Depois de ter sido repórter, editor e dono de jornal, Mateus Kacowicz deixou o jornalismo para trás. Há décadas. O jornalismo é que não o deixou. A ponto de ser virtualmente o personagem principal de seu primeiro romance, Acidente em Matacavallos, ambientado no ocaso da República Velha. Isso está patente nas primeiras páginas (ver remissão abaixo).
É um tempo em que, embora houvesse, como sempre, a questão do capital necessário, criar jornais (impressos, claro) não era um processo tão dramático e assustador como é hoje, quando são submetidos a uma espécie de oligopólio convergente (O Globo, O Dia) importantes segmentos da população de uma cidade que foi capital da República até pouco mais de 50 anos atrás.
A qualidade literária de Matacavallos levou o jornalista e escritor Renato Pompeu a colocar Mateus no panteão dos grandes escritores brasileiros (leia aqui). O proveito historiográfico que se tira da leitura abrange jornalismo, política, a sociedade e a cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1920. É, especialmente, matéria para estudiosos e interessados no papel da imprensa.
Na conversa que se segue, Mateus contesta o entrevistador a respeito da importância do texto: “Creio ser romântica essa ideia de que jornalismo tem a ver com ‘bom’ texto, com texto enxuto. Na minha opinião, jornalismo tem a ver com informação.”
Está certo.
Embora saber escrever – para as finalidades visadas – seja requisito básico na construção tanto de um romance como de uma reportagem, o que Matacavallos reitera é a qualidade da pesquisa, aquilo que, mutatis mutandis, se poderia chamar “apuração”. Por falar em apuração, há no relato de Mateus uma pauta jornalística: o estado lastimável da hemeroteca mais importante do país.
Na Economia do Globo
Seu livro contém flores que brotaram de sementes jornalísticas. Conte como foi sua experiência na imprensa?
Mateus Kacowicz– Comecei aos 18 anos no Jornal do Brasil, como aprendiz de fotógrafo. Nunca fui um bom fotógrafo. Nem razoável. Mas foi por esta porta que entrei e por onde recebi talvez uma das mais indeléveis experiências em imprensa: um belo dia consegui, por mero acaso, uma boa foto que foi escolhida para ilustrar uma matéria sobre turfe (um sujeito ganhou uma bolada no Sweepstake e pirou: sentou-se no chão e espalhou o dinheiro à volta dele). Pura sorte de principiante. A foto foi diagramada e resolvi então acompanhar esta foto e conhecer todos os processos de fabricação do jornal. Quando saí, já era alta madrugada, levei comigo um dos primeiros exemplares impressos com minha foto. Estava orgulhosíssimo e, no dia seguinte, ao narrar o que havia feito, causei espanto aos meus colegas, pois o que eles consideravam “jornal” terminava no buraco por onde desciam as fotos e matérias rumo às entranhas, a oficina, onde habitava aquela abstração romântica, a classe operária. Isso foi em 1966.
Mas fotografia não era o que eu queria. Eu queria redigir. Passei então às revistas técnicas da Abril como frila e lá, no dia-a-dia, fui sendo apresentado às técnicas básicas de redação. Dali fui parar em uma empresa de análise econômica, Índice – o Banco de Dados, de onde fui convidado para fazer parte da equipe da editoria de economia que estava sendo formada no Globo. Passei vários anos nessa editoria, onde me consolidei como repórter e onde fui melhorando meu texto e minha técnica de apuração, inclusive aportando a experiência de pesquisa econômica que incorporei de minha formação acadêmica e de minha prática no Índice e em muitos bicos como economista.
Fui morar em 1974 na França, onde desenvolvi um olhar internacional e pude me sustentar fazendo frilas para a economia do Globo, sobretudo para os cadernos anuais Panorama Econômico.
A solidão do livro-caixa
Mas deu formiga, larguei o doutorado que havia iniciado e voltei no ano seguinte alimentando a ideia de me desatrelar da economia e mergulhar de fato no jornalismo. Fiz então o caminho inverso: desci do olimpo da economia e decidi que queria ser repórter de infantaria, ir para a geral. Eu já chegando aos trinta anos me vi correndo atrás de buraco de rua, sujeira no Parque Lage, casos policiais escabrosos (quando repórteres que não eram especialistas em polícia iam reforçar a cobertura). Mas também me foi dada a oportunidade de desenvolver matérias especiais, não raro de mais de uma página, publicadas aos domingos e, raridade então, assinadas.
Em 1979, surgiu uma oportunidade na Gazeta Mercantil, que naquele momento vivia seu apogeu. Foi uma passagem curta, mas intensa, quando, ao trabalhar como editor, agucei a percepção de como um jornal pode ser importante. Como a importância do jornal pode abrir portas para uns, e não para outros. Foi ali que entendi como se aplica, ao jornalista, a piada do cara que puxou a descarga em Hiroshima. O jornalista é desimportante, por mais que ele pense que é a descarga que ele puxa que detona a bomba.
Isso ficou claro quando fundei meu próprio jornal, em 1981. Tanto eu como meu sócio na época, vínhamos de postos prestigiados em jornais importantes, mas nem por isso nossa vida foi facilitada. Depois dos tapinhas nas costas e de papos do tipo “dou a maior força”, sobrava a solidão do livro-caixa, a batalha para chegar ao segundo número e ao número seguinte e ao seguinte.
Pseudo-literatos e semianalfabetos
Essa foi a vivência que me faltava para conhecer, posso dizer hoje, conhecer boa parte do negócio jornal: o romantismo, a indústria, a relação com as agências de publicidade, com os inúmeros aspones, a impressora quebrada na hora de rodar, o coleguinha bêbado, o ladrão de fotolitos, os grandes furos que não repercutiram e que só serviram para pautar os jornalões do dia seguinte, que ficaram com os méritos… Separei-me da sociedade depois de seis anos de edições ininterruptas e razoavelmente bem-sucedidas, com o que dei meus trâmites jornalísticos por findos.
O que ficou? Ficou essa sensação de caso mal-terminado. E ficaram as pessoas. Esse enorme desfile de gente de todas as origens, culturas, caracteres, esse arco de gente que reúne da canalha à santidade.
O treinamento como jornalista proporciona, quando bem-sucedido, o domínio da linguagem no que diz respeito à precisão e à concisão. Ensina a evitar excessos retóricos, circunlóquios, pieguices. Mas não fornece ferramentas para a produção ficcional. O que o senhor poderia dizer sobre essa transição de concepção e estilo?
M.K. – Não sei se concordo com a premissa. Você bem faz a ressalva – “quando bem-sucedido” –, mas mesmo assim não sei se concordo. Acho que texto é a ferramenta da etapa final da veiculação da informação, mas no processo produtivo, na linha de montagem que é a produção da noticia, o bom apurador pode ser tanto um pseudo-literato como um semianalfabeto (e os conheci muitos, geniais catadores de informação) que produzam textos impossíveis de ser publicados sem que passem por um rolo compressor no copidesque.
Uma hemeroteca vexaminosa
Creio ser romântica essa ideia de que jornalismo tem a ver com “bom” texto, com texto enxuto. Na minha opinião, jornalismo tem a ver com informação. Se você me permite, há um exemplo disso em meu livro, quando o personagem Yuli, que mal fala português – que dirá redigir… – é “contratado” para apurar informações para o jornal-personagem do romance. O imigrante sabe onde encontrar a informação, sabe o que é importante, e isso basta. Alguém que domina a língua e a técnica irá transformar aquela algaravia em quê, quando, onde etc.
Jornalismo tem sido historicamente uma fonte de literatos. Mas penso que, no meu caso, escrever é uma questão de pendor. Eu gosto. Faço isso desde cedo. Apesar de nunca ter exercido essa função, me influenciei com a etapa final, o copidesque, sempre tão escanteado, mas precioso para dar ao texto a precisão, concisão e escoimá-lo de todos os contrabandos ideológicos, lítero-estilísticos e que tais.
Seu romance requereu, ao que tudo indica, um bocado de pesquisa. O que deu mais trabalho?
M.K. – Acredite: a precariedade da hemeroteca da Biblioteca Nacional. Um horror, um vexame: máquinas velhas, desfocadas, quebradas, microfilmes (microfilmes?!) arranhados, praticamente ilegíveis. A pesquisa não rende, os olhos ardem. À época em que frequentei a Biblioteca Nacional, de vez em quando eu cruzava com um pesquisador francês que olhava aquilo com uma mistura de nojo e condescendência. Queria mandá-lo à merda, mas senti vergonha.
E não é preciso ser assim. De minha casa, eu entro na biblioteca do Congresso dos EUA, na Biblioteca francesa, na portuguesa e está tudo ali, fácil, ao alcance de uns cliques. Tenho certeza de que digitalizar os jornais brasileiros de maior importância está longe de ser alguma tarefa especialmente cara. O JB e a Folha de S.Paulo já fizeram isso por sua conta e está disponível ao público. Tenho notícia de que o Globo tem suas edições digitalizadas, mas para uso interno. Talvez outros grandes jornais já tenham isso. Por que não disponibilizar as edições para uso público?
Embebedar-se de história
O grau de indignidade retratado pelo senhor é mais raro hoje, fora dos ambientes paroquiais. Na sua opinião, a corrupção, em diferentes modalidades, já foi maior na imprensa brasileira?
M.K. – O jornal-personagem que inventei é miúdo, tenta ser importante, tenta ter punhos para que suas diatribes sejam notadas e recompensadas. Criei em contrapartida um outro jornal, este editado a partir de critérios respeitáveis e através do qual procuro analisar a possibilidade de uma imprensa que dispensa os expedientes menores do outro. Faço questão também de deixar claro que defender interesses e ideias faz parte integral das prerrogativas legítimas de pessoas, grupos e instituições públicas ou privadas, jornais inclusive, evidentemente. E acredito firmemente que é no confronto desses interesses que residem a dinâmica e o equilíbrio democráticos.
No seu livro, os leitores não têm mais “caráter” do que os jornalistas. Pelo menos os que são retratados. Essa espécie de equivalência continua a se verificar?
M.K. – Eu colocaria da seguinte forma: há uma identificação entre linhas editoriais e faixas de público. Não sei se isso tem a ver com caráter ou o que quer que seja, mas a imprensa é segmentada em nichos e esses nichos tendem a ser preenchidos por um grupo de afinidade social, econômica e cultural.
Explique como o recurso à ficção pode ser uma ferramenta para desenhar um painel histórico, no caso concentrado em três anos da década de 20.
M.K. – Acho que isso funciona como uma segunda natureza. Difícil explicar. A primeira etapa é embeber-se – ou embebedar-se – do tempo e do ambiente no qual se vai desenvolver a ficção. À medida que a história vai emergindo, as peças como que caem em seus lugares. No meu caso, é do meu temperamento tentar conhecer o contexto mais amplo daquele momento histórico. A partir daí, posso acertar minhas contas com a História (com H), ou, como diria Cervantes, desentortar tortos e bem-fazer malfeitos. Ou simplesmente ser cínico (ou realista) e criar situações em que heróis não sejam premiados nem vilões punidos. No limite pode-se chegar à situação em que Quentin Tarantino acerta suas contas com os nazistas sem sair um instante do marco histórico conhecido por seus espectadores, sem deixar de pintar o quadro tenebroso que se vivia. Apenas que pelo avesso.
Os reflexos do fascismo no Brasil
Por que o senhor não quis escrever um romance à clef?
M.K. – Porque isto, na minha opinião, seria baratear a possibilidade do generalizável. Por que vou reduzir a um personagem conhecido, Fulano ou Sicrano, uma situação que pode ser ampla e emblemática? Se eu retratasse algo ou alguém, estaria fazendo história, não ficção. Talvez o único personagem distinguível no romance seja o do escritor Lima Barreto, uma pequena homenagem in pectore. Mas mesmo ele, que nunca é citado nominalmente, teve a data de sua morte alterada para servir aos interesses da trama.
O que a imprensa brasileira poderia fazer agora para melhorar seus padrões?
M.K. – Escolher gente de formação mais ampla. Acho que restringir a admissão aos quadros jornalísticos aos egressos das faculdades de comunicação está pasteurizando os jornais. Seria ocioso falar sobre as vantagens da multidisciplinaridade nos jornais.
Por que o senhor não quis que fosse usada a convenção sobre palavras estrangeiras (uso de itálico)?
M.K. – Porque o que eu fiz foi um romance, não um texto normatizado. É a narrativa de uma época. Pesquisei as palavras que seriam utilizadas sem quaisquer reparos por pessoas cultas da década de 1920. Não quis chamar a atenção do leitor a todo instante para o fato de se tratar de palavras estrangeiras, muitas das quais vieram a ser incorporadas ao dia-a-dia do falar atual. Criar uma barreira que definisse o que seria brasileiro e o que não seria, destacar os estrangeirismos, resultaria num estranhamento ao texto que eu não desejava. Procurei reduzir aquilo que freasse a leitura. Pelo feedback que recebi, a partir da segunda ou terceira páginas, essa questão fica dépassée.
O senhor já começou a pesquisa para o próximo romance?
M.K. – Tenho pensado muito sobre a sequência à historia que foi iniciada com Acidente em Matacavallos. Vamos encontrar Matacavallos terminando com os primeiros reflexos do fascismo no Brasil, e isto ainda sem a carga emocional e política que ela hoje traz… As pesquisas já estão começando. Estou reunindo coragem para enfrentar a hemeroteca da Biblioteca Nacional.
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Veja aqui entrevista de Mateus Kacowicz a Edney Silvestre, na GloboNews.
Leia as primeiras páginas do livro.
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[Mauro Malin é jornalista]