A biografia, além de gênero literário, é uma ação humanitária – luta contra a morte, cruzada contra o esquecimento. Mas é preciso tomar cuidado com os espasmos de biografite aguda que às vezes acometem os maiores talentos.
O texto publicado no sábado (2/7), na página 2 da Folha de S.Paulo, sobre o colunista Zózimo Barroso do Amaral está equivocado [ver abaixo]. Não apenas em matéria factual, também histórica. Esquecer a figura de Jacinto de Thormes (pseudônimo de Maneco Muller) como um dos precursores da chamada “crônica social” carioca é ignorar a ordem das coisas. Lembrar apenas Ibrahim Sued é subverter valores.
Maneco Muller era do grupo que atravessou os “anos dourados” do Diário Carioca, depois se mudou para a Última Hora, de Samuel Wainer, de quem era grande amigo. Lia muito e não apenas Proust; escrevia com graça, nunca fez negócios, morreu pobre.
Ibrahim Sued foi o protótipo do repórter batalhador, pé de boi, solidário com os companheiros, embora criativo não sabia escrever. Morreu rico e famoso.
Prazos e medidas
Zózimo beneficiou-se do seu tempo, duas gerações depois. E teve um tutor de altíssimo nível, Álvaro Americano, responsável pela coluna social do Globo. Foi o próprio Americano quem pediu ao publisher do Jornal do Brasil, Nascimento Brito, para dar uma chance ao jovem e anônimo assistente. Brito sabia que o “Caderno B” estava sem colunista desde que a jornalista Léa Maria Aarão Reis deixara a função.
Este observador, então editor-chefe do jornal, conhecia Zózimo, contratou-o e aproveitou para mudar o cabeçalho da coluna seguindo o modelo da “Coluna do Castelo”: passou a ser chamada apenas de “Zózimo”. O resto deve-se ao seu talento.
O caso é irrelevante e ilustra o afã da história instantânea, tipo nescafé, que domina nossa imprensa, sobretudo nas colunas assinadas onde vale tudo, desde que atendam aos prazos e ao número de caracteres.
***
Zózimo
Ruy Castro # reproduzido da Folha de S.Paulo, 2/7/2011; intertítulo do OI
Zózimo Barrozo do Amaral, que teria feito 70 anos em fins de maio, não era bem um colunista social. Quando ganhou uma coluna diária com seu nome no Jornal do Brasil, em 1969, talvez fosse. Mas bastou-lhe olhar em torno. Com os militares e os novos-ricos no poder, o Brasil era de quem sabia “empunhar um fuzil ou assinar um cheque, mas não segurar um garfo”. Para quê coluna social?
Antes dele, os inovadores do gênero tinham sido Ibrahim Sued, com sua obsessão pela nota curta e pelo furo (“Bomba, bomba, bomba!”), e Alvaro Americano, que tomava liberdades com a notícia e a comentava, ambos em O Globo. Zózimo superou-os em suas especialidades e acrescentou o humor. “Foi o brasileiro que melhor escreveu em três linhas”, disse seu sucessor Ancelmo Gois.
A idade…
Quando queria, não lhe faltavam furos: “Desde o início do governo, nunca foi tão harmonioso o relacionamento dos ministérios da Justiça e da Economia” (em 1990, para insinuar o romance entre Bernardo Cabral e Zélia Cardoso de Mello, ministros do recém-empossado Collor). Ou sua sugestão para o nome da empresa que os investidores Donald Trump e Naji Nahas iam abrir juntos: “Trampolinagem”.
E ninguém o batia na frase de efeito: “O problema em Brasília é o tráfico de influência. Já no Rio, é a influência do tráfico”. Ou: “Reflexão de uma senhora casada sobre a infidelidade conjugal: “Antes à tarde do que nunca'“. Ou: “Boni afirma que vai deixar a Globo daqui a dez anos. É o aviso prévio mais longo da história”.
Primeiro no JB, depois no Globo, Zózimo foi leitura obrigatória durante 28 anos. Mas, mais que isto, era uma pessoa querida. Em 1997, pouco antes de morrer, aos 56 anos, deixou esta observação sobre a condição masculina: “Depois de uma certa idade, o homem, da cintura para cima, é poesia; da cintura para baixo, prosa”.