Em Guernica, Pablo Picasso pintou em traços fortes o horror da guerra. A tela é imensa, um painel angustiante e perturbador. Os olhos arregalados do cavalo não saem da nossa cabeça. As mãos pedindo ajuda parecem se mover. A dor, o medo, a guerra estão ali, emoldurados. A arte conta, registra a história.
Algumas imagens povoam com tanta força nossa memória que mais parecem tatuadas em nossas mentes. Com Guernica, é assim. Mas já foi a época em que a pintura representava o mundo. Hoje, há outros instrumentos. Mesmo assim, algumas imagens parecem gravadas em nossos cérebros.
O rapaz que enfrenta sozinho a fila de tanques de guerra em Pequim é a ilustração da coragem. A menina vietnamita que foge nua num campo arrasado é a estampa da guerra. Há uma criança esquálida agachada na savana. Ela é observada pelo abutre a poucos metros de distância: é uma presa, mas também é a projeção do abandono, da fragilidade, do descaso.
As três cenas são bastante conhecidas não apenas pela carga emotiva que as diferencia, mas também pelo fato de que as reconhecemos porque muito circularam por nossas sociedades. Assistimos pela TV ao jovem chinês enfrentar o exército em meio ao massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, assim como vimos a menina com as costas queimadas pelo napalm, no final da Guerra do Vietnã. A fotografia da criança anônima sudanesa – espreitada pelo abutre – foi carimbada em jornais e revistas e ainda se repete por sites na internet.
Afinal, o que essas imagens têm de especial? Por que não nos esquecemos delas? O que nos faz lembrar essas cenas arrebatadoras é o fato de que os meios de comunicação multiplicaram as condições para que essas imagens circulassem sem fronteiras, causando grande impacto. A mídia facilitou nosso acesso a esses fatos; o jornalismo permitiu que soubéssemos deles e que os guardássemos conosco.
O jornalismo e a realidade que nos cerca
Não é exagero dizer que grande parte do que chamamos de realidade nos chega pelos meios de comunicação. Seja o tsunami que varre a Indonésia, seja o assalto na esquina de casa. Atualmente, a mídia ocupa lugar central na vida de todos. Ajuda a moldar nosso imaginário, estabelecer prioridades, decidir e descartar opções. Essa onipresença não comporta apenas um poder avassalador de formação de opiniões, de registro da história recente ou de definição de relevâncias sociais. O poder dessa centralidade traz também muitas preocupações de natureza moral e ética. Onde ficam os limites, afinal?
Foi correto o repórter fotográfico Kevin Carter congelar a imagem da criança negra vulnerável ao abutre? O que ele deveria fazer naquele momento: espantar a ave predadora ou clicar e denunciar a miséria humana ao mundo?
Em nome do que os jornalistas podem se apossar da imagem de alguém em situação de tanta fragilidade quanto à da refugiada que corre das bombas? Por que é importante flagrar o cidadão comum que se contrapõe ao arbítrio, mesmo que não se saiba o nome dele? Essas e outras perguntas estão diretamente ligadas às condutas dos profissionais envolvidos nessas coberturas. Referem-se ao questionamento dos limites morais do jornalismo e da mídia em geral. Aqui, o nome do jogo é ética.
Porque ostentam um magnífico poder, os meios de comunicação têm uma responsabilidade igualmente gigantesca. É a contrapartida.
Os meios de comunicação reúnem diversão, entretenimento e informação. Os compromissos éticos de quem apresenta um programa de auditório na TV são distintos de quem está na bancada do telejornal. Por isso, os debates em torno da conduta dos jornalistas e o próprio papel do jornalismo no imaginário social assumem proporções mais preocupantes, já que o estatuto de verdade de seus produtos e serviços é mais ambicioso que o dos programas que alegram as tardes de domingo. Claro que animadores de auditório também precisam ter responsabilidade sobre o que veiculam em seus programas, mas com jornalismo não se brinca.
Um assunto para todos, jornalistas ou não
No jornalismo, a ética é mais que rótulo, que acessório. No exercício cotidiano da cobertura dos fatos que interessam à sociedade, a conduta ética se mistura com a própria qualidade técnica de produção do trabalho. Repórteres, redatores e editores precisam dominar equipamentos e linguagens, mas não devem se descolar de seus comprometimentos e valores. Podem tentar suspender suas opiniões em certos momentos, mas, se por acaso esquecerem suas funções e suas relações com o público, vão colocar tudo a perder.
Nas redações, há quem diga que o jornalismo se define por uma ética. Se é exagero ou não, o que temos é que o jornalismo é uma atividade humana que se planta e se espalha na relação entre os humanos. A ética é algo que só existe nesse entremeio, na distância entre as pessoas. É uma exclusividade humana, mas isso não é nem rima nem solução. Quer ver? Mentir a um paciente pode não ser um problema para um médico, mas uma forma de poupá-lo no estágio terminal. Para um jornalista, abandonar o compromisso com a verdade não é um deslize, é uma falha ética e grave. Então, há especificidades no campo da ação humana, da conduta ética. O jornalismo – a exemplo de outras profissões – tem suas particularidades, e não só é necessário conhecê-las como também refletir sobre elas, atualizando-as diariamente. Como se faz nas páginas dos jornais com as notícias.
Isso não interessa só a quem vive dos fatos. Importa a todos. As sociedades, os governos, as organizações, todos são afetados pela mídia. Os estilhaços de realidade que nos bombardeiam pelos meios de comunicação beneficiam (ou prejudicam) a todos. Ninguém está imune e é por essa presença que a ética no campo do jornalismo deve preocupar não só quem produz informação, mas também quem a consome.
Historicamente, as sociedades tornaram-se mais complexas e as atividades profissionais – entre elas, o jornalismo – precisaram acompanhar esse compasso. Consumimos notícias com cores fortes e tons pastéis, com traços rápidos e contornos suaves. Os retratos da vida e da morte são lançados diante de nossos sentidos. Com velocidade e força. Alguns relatos se prendem à nossa memória e passam a fazer parte de nós mesmos, como se fossem uma porção de nossa ótica ou de nossa ética. Isso não é pouco.
É claro que Picasso não fez jornalismo com Guernica. Fez arte. Mas também fez denúncia social. Jornalismo não é arte, mas sim trabalho duro, responsável e imprescindível para o desenvolvimento das sociedades. Apesar de retratar o horror em preto e branco, Picasso sabia que o mundo tinha mais cores na sua palheta. No jornalismo, a ética ajuda a lembrar o profissional de que há mais matizes entre o fato e o seu relato.
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O autor
Rogério Christofoletti é professor e pesquisador da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), onde atua no curso de Jornalismo e no Mestrado em Educação. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), é membro do Conselho Administrativo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Como jornalista, atuou nas editorias de Polícia, Política, Economia, Geral e Cultura de jornais de São Paulo e Santa Catarina. Foi ainda repórter de revistas especializadas em Transporte, Logística e Infra-Estrutura do Paraná. Entre 2002 e 2005, foi vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. É autor e organizador de livros nas áreas de Jornalismo e Educação, bem como de artigos em periódicos científicos no Brasil, Portugal, Peru, Equador e Colômbia.
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Jornalista e professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali)