Nos últimos anos, observa-se um crescente número de iniciativas com o propósito de incrementar a inclusão social no Brasil. Entre outras, discutem-se alternativas aos usos tradicionais de uma estrutura estatal já existente. Em outras palavras, questiona-se a eventual possibilidade de utilização do aparato estatal de maneira a contemplar maior parcela da população ou um segmento diferente do usualmente beneficiado pelas políticas públicas. Em síntese, deseja-se aumentar a eficiência do Estado no que concerne à satisfação de fins públicos.
Entre os modos considerados eficazes na mudança da qualidade da intervenção estatal, observa-se, rodeada de enorme polêmica, a crescente adoção de políticas públicas de ações afirmativas consistentes na reserva de cotas para o ingresso em instituições educacionais de nível superior. Essas iniciativas, como qualquer experiência institucional, são passíveis de aprimoramento. Afinal, como dizem, esta experiência é um jogo de acertos e erros. Em que pesem os estudos prévios, muitos problemas são constatados apenas com a prática.
A passionalidade de muitas manifestações relacionada à temática das cotas acaba por inibir possíveis contribuições, como a pretendida no presente texto. O ponto a ser analisado é a possibilidade de aumento das restrições aos possíveis beneficiários. A nova restrição objetiva aumentar o número de possíveis contemplados sem diminuir o percentual de vagas oferecidas por meio da reserva.
Condição de candidatos é diferente
A discussão do uso da reserva de cotas foi acompanhada da polêmica relativa ao critério a ser utilizado. Em grande parte, adotou-se a multiplicidade de requisitos: além de ter cursado parte de sua educação básica em escola pública, é preciso declarar-se integrante de um segmento específico (de modo geral, afrodescendentes). Ocorre que a adoção de apenas esses dois requisitos para que o candidato possa ser beneficiado pelas cotas não garante, com a eficiência máxima, a ampliação do universo de beneficiados pelos serviços educacionais de nível superior prestados pelo Estado.
A insuficiência dos dois requisitos mencionados, apesar de ignorada durante os debates a respeito do assunto, pode ser visualizada com facilidade. Em nossa experiência docente na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pudemos observar que, não raro, a vaga destinada à cota é preenchida por pessoas que já possuem nível superior (muitas delas formadas em instituições públicas – muitas vezes egressos da própria UNEB). Em uma turma do curso de Direito com menos de cinqüenta alunos, observamos mais de dez pessoas com educação superior em Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia, entre outros cursos. Permitir que as vagas destinadas às cotas sejam destinadas à essas pessoas é um desvio da proposta de ampliação dos beneficiados pelo aparato estatal que justificou a implantação dessa política pública.
O simples fato de ter cursado o ensino médio em estabelecimento estatal não deve prevalecer sobre o fato de essas pessoas possuírem nível superior. Se a formação superior trouxer algum proveito para o indivíduo (o que se espera), é forçoso concluir que a condição dos candidatos com nível superior e sem nível superior é acentuadamente diferente. Conseqüentemente, a iniciativa de se reservar cotas pode favorecer diversas vezes a mesma pessoa. Em outras palavras, além de se exigir a satisfação dos dois requisitos supramencionados, é necessário exigir, também, que o possível beneficiário não tenha concluído curso superior em instituição estatal de educação.
Ampliar universo de beneficiados
Isso geraria uma discriminação inaceitável? O fato de ser beneficiado pelo sistema de cotas impossibilitaria novo ingresso em estabelecimento do Estado? Evidentemente, não. Quem já tiver sido beneficiado por uma vaga em instituição estatal não poderá disputar as vagas reservadas às cotas, mas poderá competir em uma seleção pelas outras vagas não reservadas. Ademais, como é de amplo conhecimento, há uma grande evasão de estudantes durante os cursos universitários que gera muitas vagas não preenchidas. Por força disso, no lugar de mais vagas destinadas ao vestibular, é comum a realização periódica de seleções para categorias especiais de matrícula (entre as quais se inclui a seleção destinada aos portadores de diploma de nível superior). Ou seja, quem já possuir nível superior, mesmo não podendo ser beneficiado por uma cota, terá a possibilidade de ingresso assegurada.
Isso, provavelmente, aumentará ainda mais a participação dos segmentos sociais almejados pelas cotas. Quem já possui nível superior, poderá disputar as vagas não reservadas em melhores condições (exceto se não se atribuir valor a alguns anos de estudo). Por outro lado, o número de vagas reservadas não é diminuído. Desse modo, não há sentido em se afirmar que essa medida irá prejudicar os objetivos do modelo atual.
Contra essa proposta, é possível afirmar que falta um amplo levantamento para se saber se os exemplos de uma turma de um curso de um Departamento da UNEB são suficientes para justificar tamanha generalização: o aumento dos requisitos para a disputa de vaga reservada às cotas. Com a devida vênia, se um único exemplo puder ser dado, já se justifica a propositura do aumento das exigências. Com maior razão isso deve ser cogitado se, como no caso, vários exemplos podem ser oferecidos.
Sem maiores considerações, com base no quanto analisado, acreditamos ser necessária a urgente revisão do modelo de reserva de vagas para cotas. Por meio do acréscimo de mais um requisito, tal como sugerido acima, será possível ampliar o universo de beneficiados pelo modelo sem impossibilitar a continuidade do acesso às instituições estatais por quem já tiver nível superior.
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Professor de Direito Constitucional do Curso de Direito do Departamento de Educação do Campus XV da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Valença, BA