Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Políticos viraram marionetes’

Se o ‘dinheiro é o sangue dos pobres’… os milhões de dólares transferidos por Maluf e escondidos na Suíça, com a cumplicidade dos banqueiros suíços, são o sangue e as lágrimas dos favelados de São Paulo. Assim escreveu Jean Ziegler, escritor e atual relator especial da ONU para questões de alimentação, no prefácio do livro O dinheiro sujo da corrupção (Geração Editorial), lançado semana passada no Brasil.

Isso para descrever a importância do jornalista brasileiro Rui Martins (autor da obra), radicado na Suíça há duas décadas, e que foi o primeiro a escarafunchar, na condição de correspondente estrangeiro, as contas bancárias dos Maluf no exterior. Veja, a seguir, entrevista concedida ao jornal Correio da Paraíba, via e-mail, na qual Rui Martins discorre sobre o significado da prisão dos Maluf, sua (ainda hoje) mal-explicada demissão da CBN logo que passou a cobrir o caso Maluf, da Suíça, em 2001, e sobre outras questões como internet, jornalismo investigativo e sua tese de que os ‘políticos viraram marionetes’ e que o ‘pensamento único’, difundido pelos EUA, ameaça as culturas dos outros povos.

O lançamento do livro ocorreu colado com a prisão de Maluf e de seu filho. Investigação e redação caminharam juntas?

Rio Martins – Foi meu colega Jean-Noël Cuenod, da Tribuna de Genebra, quem me soprou a idéia de um livro, no fim do ano passado, quando a imprensa brasileira, sem medo de processos, começou a malhar o Maluf. ‘Você foi o pioneiro, pagou por isso e pode contar muita coisa’, me disse Cuenod. Tentei convencê-lo a fazermos juntos, mas ele achou que seria complicado. Nessa altura, eu já havia proposto ao Emediato, editor da Geração, a dupla autoria. Apesar da negativa do Cuenod, Emediato confirmou que editava o livro. E comecei o processo de memória e de seleção do material colhido ao longo do inquérito envolvendo Maluf. Tinha tudo comigo. Maluf entra na segunda parte do livro, pois a primeira é dedicada à Suíça e aos banqueiros suíços. Li, pela internet, que um colega seu achou extraordinária a rapidez com que se colocou nas livrarias um livro sobre Maluf, aproveitando-se a atualidade de sua prisão. Não, não foi nada disso. O livro foi escrito no começo do ano, a data do prefácio de Jean Ziegler é maio de 2005. Ele recebeu o original por e-mail, no começo de maio. Houve, então, a retirada das livrarias do livro de Fernando de Morais e Emediato preferiu entregar os originais a um advogado especializado para saber se havia risco de processo e assim evitar problemas. Não havia risco, nada foi reescrito ou cortado. Mas o atraso me permitiu incluir uma reação à corrupção e ao ‘mensalão’, em julho, quando eu estava em férias no Brasil.

Quando pretende cobrar publicamente dos Maluf, aí na Suíça, a fortuna que ele negava existir nos paraísos fiscais, e que o Sr. ajudou a provar que, de fato, existia, e que era tudo verdade?

R. M. – Agora mesmo, estava conversando por e-mail com meu colega Cuenod sobre essa data. Como ele conhece pessoalmente, o responsável pelo Clube da Imprensa de Genebra, cabe a ele conseguir uma data livre para nós. O Clube da Imprensa é importante porque costuma promover debates dos quais participam correspondentes internacionais. Genebra é a sede européia da ONU e tem entre 150 a 200 correspondentes estrangeiros residentes. Mas se não for o Clube da Imprensa vamos tentar a sala de imprensa da ONU. Isso não vai ser problema. Nessa mesma oportunidade, lançaremos o Princípio da Exceção, ou seja, um movimento para que se force a Suíça a abrir a mesma exceção feita à União Européia em termos de segredo bancário – o desconto anônimo na fonte do imposto de renda sobre os lucros dos capitais vindos dos países pobres e emergentes e remessa para os países onde vivem os depositantes secretos. Vamos tentar um contato com o governo brasileiro a esse respeito, com outros governos e ONGs. Vamos também denunciar por dumping à OIT e à OMC as rádios internacionais que fornecem noticiário gratuito a rádios comerciais. Fornecimento de serviço gratuito em concorrência com jornalistas independentes é concorrência desleal e rouba empregos de correspondentes. Esperamos que a Federação Nacional dos Jornalistas nos apóie nessa ação inédita contra a BBC e RFI, e que se instaure um bom debate a respeito.

O Sr. acredita que a prisão de Maluf demarca uma renovação nos costumes e na ética política, tão pisoteados no Brasil?

R. M. – A prisão de pai e filho foi algo inesperado num Brasil onde a lei só se aplica aos cidadãos de segunda classe. No livro, eu falo da nossa sociedade semi-escravagista, de castas e apartheid social. Mas acho que seria prematuro falar-se em renovação de costumes políticos e ética no nosso país. Tem muita gente achando que a prisão de Maluf foi para diluir na área da direita o escândalo por corrupção da área esquerda. Mas, se foi isso, abriu caminho para serem também presos os envolvidos no mensalão. Exceto, como temem muitos conhecedores da política brasileira, se tudo terminar em pizza.

Ora, por enquanto, Maluf é só suspeito e, como disse o porta-voz da ex-prefeita paulistana, ao justificar a aceitação dos votos malufistas no segundo turno, ‘indiciado não é culpado’. Não se pode esquecer que o pedido brasileiro de colaboração judiciária no caso Maluf foi estranhamente lento. Maluf ainda tem eleitores e poderá ser perdoado em troca de apoios eleitorais, no papel de vítima. Só acredito numa punição final de Maluf quando o Supremo Federal confirmar uma condenação. Até lá, até o fator idade poderá servir para um arquivamento do processo.

O Sr. sofreu algum tipo de pressão ao investigar os negócios escusos da família Maluf?

R. M. – Aparentemente não. Mas foi nosso colega Carlos Aranha (editor de Cultura do Correio) quem me alertou para o caráter político de minha demissão da CBN, em fevereiro de 2002, onde eu dava informes constantes sobre as contas de Maluf na Suíça, o inquérito aberto pelos suíços e as contas bloqueadas. Meus boletins colidiam com as explicações de Maluf de que não tinha contas na Suíça. Com meu silêncio ficou mais fácil para Maluf ser candidato a governador e prefeito de São Paulo, pois os colegas brasileiros, sem acesso aos documentos em Genebra, receavam processos e escreviam no condicional. Mas Carlos Aranha levanta a hipótese de apoios a Maluf num nível mais alto da imprensa. De onde se poderia partir para comparações com a campanha da imprensa no caso dos mensalões para se saber se houve ou não dois pesos e duas medidas. Maluf se beneficiou de um sursis de três anos, até o Tribunal Federal suíço rejeitar seus recursos e mandar seus extratos bancários à Justiça brasileira. Os corruptos do PT não tiveram essa complacência. Por que essa diferença de tratamento?

Então sua demissão da CBN teve relação direta com essa linha de jornalismo investigativo desenvolvida como correspondente?

R. M. – A diretora do Sistema Globo de Rádio diz que não, numa resposta a uma pergunta do Observatório da Imprensa. E explica que, por motivos financeiros, a Globo decidiu fazer economia me demitindo e passando a usar os boletins da BBC. Ou seja, para quem não sabe, ela economizava meu salário, a enormidade de 1.000 dólares mensais, e usava boletins gratuitos da BBC. Só que ninguém vai se convencer de que a CBN faliria se continuasse me pagando esse salário. Porém, tentando tapar um buraco, a diretora da CBN abriu outro – se não foi demissão política, então foi por dumping, aceitando noticiário gratuito da BBC. Aos leitores do meu livro, deixo a escolha, e aos meus colegas jornalistas a crítica.

O que explica o declínio desse tipo de jornalismo nos últimos nos no Brasil?

R. M. – Daqui de longe, sem grande acesso aos jornais brasileiros, não posso fazer grandes análises. Não sei se minhas constatações respondem à pergunta. Uma delas é a do desinteresse pela cultura européia. Ainda nos anos 80, eu cobria festivais de dança, de teatro, de cinema europeus. Hoje, o interesse é principalmente por tudo quanto é americano. O pensamento único impera e a possibilidade de análises e idéias não-padronizadas só existe graças a redes e sites independentes na internet. Devo minha sobrevivência cultural a essa ‘teia’ da internet. Sem microfone e rádio denunciei a agressão americana ao Iraque e declarei que não chamaria nunca iraquianos de terroristas, mas de resistentes. E essas tomadas de posição navegaram pela internet. Mantive minha luta pelos brasileirinhos, os filhos de pai e mãe brasileiros nascidos no exterior, da emigração brasileira, que não são mais brasileiros natos.

É claro que existe um buraco de 20 anos, na cultura brasileira, resultante dos expurgos praticados nas escolas e universidades brasileiras durante a ditadura. Porém, existe também na Europa o surgimento de uma civilização da imagem, responsável pela redução do vocabulário e simplificação do raciocínio e das idéias. O monopólio americano do cinema e da distribuição impede a manifestação de outras culturas. A globalização se transformou em americanização. Pela força e pelas armas, como no Iraque, ou insidiosamente pelo cinema, a publicidade e a televisão.

O caso do repórter Jayson Blair, que ludibriou editores do centenário e mais importante jornal dos EUA (The New York Times), ao falsificar mais de duas dezenas de reportagens, denota que algo não anda bem. Que leitura o Sr. faz dessa crise de credibilidade?

R. M. – Nunca vi alguém falar, mas os jornalistas talvez precisem de mais segurança de emprego para fazerem melhor seu trabalho. A corrida por frilas para sobreviver pode favorecer exageros. A função do jornalista é importante na sociedade e ele tem direito, como um professor ou juiz, a poder trabalhar sem receio de perder emprego ou frilas e com tempo para uma investigação. Sem precisar se encostar numa assessoria para sobreviver, escrevendo aquilo em que não acredita. Vivemos uma estranha época de ditadura das bolsas de valores, elas mandam enxugar empresas, geram desemprego e criam novos valores. Com o constante aumento do desemprego, quem comprará, dentro de cinco ou 10 anos, o que as empresas enxugadas colocarão no mercado?

A internet ainda ameaça os jornais impressos ou tudo não passou de prognósticos apressados de mentes apocalípticas no fim do século passado?

R. M. – O mundo da comunicação vive uma fase de transição e parece não haver dúvida quanto ao futuro dos jornais atuais. Dentro de 10 ou 20 anos, teremos meios eletrônicos comunicadores de noticiário. Não sou nenhum Wells ou Huxley, e nem tenho bola de cristal, mas a crise nos jornais europeus, que perdem milhares de leitores por ano, não deixa dúvidas. Logo os portais dos jornais serão mais importantes que a versão papel. A nova geração não sabe o que é sentar para ler um jornal ao lado do café. O rádio com microondas sobreviverá, mas os jornais serão outros, seja nos celulares ou nos telões da sala de jantar, para consultas rápidas com imagens, uma mistura de teletextos com televisão.

Quem manda na informação no Brasil?

R. M. – Aí, você que mora no Brasil deve saber melhor que eu. Os patrões da televisão e dos jornais? Os publicitários com suas volumosas verbas? Não acredito que seja o governo, porque no mundo atual o poder econômico, principalmente das multinacionais, substituiu o político. Os políticos viraram marionetes. Atrás do palco estão as mãos dos que comandam o espetáculo.

******

jornalista e videomaker, chefe do Departamento de Comunicação da UFPB, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP