Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ponto de admiração

João Cabral de Melo Neto escreveu: ‘Todo mundo aceita que ao homem / cabe pontuar a própria vida: / que viva em ponto de exclamação / (dizem: tem alma dionisíaca)’. Podemos nos dar ao luxo de ter alma dionisíaca os que escrevem para os jornais (reais ou virtuais), em particular, mas também os que escrevem artigos acadêmicos, livros sérios, ensaios filosóficos?

No Manual de Redação e Estilo do Estado de S.Paulo (que acabou por se tornar referência mesmo para profissionais não-jornalistas, como advogados, empresários, professores etc.), o verbete ‘ponto de exclamação’ diz o seguinte:

‘Tem valor eminentemente literário; no jornal só deve ser usado em casos muito especiais e quando se quiser dar muita ênfase a uma declaração ou enunciado’.

Os grifos são de Eduardo Martins, autor do Manual, e demonstram que o ponto de exclamação pode ser usado, mas com muita, muita parcimônia, se é que a expressão ‘eminentemente literário’ não exclui até mesmo essa possibilidade, pelo menos para os que não se consideram literatos.

O mesmo verbete no Manual da Folha de S.Paulo praticamente expulsa das suas redações o pobre sinal, e explica por quê:

‘Quase sempre desnecessário no texto jornalístico. Nunca use em título. Em texto noticioso, só use entre aspas na reprodução literal de declaração enfática. A força de um acontecimento jornalístico decorre de sua própria dramaticidade, não de recursos de estilo de qualquer espécie’.

A desestimular

No outro lado do oceano, a jornalista portuguesa Anabela Gradim escreveu um Manual de Jornalismo (disponível em www.bocc.ubi.pt/pag/gradim-anabela-manual-jornalismo-1.html) por ela definido como um ‘manual extremamente conservador’, em que o ponto de exclamação não tem vez:

‘O ponto de exclamação serve para diferenciar os enunciados de entoação exclamativa, empregando-se depois de interjeições, apóstrofes, ou do imperativo. Tratando-se de um sinal de pontuação que veicula ordens ou uma forte carga emotiva nunca deve ser utilizado pelos jornalistas em textos noticiosos ou respectivos títulos, excepto se se tratar de uma citação’.

Também em Portugal, o jornal Público criou um Livro de estilo, acessável em seu site (www.publico.pt/nos/
livro_estilo/index.html
), em que, uma vez mais, lemos o ‘desconselho’:

‘O ponto de exclamação é desaconselhado nos textos jornalísticos, salvo na reprodução literal de uma declaração enfática: ‘Sinto-me ofendido!’’

No campo acadêmico internacional, o circunspecto Editorial Style Guide da Universidade de Sheffield (Inglaterra) é taxativo:

‘Exclamation marks are generally to be discouraged. Enthusiasm can be shown in other ways’ (www.shef.ac.uk/content/
1/c4/31/86/StyleGuide.pdf
).

Sentimentalismo infantilóide

No jornalismo alternativo, um dos mais competentes blogueiros brasileiros, Rafael Galvão (www.rafael.galvao.org/), com base em algumas orientações redacionais de Elmore Leonard, conhecido escritor, roteirista e redator de publicidade norte-americano, não só concorda com uma de suas afirmações – ‘Keep your exclamation points under control’ –, mas aproveita para esmagar de vez: ‘O ponto de exclamação é o crachá da incompetência’.

No campo da publicidade, a agência DPTO oferece em seu site (www.dpto.com.br/redacao/estilo.htm) algumas ‘Dicas de estilo’, esclarecendo que redator de propaganda não é escritor, mas ‘também tem lá o seu estilo’. Uma das dicas refere-se ao ponto de exclamação com uma tímida simpatia:

‘Ponto de exclamação: uma vítima do preconceito dos publicitários.

‘Para não ser radical e falar ‘evite’, é preferível dizer que o melhor é ter bom senso. No mercado publicitário convencionou-se que os títulos terminam com ponto final. É claro que em alguns casos e quando o próprio ponto de exclamação faz parte da idéia, você tem que usar o dito cujo. Na prática, o ponto de exclamação é claramente discriminado pelos redatores’.

Um livro clássico de William Zinsser (On writing well) sobre produção de textos não-ficcionais observa que devemos ter muito cuidado com este sinal, pois transmite a sensação de um sentimentalismo exagerado, meio infantilóide, ou pode incomodar o nosso leitor, se quisermos indicar-lhe com o ponto de exclamação o quanto estamos sendo engraçados ou irônicos, descoberta que o leitor é inteligente o bastante para fazer sozinho. Em suma, não há por que usar esse sinal-símbolo para forçar uma reação emocional nos leitores…

Ingênua, autoritária ou vazia

A julgar pelas recomendações acima, publicitários, jornalistas e produtores de textos ‘sérios’ e ‘profissionais’ não têm, em geral, uma convivência muito boa com este sinal gráfico, cuja função é expressar sentimentos ou sensações meio perigosas, talvez, para a confiabilidade de um enunciado: surpresa, assombro, admiração (por isso ele também é chamado ‘ponto de admiração’), incredulidade, alegria, indignação, ironia, dor…

Contudo, o ponto de exclamação merece todos os elogios!! O ponto de exclamação como recurso estilístico legítimo… até mesmo para os jornalistas que, segundo Nietzsche, vieram substituir os professores universitários…

De fato, abolir este sinal algo tem a ver com uma atitude ‘sensata’ de anticelebração, e faz com que o produtor de textos pareça gente de respeito, incapaz de deslizes emocionais. Celebrar o que, afinal de contas? Pense um pouco: admirar-se com o quê? Com as notícias de sempre, com a redundância dos males, com a reiterada constatação da mesquinhez humana?

O ponto de exclamação, no entanto, é passional, e sempre consegue admirar-se, ainda que tal admiração pareça ingênua, ou mesmo autoritária, ou vazia. Ao ponto de interrogação (de que Drummond fez uso abundante em alguns poemas, ele que, no fim da vida, declarava já não ver o menor sentido para o ponto de exclamação) adere-se a imagem do filósofo, daquele que questiona, que duvida, que lança o anzol ‘?’ no mar das perplexidades e, com paciência, fisgará alguma resposta, ou não…

‘No Rio o sr. Getúlio Vargas!’

O ponto de exclamação como ‘borduna do idioma’ (definição de Augusto Nunes), como clava indígena, tem algo de violento, de primitivo, de espontâneo demais. Exclamar é clamar, gritar, bradar, chamar em alta voz. O ponto de exclamação é ponto de aclamação, de declamação, de reclamação, de proclamação, de conclamação. Incomoda realmente os ouvidos mais sensíveis. Como incomoda também, para os menos expansivos, o exagero da língua espanhola que emprega o ‘signo de exclamación’ também no início da frase, invertido: ‘¡’.

O maior defensor do ponto de exclamação no jornalismo brasileiro (sobretudo nas manchetes!) e na língua portuguesa foi o teatrólogo Nelson Rodrigues. Homem de paixões e obsessões, que bem se conhecia e por isso se definia como romântico – ‘Sou um pierrô, sou um romântico. (…) o romântico piegas’ –, Nelson vivia em estado de ponto de exclamação: seu fanatismo futebolístico (pelo Fluminense!), suas afirmações paradoxais, seu vanguardismo conservador, seus ‘óbvios ululantes’, suas frases redundantes, suas definições definitivas (‘cretinos fundamentais’, ‘grã-finas com narinas de cadáver’…), seu anticomunismo exacerbado, suas posições patéticas, seus exageros verbais. É lendária a sua reação contra os ‘idiotas da objetividade’, os que, segundo a concepção moderna de um jornalismo objetivo (estamos na década de 1950), encaravam como supérfluo o ponto de exclamação:

‘A busca da ‘objetividade’ significava a eliminação de qualquer bijuteria verbal, de qualquer supérfluo, entre os quais os pontos de exclamação das manchetes – como se o jornal não tivesse nada a ver com a notícia. Suponha que o mundo acabasse. O Diário Carioca teria de dar essa manchete sem um mínimo de paixão. Nelson, passional como uma viúva italiana, achava aquilo um empobrecimento da notícia e passou a considerar os ‘copy-desks’ os ‘idiotas da objetividade’’. (Ruy Castro, O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues)

Assis Chateaubriand, embora vivesse o jornalismo com paixão e engajamento, exercitou seu pragmatismo ao máximo e caía na categoria de um ‘idiota da objetividade’, ao defender uma imprensa brasileira próxima ao modelo norte-americano, supostamente mais objetivo, a prática do noticiário ‘limpo’, calcada numa técnica própria de escrever (Pompeu de Souza e Carlos Lacerda, grandes jornalistas na época, chegaram a produzir os primeiros manuais de redação). E eis o que escreveu Dr. Chateaubriand sobre o malfadado ponto de exclamação:

‘O ponto de exclamação se tornou, nos vespertinos e matutinos sensacionalistas cariocas, o ponto final obrigatório de qualquer manchete. Se um repórter quer dizer que chegou ao porto o Astúrias, ele escreve em manchete de oito colunas: ‘Chegou o Astúrias!’. Desce o presidente de Petrópolis a fim de presidir uma reunião do ministério. Fato ordinário da atividade administrativa do país. Logo os vespertinos anunciam: ‘No Rio o sr. Getúlio Vargas!’’. (Fernando Morais, Chatô, o rei do Brasil)

Uma grande perda!

Ao contrário, Nelson Rodrigues acreditava que os jornais tinham de usar exclamação em seus títulos, entretítulos e textos, como forma de expressar emoção e gerar comoção. Insurgia-se contra a frieza daquela nova imprensa. Numa entrevista a Geneton Moraes Neto, que lhe perguntou se o leitor comum sentia falta do ponto de exclamação, respondeu com uma história, em que o antigo jornalista faz qualquer negócio para emocionar, comover, dramatizar! Para matar nossa fome de mentira! Ou nossa sede de teatro, como dizia Murilo Mendes!

Nelson jamais poderia concordar com aquela famosa recomendação do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald a jovens escritores: ‘Elimine todos esses pontos de exclamação. Um ponto de exclamação é como rir das próprias piadas’. Pois se é justamente nesse rir de si mesmo, nesse rir (uma outra forma de chorar) da piada e do abismo de estar vivo, se é nessa reação tragicômica que se manifesta o ser dionisíaco!

Não se conformava, e repetia que se o copidesque daqueles tempos visse, pela janela, uma bomba atômica caindo, teria tempo de redigir ‘caiu uma bomba atômica’, sem acrescentar um ponto de exclamação, um toque de espanto sequer. Nelson não perdoava, por exemplo, que o assassinato de John Kennedy tivesse provocado, no Jornal do Brasil, uma manchete sem emoção, infensa ao espanto, ao horror. O curioso é perceber que, de certa maneira, os dois argumentos se complementam. Não é recomendável abrir as comportas da emoção e, usando o ponto de exclamação a torto e a direito, banalizá-lo, mas seria e é uma grande perda para a linguagem jornalística (e não só a jornalística) riscar o menor assomo de sentimento.

Um pouco mais de vinho!

Saindo um pouco do mundo da imprensa, vejamos o que escreveu uma poeta do mundo virtual, Luciana do Rocio Mallon (www.ferool.info/mallonp.htm), sobre o ponto de exclamação, utilizando-se da etimologia visual:

‘Ele é um cometa de ponta cabeça,

Que não deseja que ninguém se esqueça…

De um sentimento de espanto e de loucura…’

A poeta encontra para o ‘!’ uma imagem sugestiva. A força do cometa, sua passagem chamativa, seu caráter premonitório, sua imagem de serpente de fogo ou de estrela fumegante (associações que os habitantes do antigo México faziam), espanto, loucura…

Essa e outras possíveis imagens são significativas, nada impede que as multipliquemos. Contudo, a origem do sinal gráfico é outra, e igualmente interessante. Trata-se de um logotipo para a exclamação latina , denotadora de alegria ou dor (podemos traduzir por ‘viva!’, ‘ah!’, ‘oh!’), um ‘I’ maiúsculo sobre um ‘o’ minúsculo – ‘!’. Pronuncia-se ‘iô’, como bem esclareceu Fernando Pessoa, ao traduzir o ‘Hino a Pã’, do mestre esotérico Aleister Crowley:

‘Vibra do cio subtil da luz,

Meu homem e afã

Vem turbulento da noite a flux

De Pã! Iô Pã!

Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além

Vem da Sicília e da Arcádia vem!

Vem como Baco, com fauno e fera

E ninfa e sátiro à tua beira,

Num asno lácteo, do mar sem fim,

A mim, a mim!’

Sinal de alegria, portanto, de exaltação, de comemoração. E de dor, sofrimento e raiva. Um sinal carregado de paixão, de capacidade para admirar-se com a vida. Sinal que, no entanto, muitos desejariam enterrar vivo… E que ressuscita todas as vezes em que alguém bebe um pouco mais de vinho!

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Doutor em Educação pela USP e escritor