, foi mencionada.
O impacto da cena influenciou a opinião pública americana e levou ao desfecho apressado daquela outra missão, que tinha sido iniciada com o aval da ONU.’
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‘Atrocidade testa apoio público nos EUA e insufla insurgentes’, copyright Folha de S. Paulo / Independent, 1/04/04
‘No período prolongado e sangrento que se seguiu à Guerra do Iraque, pareceu que uma tendência estava começando a prevalecer. Embora a resistência violenta à ocupação americana e britânica continuasse, especialmente na região central do país, o número de mortos estrangeiros estava caindo. Cada vez mais, os iraquianos descarregavam seu ressentimento contra outros iraquianos. Havia razões para isso. A segurança melhor e a maior familiaridade com o território mantiveram as tropas estrangeiras mais longe do perigo.
Ao mesmo tempo, a transferência progressiva de tarefas de segurança para os iraquianos fez com que, cada vez mais, fossem eles que estivessem na linha de fogo.
Os ataques medonhos de ontem marcam uma virada nova e profundamente negativa que pode ter repercussões para muito além do Iraque e para longe no futuro.
Já estava claro, mesmo antes dessas atrocidades, que empresários e técnicos estrangeiros que atuam no Iraque estão muito expostos. Muitos são facilmente identificáveis por seus carros e sua aparência. Diferentemente das tropas estrangeiras, precisam se deslocar e não podem sempre viajar em comboios blindados. Sem eles, a reconstrução da infra-estrutura e dos serviços básicos no Iraque, urgentemente necessária, vai demorar ainda mais, intensificando a frustração da população comum. Enquanto estão no Iraque, porém, correm o risco de serem vistos como o lado mais frágil e vulnerável da ocupação, alvos estrangeiros fáceis.
Os ataques de ontem dificilmente vão encorajar empresas estrangeiras a fazer licitações para empreender obras no Iraque. Eles podem inaugurar uma retirada dessas empresas, exatamente no momento em que elas são mais necessárias, quando se prepara a devolução da soberania à administração iraquiana, no final de junho. Mas esse pode ser o menor dos efeitos. Os ataques mais recentes foram filmados, em todos os detalhes cruentos. Com maior ou menor grau de censura, foram exibidos em todo o mundo. Ainda é cedo para avaliar o impacto dessas imagens, mas prever que não ajudarão a promover qualquer espécie de normalização no Iraque certamente é subestimar o óbvio. Por chocantes que tenham sido os ataques, eles correm o risco de virar o critério pelo qual os elementos mais extremos da insurgência avaliarão a ousadia e o compromisso de seus colegas.
É impossível superestimar o impacto que essas imagens terão no mundo árabe. É a humilhação do infiel mostrada sem dó nem piedade. Governos escrupulosos vão condenar os ataques, usando o discurso diplomático cuidadoso, mas, entre as bases, uma das reações será festejar o ‘castigo’ às forças de ocupação e seus agentes.
Nos Estados Unidos, a reação previsível -e justificada- será de condenação, amargura e revolta. A questão, porém, será saber se a reação americana vai parar por aí: não a resposta oficial -se bem que não se possa excluir a possibilidade de operações maciças de represália em Fallujah-, mas a resposta da opinião pública. Trata-se de território político perigoso para a administração Bush, mesmo faltando sete meses para a eleição. Até agora, o apoio popular americano à continuidade do envolvimento dos EUA no Iraque vem caindo apenas lentamente. Os americanos vêm recebendo os reveses sucessivos mais estoicamente do que muitos previam.
Até ontem, porém, não tinha ocorrido nenhuma atrocidade capaz de trazer à tona outra vez as memórias do caminhão-bomba que matou mais de 240 fuzileiros navais americanos no Líbano, nenhuma derrubada de helicóptero Falcão Negro, ao estilo do que aconteceu em Mogadício. Nenhum ataque único no Iraque que fosse tão assassino em escala ou brutal em sua execução que tivesse motivado chamados em grande escala por uma retirada imediata e incondicional das tropas.’