Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Por que o jornalista não tem o direito de renunciar à própria liberdade

A ideia de Jean-Paul Sartre de que estamos ‘condenados a ser livres’ poderia
servir de epígrafe a esta apresentação. Numa passagem bastante citada de O ser
e o nada
, de 1943, ele afirma: ‘Estou condenado a existir para sempre
para-além da minha essência, para-além dos móbeis e motivos de meu ato: estou
condenado a ser livre. Significa que não se poderiam encontrar outros limites à
minha liberdade além da própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos
livres para deixar de ser livres’ [Jean-Paul Sartre, O ser e o nada: ensaio de
ontologia fenomenológica
, 17ª ed., Petrópolis, Vozes, 1997, p. 543-544].


Em síntese, o homem não tem a liberdade de escolher não ser livre, pois mesmo
a escolha de não fazer nada já constitui uma escolha.


A situação daquele que se encontra condenado à liberdade é por excelência a
situação do jornalista em nossa era. Mesmo assim, a frase de Sartre não entrou
aqui como epígrafe. E por quê? A explicação parecerá produto de preciosismo e,
no entanto, é bem elementar. Ela poderia ter sido a epígrafe e não foi porque,
se fosse, deixaria no ar a impressão de que este livro finca raízes no
existencialismo, o que não seria exato. Este livro não guarda intenção de
filiar-se ao existencialismo e, por isso, esta apresentação começa pela menção a
Sartre, mas não lhe reivindica a tradição. Não apenas para conforto dos
existencialistas, que não precisarão se incomodar, mas principalmente para
sossego do leitor, que está poupado de hermenêuticas filosóficas paralelas,
periféricas e desnecessárias.


Ética e liberdade


De todo modo, como Sartre falou antes algo que muito se aproxima do que se
afirma e se reafirmará aqui, há que ser lembrado com todas as letras, ainda que
não haja, nesta obra, a mínima vocação para especular se a existência precede a
essência ou se a consciência é dotada de essência. Essas questões são exteriores
ao que se pretende desenvolver nas páginas que se seguem, o que não elide, de
todo modo, a proximidade entre uma coisa e outra, isto é, entre o homem
sartreano, condenado à liberdade, e o jornalista, que tem o dever de ser
livre.


Mais ainda: o jornalista não tem o direito de abdicar de sua liberdade. Para
que se extraia mais clareza dessa máxima, e já adiantando em que termos ela não
se confunde com o existencialismo, podemos subdividi-la em três proposições:


• Os jornalistas e os órgãos de imprensa não têm o direito de não ser livres,
não têm o direito de não demarcar a sua independência a cada pergunta que fazem,
a cada passo que dão, a cada palavra que escrevem.


• Cultivar, exercer e tornar cada vez mais explícita a liberdade com que
exercem o seu ofício é o primeiro e o mais alto dever dos profissionais da
imprensa.


• Os jornalistas devem recusar qualquer vínculo, direto ou indireto, com
instituições, causas ou interesses comerciais que possa acarretar – ou dar a
impressão de que venha a acarretar – a captura do modo como veem, relatam e se
relacionam com os fatos e as ideias que estão encarregados de cobrir.


O leitor que já conhece o debate sobre ética na imprensa há de se perguntar,
com razão: Ora, mas que novidade existe nisso?


Garantia de qualidade


Esse leitor dirá que, ao menos aparentemente, isso tudo já foi dito e
repetido. O dever de ser livre aparece em todos os textos sérios sobre o
assunto. Na maioria deles, a liberdade é pensada como um direito – mas em vários
ela já aparece como dever. Sem dúvida, exigir da imprensa que ela seja livre é
uma demanda tão antiga quanto a própria democracia. Mas, se nos detivermos sobre
esse ponto com um pouco mais de atenção, veremos que existe, sim, um dado novo
aí. É uma novidade pouco visível, mas, uma vez detectada, ela se descortina em
proporções inéditas. A realidade atual da imprensa requer de nós que pensemos o
velho tema da liberdade com uma ênfase diferente, a partir de um pequeno
deslocamento do ponto de vista. Os efeitos dessa mudança de prisma se revelarão
profundos, e nos conduzirão a perceber que, em tempos de fortes transições na
mídia, o imperativo de ser livre não é apenas um dos deveres do jornalista, não
é meramente um dever entre vários outros: é o primeiro entre todos os
deveres
. Logo, mesmo que também essa formulação já tivesse aparecido antes,
ela nunca teve, como agora, um significado tão determinante.


Antes de explicar por que esse dever, e não outro, é o primeiro, cuidemos de
trocar em miúdos o que significa liberdade no campo prático do jornalismo. Para
começar, não é a mesma coisa que liberdade na filosofia. O dever de ser livre,
aqui, é algo que se traduz nas condições concretas de exercício da função.


Essas condições são postas por elementos materiais e, por isso, passíveis de
verificação pelo público. O fato é que só assim elas têm sentido. A sociedade
tem o direito de contar com os serviços de jornalistas e de veículos noticiosos
que sejam ativamente livres, assim como tem direito a hospitais que sejam
higienizados e a escolas em que os professores não pratiquem a impostura. É
nessa perspectiva – restrita, portanto – que a liberdade será tratada aqui: ela
é dever para o jornalista na exata medida em que corresponde ao serviço que é um
direito para o cidadão.


Essa abordagem restrita da palavra liberdade e, por assim dizer, mais
técnica, porque circunscrita aos procedimentos de um ofício cujo propósito é
informar a sociedade e mediar o debate público, não pretende suprimir a reflexão
sobre as diversas outras dimensões do seu significado dentro do jornalismo, nem
pretende reforçar o discurso dos que desprezam a envergadura metafísica do tema.
Não existe aqui o propósito de elidir as implicações ideológicas que muitas
vezes se ocultam sob o manto de liberdade formal e que concorrem para
naturalizar a exclusão de pessoas ou de grupos sociais do acesso devido à
informação e à expressão de seus pontos de vista. Ao contrário. Essas
implicações que chamo de ideológicas, ainda que o termo esteja gasto, são objeto
da crítica de mídia em seu sentido mais amplo, e, quanto a elas, a sociedade
precisa se manter permanentemente atenta. Eu mesmo, em trabalhos anteriores, já
me dediquei bastante a essa crítica – e a ela ainda voltarei outras vezes. Mas,
desta vez, procurei não fazer dessas outras dimensões da liberdade o eixo
central dos capítulos, ainda que elas apareçam ocasionalmente em vários trechos.
A preocupação que norteia este livro tem seu foco na natureza de um fazer
profissional específico e, aí, procura vislumbrar os modos pelos quais a
liberdade pode se materializar – para dar garantia de um serviço de qualidade ao
público, e não para servir de regalia os profissionais do ramo. Trata-se de
pensar em que níveis a liberdade pode ser verificada, aquilatada (ainda que ela
não seja ‘quantificável’) e, consequentemente, em que termos ela pode ser
reclamada pelo público.


A premissa da independência


Na imprensa, a liberdade encontra de fato uma materialização: ela se traduz
no grau de independência dos veículos informativos (e de seus operadores)
em relação aos interesses organizados, sejam eles econômicos, políticos,
religiosos, sindicais, científicos e assim por diante.


Note-se que a palavra independência é nuclear. Sabemos que, no mundo
contemporâneo, a noção de independência vem se confrontando com diversas
relativizações. A própria soberania nacional é chamada a encontrar novas
acomodações diante do crescimento da incontornável interdependência entre os
países.


Os Estados, que já não têm a alternativa de fechar-se para dentro, murando as
fronteiras com o exterior, são chamados a entendimentos multilaterais de toda
sorte. Nesse mundo, o conceito de independência vai se equilibrando em relação
ao conceito de interdependência. A qualidade de um depende da qualidade do
outro. Só existe interdependência profícua entre duas nações quando a
independência de cada uma está assegurada e quando a liberdade – de escolha –
não é peça de retórica, mas realidade.


Para a instituição da imprensa, igualmente, a tônica da interdependência está
presente: a imprensa se relaciona com outros campos da comunicação, como a
publicidade, o entretenimento, os governos, as assessorias de imprensa, as ONGs
etc. Os sistemas se conectam em relações que envolvem interdependências
recíprocas, mas, sobretudo aí, há que se observar a premissa da independência em
alto grau – caso contrário, a interdependência será apenas um termo eufemístico
para esconder a reles submissão de um sistema a outro. Também na imprensa,
portanto, a palavra independência é nuclear. Aliás, hoje, para o jornalismo, ser
independente talvez seja ainda mais necessário.


É possível medir o grau de autonomia?


De que maneira o público poderá se assegurar de que os meios informativos
exercem e prezam sua própria independência?


Dessa pergunta depende a qualidade da informação que ele, público, recebe. É
verdade que a simples análise da qualidade informativa de um veículo, ao longo
do tempo, funciona também como um método de avaliação do seu grau de
independência. Só há informação de qualidade no palco se a independência for a
regra nos bastidores. Mas dizer isso é dizer pouco. É hora de procurarmos
detalhar os critérios de verificação. Entre outros benefícios, esse detalhamento
poderá render orientações mais precisas para as redações interessadas em
fortalecer a liberdade no seu interior.


À medida em que mergulhamos no detalhamento, revela-se mais nítida uma nova
face da aderência entre estas duas palavras distintas, independência e
liberdade. Pode-se dizer que, posta assim, em termos concretos e verificáveis, a
independência formal e material fornece os pré-requisitos para que a liberdade,
em suas diversas dimensões (até mesmo filosóficas), seja cultivada e
radicalizada, sempre. A liberdade tem isto de muito curioso: ela só existe
quando se expande. Se a imprensa não é capaz de expandi-la, a imprensa não é
livre.


Como já foi dito, o grau de independência pode ser examinado por meio de
indicadores objetivos. Eles não resolvem integralmente a complexa equação da
independência como aquela que materializa as bases da liberdade, mas podem
apontar de modo confiável alguns níveis da autonomia dos veículos e de
seus jornalistas, autonomia da qual depende, por sua vez, o direito do cidadão
de contar com uma imprensa livre. Esses indicadores não deveriam ser vistos como
fórmulas ou matrizes em planilhas econométricas – não se propõe, aqui, uma
contabilidade ‘independenciométrica’. Eles emergem dos valores assimilados, ou
em vias de assimilação, na cultura política em relação aos padrões de informação
que a sociedade produz e consome.


Agendas, pautas e edições


Por certo, esses podem – e, atualmente, devem – ser detalhados em estudos
sobre qualidade da imprensa, mas só adquirem vitalidade à medida que se
incorporam à cultura e ao hábito de ler, receber, processar e questionar as
notícias, as ideias e as opiniões no espaço público. Nesse sentido, o esforço de
esmiuçá-los não se faz necessário aqui – isso poderia ser feito num projeto de
pesquisa específico. Basta dizer, por ora, que esses indicadores podem brotar de
interrogações cotidianas. Exemplos: Quem paga as contas da publicação? Quem paga
os jornalistas? A quem presta contas a redação? Se tratadas como indicadores, ou
como base para indicadores, essas interrogações dizem muito.


Outros indicadores podem surgir da análise nominal da carteira dos
anunciantes de um dado veículo. Se houver predominância de um grupo particular
de anunciantes, de tal forma que ele tenha poder de comprometer o faturamento do
veículo, a independência está ameaçada e, portanto, a liberdade está
comprometida. O mesmo objetivo pode ser alcançado, aí por outro ângulo, a partir
de um levantamento das fontes (às vezes recorrentes) de uma publicação.


Elas refletem a multiplicidade do universo que aquela publicação se
compromete a cobrir ou refletem, apenas, uma tomada parcial desse universo? Se a
resposta for afirmativa, outra vez, algo da independência foi corroído no
caminho, pois se notará, com facilidade, um desnível entre o universo que se
promete cobrir e a parte dele que efetivamente é coberta.


Tudo isso ajuda a precisar o grau de independência e, por decorrência, a
solidez dos pré-requisitos para o cultivo e para a expansão da liberdade. Por
esse caminho, podem-se averiguar a capacidade e a autonomia das redações para
estabelecer suas agendas, suas pautas e suas edições sem ter que prestar contas
a ninguém que não seja o seu público.


O ambiente essencial


É nesse sentido que a abordagem que este livro dedica à liberdade não se
confunde com a abordagem da mesma palavra em outros domínios, como a
psicanálise, que pensa a liberdade pela responsabilização do sujeito, o direito,
que consolida os direitos fundamentais, ou a filosofia. Como já foi dito, de
todos esses campos brotam elementos para o entendimento dos valores essenciais
do jornalismo, pois de todos eles vêm luzes que se enfeixam no humano –
categoria à qual pertence, ainda que não pareça, o jornalista.


No campo específico da imprensa, o dever da liberdade assenta seus
alicerces na independência material e institucional que o protege contra
interesses estranhos à missão de informar. Essa missão requer objetividade e
espírito crítico e, nessa medida, é ela quem exige a observância dos
pré-requisitos formais e materiais da independência. Um jornalista que cumpre o
dever da liberdade não é obrigatoriamente um ser iluminado, emancipado das
paixões, dotado de inteligência superior, nada disso. Ele é apenas um
profissional que não responde a outros senhores por baixo do pano, estejam esses
senhores escondidos numa conta bancária ou mesmo em sua consciência. Sim, na
própria consciência: um jornalista que se vale da profissão para,
conscientemente, propagar pontos de vista religiosos ou partidários por meio de
subterfúgios não é um profissional atento ao seu dever da liberdade.


Do mesmo modo, não é livre aquele que aceita mentir para a audiência com
vistas a agradar o patrão: quem firma com seu empregador um pacto que ofende a
ética profissional, um pacto que não pode ser declarado publicamente, trai o seu
público. Pelo mesmo motivo, não está à altura do ramo em que atua um patrão da
imprensa que cobre condutas ocultas de seus profissionais. A liberdade, em
jornalismo, não deveria mais ser concebida como um ideal, como se fosse uma
daquelas metas que se buscam alcançar, mas que não se podem atingir plenamente
(como são a justiça, o equilíbrio ou a verdade): ela só tem sentido se for
entendida como o ambiente vivo do fazer diário daqueles que exercem a função
social de informar o cidadão.


A verdade factual


Voltemos agora à pergunta exposta no início desta apresentação: por que a
liberdade, assim considerada, pode ser vista como novidade? Porque ela nos
permite reconfigurar o entendimento desse ofício, não a partir daquilo que
gostaríamos que ele fosse, mas a partir dos desafios que se abriram diante dele
de uns tempos para cá.


O dever de ser livre se converteu em algo tão central que, se não observado,
todos os demais princípios da missão de informar resultam prejudicados. Todos, a
começar pelo dever da verdade.


Se não for livre, escancaradamente livre – uma vez que se trata de ser livre
em público, para o público, segundo padrões públicos –, o repórter e o veículo
para o qual ele trabalha estão impossibilitados de iniciar sua busca pela
verdade dos fatos. A verdade jornalística – efêmera, transitória, precária, como
sabemos – só se revela aos que não servem a outro senhor que não a ela
própria.


Ainda que soe um tanto esotérica demais, essa é uma noção eminentemente
prática. A verdade, no jornalismo, é uma construção discursiva, uma construção
social que, para ser viável, supõe níveis específicos de independência dos seus
mediadores (ou seja, os seus operários intelectuais). Dizer que a verdade no
jornalismo é uma construção não significa dizer que ela seja um ato arbitrário,
discricionário do profissional.


Ela não se subordina a intencionalidades de uns ou outros, por mais que sua
construção esteja permeada de intenções, algumas confessáveis e outras não. Ela
depende da verificação dos fatos e, depois, ela também será verificada pelo
próprio curso dos fatos.


Ela decorre da apuração, da reportagem pela qual seus profissionais
investigam os fatos, mas também decorre do embate que terá com os fatos, em
retorno. Os personagens das notícias são seus vigilantes: eles a desmentem e
também podem validá-la constantemente, sempre com a participação do público.


As mentiras na imprensa podem perdurar por algum período, mas, se as
condições de independência existem, ainda que minimamente, o debate público
tende a corrigi-las e a desautorizá-las. É nesse sentido que a verdade factual
do noticiário resulta de uma construção social. Aí, a manipulação, que
efetivamente acontece, entra como burla, não como regra. A verdade no
jornalismo, em seu processo de construção social, inclina-se a repelir
falsificações; ela conspira contra as premeditações do manipulador, que, de seu
lado, conspira contra ela.


Confiabilidade e credibilidade


Aquilo a que chamamos de verdade factual não existe previamente ao relato que
a institui, ou seja, ela não está posta fora dos domínios da narrativa que a
constitui, pois adquire a sua existência dentro do discurso jornalístico.
Ela não vive sozinha na natureza, à espera de alguém que venha desvendá-la. Ela
não é como aquele tipo de verdade que a ciência já quis descobrir e, em alguns
casos, até descobriu, de fato (registremos que, também na ciência, a verdade só
pode ser detectada dentro do campo do seu próprio discurso): ela só se manifesta
na intersubjetividade, no bojo de relações sociais e linguísticas entre sujeitos
que se leem, se falam e se interrogam incessantemente. Por isso mesmo é que, aos
mediadores desse processo, cada vez mais complexo, impõe-se o dever de despir-se
de interesses outros que não seja o de informar o cidadão sobre aquilo que ele
tem o direito de saber e conhecer. Em suma, a verdade factual só se constrói
quando as premissas da liberdade são cumpridas, mesmo que rudimentarmente. É uma
questão de método.


O advento avassalador das mídias digitais e a crescente diversidade de vozes
presentes no rumor da imprensa não revogaram, ao contrário do que muitos
imaginam, o dever da liberdade. As novas tecnologias o tornaram ainda mais
premente, isso sim.


Não é difícil de demonstrar por quê. Se cresce o volume de informação nos
mais diferentes suportes, se as relações públicas transformam empresas e
organizações dos mais diversos setores em ‘provedoras de conteúdo’ na rede
mundial de computadores, se cada vez é mais abundante a oferta de textos,
imagens e sons, com dados e opiniões para cada vez mais gente de cada vez mais
países, também cresce, na mesma escala, o peso de uma pergunta singela, que todo
mundo se faz o tempo todo: em quais desses ‘conteúdos’ eu posso confiar?


O cenário na internet fala por si. Marcas tradicionais de velhos diários
disputam com blogs e sites novíssimos, mais que audiência, a confiança do
público. Com quais motivações cada um deles apura, edita e distribui
informações, opiniões e ideias? Quais os compromissos que os amarram? Há agendas
ocultas? Pouco a pouco, esse tipo de indagação vai reclassificando e
hierarquizando a reputação, a confiabilidade e a credibilidade dos fornecedores
de conteúdos informativos. Nesse movimento, para os grandes e para os pequenos,
o dever da liberdade é ainda mais decisivo.


Honestidade intelectual


Naturalmente, nem todos respondem aos requisitos de liberdade na mesma forma,
do mesmo modo: há nuances, diferenciações geográficas, culturais, religiosas,
econômicas, políticas, programáticas, diferenças que variam segundo os públicos
e as comunidades envolvidas. Algo, porém, é comum a todos: os requisitos da
independência se expressam na transparência com que cada um expõe os
compromissos que o amarram. É preciso que exista consonância entre o que se diz
fazer, o que se faz e os métodos pelos quais se faz. É preciso que estejam
claras as barreiras contra interesses estranhos ao propósito anunciado.


Assim é que o público tem razão de se perguntar: quem é confiável no meio
dessa barafunda? Ele sabe que só obterá informação com credibilidade se buscar
veículos que aceitam a transparência. Por isso, hoje, o dever da liberdade, para
os jornalistas, vem antes e acima dos demais.


Não que os jornalistas, humanos que são, devam pretender assumir a condição
de sujeitos neutros, sem determinações de nenhum tipo. Isso não existe, é claro.
Só o que se requer é que essas determinações sejam transparentes, as mais
transparentes possíveis. A partir daí, o público saberá fazer suas escolhas, com
autonomia e autoridade sobre elas. Com transparência e compromissos claros, é
possível existir até mesmo jornalismo com filiação a uma doutrina religiosa, a
uma corrente política, ou o jornalismo corporativo ou empresarial. Naturalmente,
esse tipo de jornalismo, por estar vinculado a uma instituição que não é a
própria instituição da imprensa (uma empresa, um partido, uma igreja etc.), será
limitado em sua credibilidade geral, mas, deixando explícitas as suas
vinculações, poderá, dentro do seu público específico, merecer confiança em seus
propósitos informativos. É possível – desde que ele saiba ser transparente em
suas motivações. O que vai contaminá-lo, corroê-lo em sua credibilidade, é a
existência de agendas ocultas, não declaradas, por meio das quais o tratamento
das notícias se processará de modo oblíquo e dissimulado. Contra isso é que o
público vai aprendendo, rapidamente, a se vacinar. Em poucas palavras, trata-se
de adotar, no ofício de informar a sociedade, os padrões mínimos de honestidade
intelectual, pois o jornalismo é, ele também, uma atividade intelectual.


Os capítulos deste livro


Hoje, várias frentes de interesses concentrados e organizados ameaçam a
liberdade indispensável à prática do jornalismo. Eles não vêm apenas das
investidas da publicidade, com técnicas invasivas – admitidas pelas redações –
que vão da entrada de anúncios em espaços tradicionalmente editoriais, como
capas inteiras de cadernos ou mesmo dos jornais diários, até o patrocínio de
grandes encartes, mais ou menos disfarçados de conteúdo informativo e não
publicitário. Sobre isso, já escrevi bastante em trabalhos anteriores,
como Sobre ética e imprensa. As novas frentes que concorrem para sitiar a
independência partem da indústria do entretenimento, dos governos, da
promiscuidade interessada entre fontes e repórteres (um velho vício que soube se
‘modernizar’ e se agigantar, passando das cumplicidades pessoais para a
associação sistêmica entre veículos, empresas e esquemas de poder), do
corporativismo, do capital e, também, de ONGs.


Este livro analisa as principais delas, às vezes a partir de casos reais, em
textos que foram elaborados entre 1997 e 2008.


A primeira dessas frentes se refere ao modo pelo qual a indústria do
entretenimento vem engolindo não apenas o discurso jornalístico em geral, como
também os órgãos de imprensa em particular. O primeiro capítulo deste volume,
‘… e o jornalismo virou show business‘, flagra uma etapa desse
movimento, na década de 1990. A tendência das megafusões no setor de mídia,
pelas quais os veículos noticiosos passariam a se tornar meros departamentos em
grandes conglomerados cujo negócio é mais amplo do que a imprensa em sentido
estrito, dentro dos quais passaram a conviver atividades comerciais
conflitantes, é objeto desse texto. A pergunta que o orienta é: pode haver
independência editorial de um veículo em relação ao comando do conglomerado que
é seu proprietário? De que modo os jornalistas passaram a responder a esse
(novo) tipo de questionamento?


O segundo capítulo, ‘A promiscuidade com as fontes segundo O beijo no
asfalto
‘, estabelece uma reflexão a partir das relações promíscuas entre um
delegado de polícia e um repórter numa peça de Nelson Rodrigues. O que está em
xeque, aí, é a associação entre o profissional de imprensa e sua fonte para
produzir efeitos lucrativos para ambos por meio da manipulação do noticiário.
Caricata na peça de teatro, essa promiscuidade se converteu numa modalidade
específica de corrosão da independência editorial e, hoje, apresenta-se em
moldes mais danosos e mais perversos.


Em ‘Informação e guerra a serviço do espetáculo’, em que discuto as ações de
comunicação do governo americano na fase preparatória da invasão do Afeganistão
e, mais tarde, do Iraque, são estudadas as teias de cooptação da imprensa pelo
poder de um Estado – não de um Estado qualquer, mas daquele que se põe como o
mais forte de todos, os Estados Unidos. Se antes dizíamos que, quando uma guerra
começa, a primeira vítima é a verdade, constatamos agora que se dá justamente o
oposto: para que uma guerra comece é preciso que, antes, a verdade seja
vitimada. Mais do que nos outros capítulos, nesse aparece com crueza o
esquartejamento dos procedimentos jornalísticos na era do espetáculo, em que as
fronteiras entre fato e ficção já se encontram estruturalmente desfeitas. Em
‘Informação e guerra a serviço do espetáculo’, portanto, o tema não é apenas a
invasão dos domínios da imprensa pelos interesses governamentais, mas também a
descaracterização, a perda de identidade do discurso jornalístico em meio à
colossal indústria do entretenimento desnaturada em máquina de guerra – e da
própria guerra que se põe não mais como prolongamento da política, mas como a
continuação do espetáculo por outros meios.


O quarto capítulo, ‘Jornalistas e assessores de imprensa: profissões
diferentes, códigos de ética diferentes’, põe em destaque uma das mazelas
brasileiras da profissão: a indistinção que os sindicatos de jornalistas
insistem em promover entre ocupações distintas e às vezes antípodas, a do
assessor e a do jornalista propriamente dito. Nesse texto pode-se ver como são
tênues, especialmente em nosso país, as linhas demarcatórias que deveriam
separar o ofício dos que informam a sociedade e a atividade daqueles que são
pagos para defender interesses de seus clientes ou empregadores. Também aí, a
independência da imprensa se vê terrivelmente ameaçada – e, nesse caso, não por
força do mercado ou do poder econômico, mas por atraso do corporativismo de uma
categoria profissional sem contornos claros.


O tema da entrada indevida do governo na esfera da imprensa é examinado com
mais profundidade no quinto capítulo, ‘Verdade e independência numa empresa
pública de comunicação’.


No Brasil, as instituições ditas públicas de comunicação ainda funcionam como
instrumentos de propaganda partidária de interesses alojados nos governos e, por
aí, pode-se identificar com total nitidez outra frente de interesses articulados
que ameaçam os marcos da necessária independência editorial. Nesse texto, não é
ocioso notar, pesa bastante a experiência que tive entre 2003 e 2007, ao
presidir a Radiobrás, em Brasília.


Finalmente, o último capítulo é aquele que emprestou o título a este livro:
‘A imprensa e o dever da liberdade’. Nele, chamo atenção para a necessidade de
observarmos com mais rigor a independência em relação aos governos e aos
movimentos sociais organizados, que hoje se articulam em redes capazes de
cooptar e instrumentalizar parte da cobertura. Embora despontem na arena pública
de modo a ser percebidos como vítimas de exclusão na pauta noticiosa, o que
muitas vezes é verdade, eles aprenderam a atuar com práticas próprias
de lobby e, em alguns casos, são bem-sucedidos em influenciar parcelas das
redações. Por isso, é fundamental que, também em relação a eles, a reportagem
saiba manter um olhar crítico.


Um crédito devido a Rui Barbosa


O título deste livro é uma citação direta de uma obra clássica de Rui
Barbosa, A imprensa e o dever da verdade. Publicada em 1920, ela deixou
marcas na nossa cultura política. Vêm de Rui Barbosa algumas frases antológicas,
como ‘a imprensa é a vista da nação’ [Rui Barbosa, A imprensa e o dever da
verdade
, São Paulo, Papagaio, 2004, p. 32].Ele advertia:


‘Um país de imprensa degenerada ou degenerescente é, portanto, um país cego e
um país miasmado, um país de idéias falsas e sentimentos pervertidos, um país
que, explorado na sua consciência, não poderá lutar com os vícios, que lhe
exploram as instituições.’ [Idem, p. 34-35]


Nessa obra, Rui assinalou corretamente os vínculos entre verdade e
liberdade:


‘Todo o bem que se haja dito, e se disser da imprensa, ainda será pouco, se a
considerarmos livre, isenta e moralizada.


Moralizada, não transige com os abusos. Isenta, não cede às seduções. Livre,
não teme os potentados. Na sua liberdade, já em 1688, via o Parlamento de
Inglaterra `o único recurso pronto e certo contra os maus´’. [Idem, p. 35]


Ele também alertou contra os tentáculos que os governos estendem para
subornar e cooptar jornalistas os quais, não raro, deixavam-se corromper: ‘Ao
derredor do poder formigueja a multidão venal, e os governos, se algum embarco
topam, é em dar vazão ao número de mascates da palavra escrita’ [Idem, p.
40].


Ainda hoje, os vícios apontados por Rui Barbosa permeiam as relações entre
jornalistas e o poder. Nesse sentido, em que pesem todas as diferenças e as
distâncias que separam o meu pensamento da orientação ideológica que moveu a
vida, a produção e a militância do velho jurista baiano, este meu livro, bem
mais modesto, é uma retomada daquilo que ele escreveu há noventa anos. Em seu
tempo, ele procurava iluminar o dever da verdade, que dependia, como ele mesmo
reconhecia, da observância da liberdade. Agora, nosso dever é tomar conta da
liberdade em primeiro lugar. Não como aspiração ideal, mas como um método
prático, sustentado em balizas materiais. Sem esse método, estaremos alijados do
processo social de construção da verdade, por mais transitória e inacabada que
ela seja – e é – nos marcos do jornalismo.

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Jornalista