Um grande filósofo do século 19 escreveu que ler jornal era essencial para um bom café da manhã (não havia web). Era uma época otimista: as Luzes fariam do mundo um lugar melhor e os jornais eram um dos suportes desta iluminação, formadores da opinião pública, imparciais, objetivos, independentes. O século 20 cuidou de acabar com o mito de uma Razão invencível e o novo milênio parece também não ter começado muito bem. Fantasmas rondam este mundo: crise, novas tecnologias, novos modelos, menos leitores, mais crise. Nisso tudo, há lugar para o jornalismo? Se sim, qual é o papel do jornalista? A web mudou tudo? Esta necessidade de jornais e jornalismo, ela vem do quê? Pra que jornalismo, afinal?
Vá lá saber, mas como as bruxas da anedota, o jornalismo existe, está aí, é mecanismo essencial do nosso modo de vida, e não há como subestimá-lo, até porque jornalismo implica em representar, em falar sobre, e o mundo moderno é um mundo de representações. Não só isso: o jornalismo é um discurso que pretende sempre ser verdadeiro, qualquer que seja a definição de verdade. Jornalistas não se veem do lado do mal e do engano (e nem são vistos assim), abominam o erro e justificam seu trabalho como um bem social. Nesse sentido, jornais, jornalistas, o jornalismo, estão indissoluvelmente ligados à noção de ética, ao conhecimento do bem e a praticá-lo. Não são só necessários, são ‘bons’. Será?
Essa é aquela pergunta chata, que talvez fosse de bom tom não fazer, mas ninguém que leve o jornalismo e o ofício do jornalista a sério pode deixar de fazê-la. Ética, Jornalismo e Nova Mídia – Uma Moral Provisória leva o ofício a sério. Seu autor, o jornalista e professor Caio Túlio Costa, foi um dos ‘jovens turcos’ que no início dos 80 participaram do chamado ‘Projeto Folha’; mais do que isso, foi um dos líderes do processo – e o primeiro ombudsman do jornal. No fim dos 90, ele se recriou como um dos ‘pais fundadores’ da web no Brasil. Tem uma carreira importante, marcada por sucesso e polêmicas. Pode-se desgostar do que diz e faz, mas é difícil não reconhecer seu senso de oportunidade. O livro é mais uma prova disso. A Crise de 2008 e o mundo em rede nos obrigam a pensar no tema da relatividade moral do jornalismo. De novo. E de forma diferente do que havia sido feito em outras situações.
Imprecisão e incerteza
Costa pensa difícil. Para complicar ainda mais a vida do leitor, escolheu o caminho da história do pensamento e da arte para expor seus argumentos, percurso interessante, sem dúvida, mas árduo e cheio de obstáculos. O livro trata das relações entre ética e jornalismo, indo de Sócrates a Stiglitz, de Epicuro a Kant, de Descartes a Sartre (e mais algumas dezenas de autores e personagens). Há que se ter tempo (e leitura) para atravessar o mar de citações e referências, ‘momentos em que a questão moral encontrou definições capazes de iluminar condutas’, que servem para montar uma história (hiper) crítica da mídia como um lugar de meias verdades, omissões e mentiras úteis, às quais se sujeitam jornalistas no desejo de acertar, metidos em um mar de erros crassos, provocados pela pressa ou pela ignorância.
Não bastasse isso, há a relatividade (a culpa é sempre de Einstein). No capítulo 9, Costa faz o elenco de algumas das aporias com as quais se defronta a Velha Mídia quando ela se vê diante do Oceano Azul da Nova Mídia. Por exemplo, o pobre jornalista, o que acontece com ele? Descolado de seu centro, o jornalista-Sol corre o risco de se apagar, subjugado por um leitor que ele não controla mais. E a famosa distinção igreja-Estado (invenção americana dos anos 20, sobre a qual se escreveram vários livros de ética e jornalismo), como fica? Para Costa, a dissolução dos limites entre atividade editorial e atividade comercial arrisca apagar a fronteira que garante a independência do negócio enquanto garante o negócio (de fato, arrisca, mas é fato que em bons jornais, o limite é sempre nítido).
E o demônio do marketing? A possibilidade de ações de marketing ligadas a determinados conteúdos, se efetivada, deixa um sabor amargo de dúvida no leitor (vale para os marqueteiros o que vale para os publicitários). Isso para não falar da cultura, em geral: a redução progressiva do conhecimento por parte dos novos criadores de conteúdo cria uma geléia geral onde imprecisão e incerteza viram qualidades e não defeitos. No fim, o leitor pode se perguntar, irritado com o jornal que agora lhe estraga definitivamente o café, o que quer Caio Túlio?
Conhecimento e desconfiança
Quer desmontar a pretensão à objetividade da imprensa, que desde sempre afirma que são objetivas (e verdadeiras) suas representações. Quer arrasar o que vê como a arrogância pedante dos jornais e dos jornalistas. Não existe isso, diz ele. Nunca existiu, e menos ainda existe agora, o território do jornalismo estraçalhado pela nova mídia e sua abertura ao leitor-criador.
Ok, mas esta é a parte fácil. Há a parte difícil.
Um, como ele mesmo nos lembra, jornalismo é ‘parte determinante da engrenagem que faz o mundo parecer o que parece ser’. Não há como prescindir dele. Dois, códigos morais temporários são encrenca. Parecem resolver o problema, mas sempre haverá uma noite em que as duas moças se encontrarão com o filósofo sedutor, ao mesmo tempo e não sucessivamente. Três, a Nova Mídia também precisa ser alvo de crítica, ou não? Soluções? O livro deixa mais perguntas do que respostas.
Enfim, precisam de jornalismo (e precisamos dele…), azar. Não durmam no ponto. Não acreditem no senso comum e cuidado com móveis encerados e jornalistas sinceros. À guisa de solução, se há uma, só a busca contínua do conhecimento e a desconfiança persistente em relação ao ‘estado atual das coisas’. A autoironia está no sangue ou não há jornalismo. Pena que não haja muita gente com senso de humor. Faltam caixeiros.
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Jornalista