Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por dentro da ‘Obra’

Acaba de ser lançado um livro corajoso e inusitado. Os autores são três ex-membros do Opus Dei (‘Obra de Deus’), e escrevem sobre a realidade interna, sobre o dia-a-dia de uma das mais polêmicas instituições da Igreja Católica.

O romance O código da Vinci deu a pauta no ano passado, e um filme que será lançado em maio do ano que vem confirmará o interesse das multidões pela história bem contada. Mas neste livro, Opus Dei: os bastidores, de relatos verídicos e estarrecedores, a realidade supera em muitos pontos a ficção. O livro de Dan Brown é um jogo de imaginação, um exercício de best-seller bem-sucedido, com os ingredientes típicos, e quem começa a ler fica preso pela narrativa fabulosa.

Best-sellers vão e vêm. E sempre que houver religião no meio, pode acreditar que o povo irá atrás. O preocupante é saber que existe uma instituição religiosa real, aprovada pelo papa, com um fundador canonizado (o espanhol São Josemaría Escrivá de Balaguer), com casas montadas em bairros residenciais de várias cidades importantes no Brasil e no mundo, que está à solta na nossa sociedade, acima de qualquer fiscalização.

Uma ‘obra divina’ que consegue fazer coisas inimagináveis como obrigar os seus membros a não verem TV, a lerem jornais censurados em suas sedes, a nunca irem ao cinema ou ao teatro, as mulheres dormem em tábuas (os homens não…), universitários e intelectuais dos seus quadros aprendem a perguntar aos dirigentes se podem gastar 30 reais na compra de um livro (e geralmente a resposta é ‘não’), gente que em pleno século 21 usa cilício e disciplinas para dominar o corpo. Mais? Jovens que passam a desprezar seus familiares em nome de uma ‘família sobrenatural’, e abrem mão de carreiras profissionais por serem destinados a trabalhos internos, e que, achando estar vivendo sua vocação, entram aos poucos num redemoinho de obrigações extenuantes ao ponto de muitos deles acabarem caindo em profunda depressão.

Propaganda enganosa

Os autores são o médico cardiologista Dario Ferreira, o professor titular da USP Jean Lauand e o advogado Marcio Fernandes da Silva. Eles foram numerários, grupo de elite dentro da instituição. Somando o tempo em que os três permaneceram no Opus Dei temos ao todo 43 anos de experiências. Conseguiram sobreviver para contá-las.

O livro é uma bem tramada reunião de dados históricos sobre o Opus Dei no Brasil (citando nomes conhecidos como o do advogado Ives Gandra da Silva Martins, do governador Geraldo Alckmin Filho, do bispo Rafael Llano Cifuentes, e do articulista do Estadão, Carlos Alberto Di Franco), de análises penetrantes sobre o modus operandi da seita, e de testemunhos de ex-membros que depois de décadas de isolamento e sofrimento se encontraram virtualmente num site de nome muito sugestivo: OpusLivre.

É urgente que, além de lerem o livro aqui brevemente resenhado, pais, professores, jornalistas, padres e bispos conheçam os relatos publicados ali. Ao contrário do que acontece em ordens religiosas da igreja católica, em que os ex-membros recebem ajuda econômica e psicológica no momento em que decidem tomar novos rumos, e continuam em contato com a instituição à qual prestaram serviços, os ex-membros do Opus Dei saem desamparados emocional e economicamente, muitos perdem a fé em Deus, e passam a ser desprezados como traidores pela instituição em que entregaram com generosidade às vezes toda a sua juventude.

Um fenômeno religioso que precisava ser analisado. Difícil análise, que somente quem viveu muito tempo lá dentro poderia fazer. A linguagem manipuladora, a aparente ortodoxia doutrinal, a seriedade que seus membros inspiram, tudo leva a crer que se trata de uma organização confiável em tempos de corrupção. E o que esses autores vêm nos contar, com uma força de verdade impressionante, é que se trata de um golpe de propaganda enganosa jamais visto.

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Química e professora universitária