Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pérolas para os jovens

[do release da editora]

O que fazer para incentivar os jovens a ler os clássicos da literatura luso-brasileira? O jornalista Marcos de Castro acredita que um caminho é aproximar escritores e leitores. Em Caminho para a leitura, ele reúne pequenos, mas bem pesquisados, perfis biográficos de 25 autores fundamentais da literatura brasileira e portuguesa. Nomes como Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa e Eça de Queiroz. Clássicos que, muitas vezes, são aberrantemente desconhecidos pelas novas gerações.

O objetivo é comunicar aos novos leitores a idéia de que é impossível conhecer o país e a nós mesmos sem um mergulho em nossa melhor literatura. Caminho para a leitura contextualiza os autores clássicos e faz com que eles sejam mais palpáveis para o público jovem. Depois de abordar A imprensa e o caos na ortografia em seu livro anterior, Marcos de Castro se dedica a incentivar a leitura, uma de suas grandes paixões. ‘Este é um livro de quem faz da leitura um item básico de sua vida’, afirma Marcos de Castro. ‘Pessoalmente, trechos de antologias me levaram a ler algumas obras. Várias obras, eu diria.’

Marcos de Castro, jornalista, é licenciado em Letras Clássicas pela Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil. Trabalhou em veículos como Jornal do Brasil, Jornal da Tarde (sucursal Rio), O Globo, O Dia e TV Globo, além das revistas Realidade, Enciclopédia Bloch, Manchete e Veja Rio. É tradutor, entre outras obras, da biografia São Luís, de Jacques Le Goff, também lançada pela Record.

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Apresentação

Marcos de Castro

Este livrinho deve sua existência exclusivamente ao romancista Moacir Japiassu (A santa do cabaré e Concerto para paixão e desatino). Vamos começar do começo. No finzinho de 1998 ele me telefonou dizendo que ia lançar uma revista, Jornal dos Jornais, espécie de imprensa dentro da imprensa, isto é, uma revista que ia tratar de jornais e jornalistas. Deveria ter, portanto, muitos leitores entre os estudantes de comunicação pelo Brasil todo. E os estudantes de comunicação – dizia-me ele – não estão lendo nada.

Entendi logo o que ele queria de mim, pois concordava com ele. Minhas recentes experiências com estagiários nas redações, mocinhos e mocinhas que ainda estavam cursando a faculdade, eram dolorosas. De minha parte, logo depois de ver um novo estagiário na redação, cercava de um lado, cercava do outro e, convencido de que para escrever bem o único caminho é ler com alegria os bons autores, acabava caindo no assunto: e, quanto a leituras, como é que vamos? Era gente muito simpática, como simpáticos são sempre os jovens em busca de alguma coisa. Mas, quanto à leitura, meu amigo Japi tinha toda a razão, ninguém estava lendo nada. Claro, havia as exceções de sempre. Chegava-se entretanto a um ponto – e isto era comum – em que o jovem candidato a jornalista lera alguma coisa do autor que deveria cair no vestibular do ano em que tinha se candidatado (os cursinhos sabem de coisas insuspeitadas) e depois nunca mais lera nada. Para usar uma expressão deles, gente muito sincera: bulhufas. Faltava-lhes uma noção clara de que nunca conheceriam sua terra se não lhe conhecessem a cultura e as raízes.

Repito, entendi o que o nosso Japi queria, mas, como executar a tarefa? O dono da revista era ele, portanto a orientação deveria vir de lá. Que tipo de coisa ele queria de mim? O que o chefe (exclua-se a conotação antipática que no caso de Moacir Japiassu a palavra não carrega) me disse foi mais ou menos o seguinte, na linguagem descompromissada:

– Se vira! Quero alguma coisa na revista que leve o jovem estudante de comunicação a ler mais. O resto é com você.

O autor e a obra

Muito bem, estava eu na estaca zero, o que também pode ser muito bom, porque obriga você a fazer alguma coisa, seja lá como for. Lembrei-me então do tempo em que comecei a ler de modo mais organizado. Isso faz alguns séculos. Eu quase diria, como Manuel Antônio de Almeida, ‘Era no tempo do rei.’ Bem, na verdade, era no fim dos anos 50 (dos anos 1950, se o leitor desconfiou que fosse alguma outra data). Para saber das novidades, eu buscava sempre os suplementos literários ou os rodapés de crítica, à época ainda muito em voga. Foi quando, nos suplementos como nos rodapés, sem que houvesse Bush nem Saddam Hussein naquelas priscas eras, estourou uma guerra.

Eram os adeptos da crítica científica, acadêmica, contra os impressionistas. Ora, sustentavam os ‘científicos’ (à frente o professor Afrânio Coutinho [1911-2000], que tinha chegado de uma viagem aos Estados Unidos, ou ‘à América’, como então se dizia, e de lá trouxera na cabeça o New Criticism), sustentavam eles, eu dizia, que a verdadeira crítica nada tem a ver com o autor. A obra de arte é uma realidade em si mesma, a crítica não deve lidar com realidades externas ao comentá-la. Falo de modo simplista, não sei como fazê-lo de outro modo. Posso não estar sendo muito exato, mas é mais ou menos isso. Não tenho autoridade para me aprofundar no assunto. O que sobra, para mim, é que, como a seus adversários impressionistas, também me irritaram os ‘científicos’, categoria que eu só respeitava entre os lingüistas e filólogos.

Com efeito, pensei comigo, como falar dos poetas românticos sem dizer que eram tuberculosos desgrenhados? O leitor há de descontar a linguagem hiperbólica, mas era isso que eu achava – e era esse contexto que me levava a ler. Gonçalves Dias, a paixão eterna por Ana Amélia, a revê-la em Lisboa e debulhar-se em lágrimas. Que emoção teria para mim ‘Ainda uma vez – Adeus!’ se eu não lesse o poema pensando nesse pano de fundo?

Fiz então os artigos, de março de 1999 a dezembro de 2000, sempre pensando em unir o autor a sua obra. A revista morreu com o século, como se vê. Tudo que é bom dura pouco. Foram 21 números, 21 artigos – esse ‘unir o autor a sua obra’ era, no meu modo de ver, o jeito de atrair o leitor jovem. Tantos anos passados, tinham arrefecido as discussões de vozes mais altas sobre crítica literária. Minha irritação passara. Mas, sapateiro, não posso ir além das sandálias. Continuava na minha, como continuo, achando autor e obra inseparáveis.

Horas de divergir

Uma palavra final para qualquer leitor – dirijo-me especificamente ao jovem que pretendo encaminhar para a leitura, mas não só a ele. O que se segue não são os 21 artigos, ipsis litteris. Escrever para revista é uma coisa, fazer um livro é muito diferente. Mudei o que tinha de ser mudado (e acho que não foi pouca coisa), acrescentei aqui, cortei ali. E arranjei um lugarzinho para novos autores que não estavam na lista inicial, como José Lins do Rego e os poetas Alphonsus de Guimaraens, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por achar que estavam escasseando nossos grandes poetas do fim do século XIX e de todo o século XX. Acrescentei também um ‘Apêndice’, com curiosidades. Só não é inédito o capítulo que fala do equívoco sobre o Credo em Esaú e Jacó. Os três outros eram artigos em embrião – e os completei e incluí aqui por julgá-los importantes, para que se veja como é imensa nossa irresponsabilidade na república das letras (exemplo: o mistério de O Esqueleto tornar-se secular e de ser o equívoco em torno do livrinho encampado ainda hoje por enciclopédias e histórias literárias).

No fim do volume, o leitor encontrará uma minificha biobibliográfica de cada autor, a situá-lo no tempo e no espaço, com os dados reduzidos ao essencial. Ah, ia-me esquecendo! Uma seleção nunca é pacífica. Bem sei que não faltarão atiradores a condená-la com a veemência que é própria do homem nas horas de divergir. Fulano não podia entrar, Beltrano tinha que ter entrado. Cada vez que o técnico da Seleção Brasileira convoca os jogadores há gritos de que faltou Fulano (e sempre o que faltou é do ‘meu’ time) e que a convocação de Beltrano foi injusta. Sou calejado no assunto. Claro, a seleção está cheia de defeitos. Ainda assim, é melhor e é pior do que qualquer outra. Mas há um dado do qual não havia como fugir: é a minha seleção. Todos têm a sua. Respeitarei a de cada um. Mas não há outro jeito: tenho de ficar com a minha.

[Rio (Laranjeiras), na festa de Santo Evaristo, papa e mártir, 26 de outubro de 2004. M.C.]

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‘Machado, as ‘Memórias Póstumas’’

É bom começar por Machado de Assis quando se vai tratar, no Brasil, de literatura brasileira e portuguesa. Em literatura, como em tantos outros campos, todo juízo de valor é temerário. Mais ainda o é o juízo de valor comparativo, do tipo Fulano é melhor do que Beltrano, Beltrano é melhor do que Sicrano. Mas digamos que Machado é hoje a flor mais viçosa do jardim de nossas letras. Assim estaremos em paz com a nossa consciência, sem trair a consciência universal. Porque Machado de Assis, na última metade do século XX, esteve sempre na ordem do dia em todo o mundo ocidental, em todas as línguas de cultura deste lado do mundo onde vivemos.

Foi publicada por exemplo, no fim da última década do século passado, uma recensão crítica das Memórias Póstumas de Brás Cubas em The New York Times Book Review, a propósito do lançamento de uma nova edição em língua inglesa do livro. Um amigo curioso, sabendo da repercussão que tem qualquer coisa publicada nessa revista de livros, uma semana depois da publicação do artigo foi verificar quantos exemplares daquela versão para o inglês tinham sido vendidos pela livraria Amazon, grande sucesso da Internet. Pois tinham sido vendidos mais de 5 mil exemplares (a grande maioria nos Estados Unidos). Evidentemente, tal número não representa nenhuma liderança, ainda que em uma única semana, pois há alguns livros que em determinados períodos vendem via Internet como pão quente de manhã. Mas de toda maneira é um número altamente expressivo.

Isso quer dizer que Machado continua sendo traduzido e estudado ‘pelo mundo fora’, para usar uma expressão dele, freqüente nas próprias Memórias Póstumas, de que vamos tratar neste capítulo inicial. Lembremos ainda que, em 1998, lançou-se no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras) a maior coletânea de seus contos até hoje publicada. Uma edição primorosa. E quem foi seu organizador? Numa outra prova de que a cada dia Machado de Assis é um autor mais internacional, foi um inglês, John Gledson, tradutor de Machado para o seu idioma e autor de vários estudos sobre o romancista brasileiro (poucos, infelizmente, publicados entre nós, como o admirável Machado de Assis: Ficção e História, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, tradução de Sônia Coutinho). Gledson não pára de divulgar Machado de Assis em seu país e enriquece o acervo de edições machadianas aqui mesmo no Brasil: já organizou também uma coletânea de crônicas – Bons Dias! – publicada em 1990 em edição conjunta Hucitec/Editora da Unicamp. São crônicas saborosíssimas mas quase esquecidas, para as quais Gledson preparou uma bela introdução e às quais acrescentou notas que mostram que esse inglês é hoje talvez o maior conhecedor da história do nosso Segundo Império (e não estou excluindo os brasileiros ao falar dessa possibilidade). Temos ou não temos muito a agradecer a esse inglês, professor em Liverpool?

Edição digna

Antes de voltar diretamente às Memórias Póstumas, nosso assunto específico aqui, devemos completar essas referências sobre a trajetória internacional de Machado de Assis lembrando que são várias as traduções de suas obras para o inglês, a começar pelo Dom Casmurro da americana Helen Caldwell, talvez a mais famosa dessas traduções (Helen Caldwell, em sua obra The Brazilian Othello of Machado de Assis: A Study of Dom Casmurro, Berkeley, University of California Press, 1960, considera o Dom Casmurro uma obra-prima da literatura ocidental). E lembrando ainda que Machado de Assis está traduzido desde o meado do século XX para todas as grandes línguas européias (mas não só para elas) e que um de seus biógrafos mais respeitados é um francês, Jean-Michel Massa (a biografia, dita da ‘juventude’, trata da vida de Machado de Assis apenas do nascimento, 1839, até 1870; Massa também é autor de um Ensaio de biografia intelectual de Machado, publicado pela Civilização Brasileira, Rio, 1971, e de um extraordinário trabalho bibliográfico: Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis, 1965). Finalmente, que nosso Machado já tem sido apresentado ao lado de gente como Racine, Corneille, Dickens, Tolstoi e Dostoievski, como no caso do estudo ‘A Posição do Narrador no Brás Cubas de Machado de Assis’, no primeiro volume da grande obra do alemão Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária (Coimbra, Armênio Amado, 2 volumes, 1958, tradução portuguesa de Paulo Quintela).

Comecemos agora por situar essas Memórias Póstumas de Brás Cubas. É praticamente unânime entre os críticos literários que esse romance marca uma nítida linha divisória entre ‘as duas fases de Machado de Assis’*, estabelecidas por esses mesmos críticos. A primeira fase ainda carregaria traços do Romantismo e uma influência nunca desmentida dos romances urbanos de José de Alencar. Composta pelos quatro primeiros romances machadianos – Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia –, essa primeira fase seria como que a obra de um outro romancista, numa comparação com a segunda. Em suas Memórias Póstumas de Machado de Assis (Rio, Nova Fronteira, 1997), Josué Montelo chega a dizer: ‘Demarcadas as fronteiras definitivas, dir-se-iam [essas duas fases] constituir a obra de dois escritores, a despeito do parentesco estilístico que se evidencia nos dois conjuntos…’ De modo que as Memórias Póstumas de Brás Cubas são consideradas, pela generalidade dos críticos, a grande virada na obra de Machado.

A partir desse romance é que temos o gênio de Machado de Assis a conquistar um lugar muito seu na literatura universal, a um tempo um mestre de nossa língua e um autor originalíssimo. Entre os cinco romances que se seguem, a completar essa segunda fase que lhe dá singularidade absoluta como dono de uma arte personalíssima, apenas Dom Casmurro e Quincas Borba disputam com as Memórias Póstumas (ou o Brás Cubas, como preferem outros, ao tratar-lhe o título abreviadamente), entre os críticos, a condição de sua obra-prima. Os outros dois, habitualmente citados como complementos da sua obra de romancista, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, não costumam merecer tal honra, apesar da extraordinária graça do Memorial de Aires, livro em que, parece, Machado pretendeu sobretudo prestar homenagem à memória de sua tão amada Carolina, de certa forma retratada na personagem de Dona Carmo (e quanto a isso não costuma haver discordância).

Não será sem propósito um complemento de informação sobre os romances de Machado, aqui. Trata-se do seguinte: a esses nove romances (os quatro da primeira fase e os cinco da segunda) é preciso acrescentar um décimo, que ficou esquecido e só foi publicado em livro em 1944, portanto 36 anos depois da morte do autor: Casa Velha (não confundir com as Relíquias de Casa Velha, colcha de retalhos que reúne contos, crítica e teatro, de 1906). A má sorte de Casa Velha deve-se talvez ao fato de que é em tudo semelhante, quanto à trama, aos livros da primeira fase machadiana, embora tenha sido publicado depois das Memórias Póstumas, que saíram em livro em 1881. Ou seja, cronologicamente, Casa Velha é obra da segunda fase. Foi publicada em 25 episódios na revista carioca A Estação, nos anos de 1885-86. Lúcia Miguel Pereira, também biógrafa de Machado – de não pequenos méritos –, fez um esforço de Hércules para localizar os 25 números da revista, percorrendo arquivos e bibliotecas do Rio. Mas ao dar vida ao conjunto como livro (em edição reduzida que em pouco tempo se tornou raridade), Lúcia Miguel Pereira, em seu texto de introdução, desqualifica Casa Velha, dizendo que a obra nada acrescenta à glória de Machado. E chega a duvidar que tenha sido escrita em época que corresponda à data da publicação. Acha – ainda falamos dessa introdução – que Casa Velha deve ter ficado na gaveta por muito tempo, só saindo lá do fundo para que o autor cumprisse compromissos jornalísticos (uma segunda edição do romance, com o mesmo texto de Lúcia Miguel Pereira como prefácio, foi publicada em São Paulo, em 1968, mas também foi uma edição quase secreta). José Galante de Sousa, em sua notável Bibliografia de Machado de Assis, é outro que despreza a qualidade literária de Casa Velha, embora não ponha ênfase na tese de Lúcia Miguel Pereira sobre a época da redação do romance.

Triste sorte, triste sina: o livro continuaria a viver seu infortúnio ao ser classificado, na Obra Completa da Editora Aguilar (Rio, 1962), como ‘conto’, uma falha gritante, como anota Gledson e confirma qualquer olhar superficial sobre a trama complexa e o desenvolvimento do modo de ser das personagens. Afinal, o já citado Machado de Assis: Ficção e História, de John Gledson, é que começa a reabilitar Casa Velha. Ao editar, em 1991, uma coleção de 17 obras de Machado de Assis, a Garnier prestou um enorme serviço incluindo o livro pela primeira vez entre os romances de Machado de Assis, num lançamento que desta vez deu a Casa Velha repercussão maior. Não que o romance por isso viesse a ser muito mais lido, que também não se tratou de uma edição popular, de grande tiragem. Nada disso. Mas ao menos ficou mais conhecido, pois essa edição Garnier – uma edição digna, com longa introdução de John Gledson e reprodução do citado prefácio de Lúcia Miguel Pereira – foi noticiada em praticamente todos os suplementos literários do país.

‘Galinhas tristes’

Mas qual foi, afinal, a mudança da água para o vinho do Machado de Assis das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em relação aos seus primeiros romances? A técnica de utilizar um defunto como narrador já é uma verdadeira revolução. Mas, fundamentalmente, o que há é que – além da forma totalmente livre do romance, cujos modelos estão em Laurence Sterne (escritor inglês nascido na Irlanda) e no francês Xavier de Maistre, como o autor informa no ‘Prólogo da Quarta Edição’ – o Machado da primeira fase vê as pessoas como alguém que as observa de fora, e na segunda fase o romancista passa para dentro das pessoas. É com o complicado mundo da cabeça do homem que passamos a lidar. Numa palavra, o Machado da segunda fase penetra a alma humana, e, a partir desse mundo complexo, começamos a esbarrar com as misérias do homem, raramente com sua grandeza, o que o levou a ser definido, de um modo quase generalizado, como um ‘pessimista’. Memórias Póstumas nos apresenta um cínico (no sentido vulgar, não no sentido filosófico) Brás Cubas, que não tem qualquer problema de falar de seus deslizes de caráter, pois já está morto. O cúmulo de seu cinismo, leitor, você encontrará no Capítulo LXXX (como nos outros livros de Machado, os capítulos são numerados assim, em algarismos romanos, hábito da época – e alguns autores apreciam a fórmula até hoje), quando ele vê uma possível solução administrativa para o problema do triângulo amoroso de que é um dos vértices. Mas Brás Cubas era cínico e ruim. Menino, maltratava o moleque de sua casa (toda casa tinha um negrinho para servir o sinhozinho em tudo, a começar pelas brincadeiras). Ruim e sem-vergonha: rapazinho, não trabalhava e dissipava o dinheiro do pai com uma mulher, Marcela, que o amou ‘durante quinze meses e onze contos de réis’, na saborosa expressão de Machado. O resto são seus amores clandestinos com Virgília, que constituem o cerne do livro, mas dos quais não falaremos aqui, esperando que o leitor (sobretudo o jovem leitor) já tenha caído em tentação. E, assim, que corra para uma boa edição dessas aventuras nada edificantes de Brás Cubas.

Será mais saboroso encerrar falando da linguagem, da deliciosa linguagem de Machado de Assis, que atinge o ponto de sublimação nessa sua chamada segunda fase, ainda que desde Ressurreição ele fosse um mestre no trato do idioma. A forma machadiana nunca deixou de evoluir. Há mesmo quem sustente que sob o ponto de vista da linguagem o melhor Machado está no Memorial de Aires. Mas, já nas Memórias Póstumas, há imagens de brilho raro. Se é lícito retirar algumas pérolas do conjunto da jóia, o leitor terá aqui algumas delas. Como esta do Capítulo V, por exemplo, quando Brás Cubas, em seu leito de moribundo, vê chegar a Virgília de seus amores à porta da alcova. Virgília, que fora a mais formosa moça de seu tempo, era então, aos 54 anos, ‘uma ruína, uma imponente ruína’. No Capítulo XII, o leitor conhecerá o Vilaça, um parlapatão que contava histórias de desafios em versos que mantivera com o poeta Bocage nos botequins de Lisboa, ou de diálogos com senhoras da nobreza lusitana. Um ‘homem tão dado, tão simples’, que – coisa admirável! – ‘além de pleitear com poetas discreteava com duquesas!’.

E há mais. Pode-se garantir que ao mergulhar no mundo da linguagem machadiana o leitor não há de ficar ‘jururu, como dizemos das galinhas tristes’ (Capítulo XXV). Nem ficará ‘triste como os enterros pobres’ (Capítulo XXXVI). E afastará de si toda a hipocondria (que o autor usa como sinônimo de melancolia), ‘essa flor amarela, solitária e mórbida’ que, aqui e ali, passeia pelo romance perseguindo Brás Cubas. Um cínico entretanto sujeito a depressões de melancolia é personagem cuja complexidade se ajusta à perfeição à segunda fase de Machado de Assis.