O dia 1º de janeiro de 2003, quando o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse do cargo de presidente da República, foi uma boa véspera: teve solenidade, discurso e festa popular. Quando escureceu, jantei com moderação e tomei dois copos de chope na companhia de bons amigos num restaurante na Asa Sul da capital federal. Eu tentava disfarçar, mas, enquanto eles festejavam o dia 1º, eu me preocupava com o dia 2.
Naquela véspera, lembro bem, fui me deitar depois da meia-noite, quando já era o dia seguinte. Hóspede da Academia de Tênis, fiquei alojado num quarto úmido, muito úmido, como se um cúmulo-nimbo estivesse passando uma temporada ali dentro, disputando espaço comigo. Tinha chovido muito naquela semana. Custei a pregar os olhos e, se é que adormeci, garanto que dormi mal. Assombrações burocráticas trovejavam à minha volta para me atormentar e fazer me arrepender mil vezes de uma decisão já tomada. Eu assumiria dentro de poucas horas a presidência de uma estatal, teria de assinar contratos, documentos, ordens de todo tipo, sofreria o controle do Tribunal de Contas da União (TCU), não escaparia de usar gravata diariamente.
Aborrecimentos que eu jamais conhecera vieram puxar o meu pé, lançando maldições horrendas: infernos processualísticos, formalismos sádicos, padecimentos administrativistas esperavam por mim. Acometido de litisfobia, entre um susto premonitório e outro surto paranóico, eu me revirava sobre o côncavo colchão. Foi aí que, bafejado por uma lembrança alentadora, a de que minha mulher era advogada e, mais ainda, doutora em Direito Administrativo, achei que a ocasião era propícia para uma consulta jurídica. Acordei-a aos cutucões:
– Onde eu estava com a cabeça quando fui aceitar esse negócio?
Ela começou a ouvir o quadro catastrófico que eu descrevia, um poltergeist que aflorava dos monumentos brasilienses, com tentáculos zunindo na escuridão e me alcançando justo no pescoço. Sem abrir os olhos, ela descansou a mão direita nos meus cabelos ameaçados de extinção, guiando a minha cabeça para o seu ombro. Falou baixinho:
– Dorme, Eugênio, isso não tem a menor importância.
Não tem importância…
Maria Paula tinha razão, mas como eu poderia dormir? Por que é que tinha topado entrar nessa? Iria ganhar menos, bem menos, e não tinha nenhuma intenção de, na linguagem das tias velhas, ‘entrar para a política’. O que é que me levava ao cargo de presidente da Radiobrás? Como seria a primeira tarde no meu novo emprego? Como seria a primeira semana? Eu sobreviveria ao primeiro mês?
As justificativas de ordem profissional eram superficiais. Currículo para o posto não me faltava. Além de diretor de revistas, eu tinha sido repórter, crítico, editor, secretário editorial de uma grande empresa jornalística. Havia ainda a qualificação acadêmica, com uma breve carreira de professor universitário e um doutorado em Ciências da Comunicação. É verdade que o título não me serviria de distinção numa terra onde as telefonistas, as secretárias e o restante da humanidade chamavam todo mundo de ‘doutor’, mas me agarrava a ele como agarrava o travesseiro, clamando por um pouco de descanso antes do amanhecer. Inutilmente. Diplomas, credenciais, conhecimento presumido, nada me aquietava. Algo estava fora de lugar, e provavelmente esse algo era eu mesmo.
Dias antes, eu prevenira o então futuro ministro da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, Luiz Gushiken, portador do primeiro convite para que eu me mudasse para Brasília:
–Eu nunca fui presidente de estatal.
Ele não deu muita confiança:
–Eu também nunca fui ministro. – Ele foi seco. Eu engoli seco.
Tentando driblar as aflições noturnas, lembrei-me de um churrasco, no Instituto da Cidadania, ao lado do Museu do Ipiranga, em São Paulo, uma quinta-feira, 19 de dezembro de 2002, quando Lula, ao vir me cumprimentar, passou o braço sobre o meu ombro e disse que era dele a idéia de me levar para a Radiobrás. Ao sabor da insônia, ponderei comigo mesmo que o próprio presidente eleito nunca havia sido presidente. Nem governador. Nem prefeito. Nem mesmo ministro. Sequer presidente da Radiobrás ele tinha sido. O meu desafio, comparado ao dele, era refresco. E nada de dormir.
Na véspera do dia 2 de janeiro de 2003, eu sabia, uma boa parte dos meus colegas de novo governo exultava do alto de suas mais heróicas fantasias petistas, sedentos para pôr a mão na máquina. Quanto a mim, rolava na cama com temores pequeno-burgueses. Eu estava impondo uma transferência de cidade à minha família. Será que era justo?
***
Contra a minha vontade, o dia 2 de janeiro amanheceu. Como se fosse um dia qualquer, teve o desplante de clarear. Depois da posse de Luiz Gushiken na Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica (Secom), foi a minha vez, numa solenidade que, a meu pedido, não chamou a atenção pela suntuosidade. Removeram os móveis da sala de reuniões no gabinete da presidência da empresa, no quarto andar de um prediozinho residencial adaptado para virar repartição, e ali mesmo, no cômodo de 31,9 m2, diante de trinta convidados, todos de pé, virei presidente de estatal. Passava um pouco do meio-dia.
Quando me foi passada a palavra, comecei a longa travessia de dois ou três passos até o microfone, pois havia um microfone no ambiente exíguo. Minha cabeça levitava, como se não conseguisse despertar da noite em que não dormira. Eu não trazia discurso escrito, estava de mãos abanando, e uma velha idéia sobre direito à informação num governo democrático veio me acudir. O sentido da minha escolha começava a se revelar, a despeito de mim mesmo.
Tendo ouvido a fala protocolar e rápida do ministro Gushiken, pensei na primeira conversa que tivera com ele, no finalzinho de 2002, no Hotel Hilton, no centro de São Paulo, onde o Partido dos Trabalhadores realizava uma grande reunião. Foi quando o conheci. Depois de sintetizar os rumos que pretendia imprimir à Secom, falando com a rapidez de uma metralhadora, Gushiken quis ouvir a minha opinião sobre comunicação pública. Tentei parecer igualmente categórico. Disse que já era tempo de os governos pararem de tentar difundir mensagens para se promover à custa da máquina pública. Em lugar disso, deveriam atender o direito do cidadão à informação. Nada mais. Havia já muitos anos que eu insistia na tese: assim como a educação, a moradia, a saúde e o trabalho, a informação também era um direito fundamental. O futuro ministro reagiu de um modo aparentemente interessado.
Com essas lembranças, cheguei ao microfone. Após uns cinco, talvez seis segundos de silêncio, a hesitação passou, de repente. Na hora H, na hora do meu discurso, a clareza me apareceu e os medos se dissiparam. Falei com uma firmeza que não sei de onde brotou, mas brotou. Falei um texto final, como se eu tivesse decorado a minha fala. Diante das testemunhas, proclamei aquilo que, no fundo, era a razão para eu estar ali assumindo o comando da empresa. Disse que, a partir daquele instante, o nosso trabalho seria ‘presidido pelo direito à informação do cidadão brasileiro’, pois ‘não há democracia onde há miséria de informação’. Eu prossegui, conforme ficou documentado numa fita de vídeo que guardei de recordação. O que segue é uma transcrição literal:
‘A ética da informação e a ética do jornalismo são inseparáveis da ética republicana, a ética obsessivamente republicana que deve governar cada instituição da nossa democracia e do nosso país. Não há contradição, ao contrário, há uma complementaridade necessária entre a idéia radical de democracia e a idéia de direito à informação. Há com freqüência um equívoco, e esse equívoco é o de achar que nós pomos no ar as informações que nos interessam e ponto. Isso é um equívoco, porque quando as informações que nos interessam não correspondem às necessidades do cidadão a credibilidade começa a ser ferida. Portanto, as informações que nos interessam veicular são as informações a que o cidadão tem direito. Isso é a construção da credibilidade. Quem está no topo de todo esse trabalho é o cidadão. É aquele que muitas vezes não exige porque não sabe que pode exigir. E o nosso trabalho é ensiná-lo sobre isso, ensiná-lo que ele pode exigir.’
Era uma promessa solene em minha posse tão pouco solene. A Radiobrás, durante a minha gestão, serviria não mais à finalidade de construir uma imagem favorável de governantes, mas à missão de dar ao público a informação que ele tem o direito de ter.
***
Somente ao discursar eu acordei da noite maldormida – ou não-dormida. Acordei enquanto anunciava o óbvio: cumprir o dever de informar. Era uma pretensão pequena, era tão pouco, mas, à medida que eu falava, senti, nos olhos dos que me ouviam, que aquele pouco talvez não fizesse parte do mundo real. Num relance, desconfiei: o mal-estar que me mantivera em vigília na noite anterior não vinha do medo de oficialismos burocráticos nem dos purgatórios em forma de papelórios, mas da intuição oblíqua de que eu fracassaria, de que o propósito de contribuir para democratizar a comunicação do Estado brasileiro não passava de veleidade.
A inércia da administração me impediria de livrar aquela empresa pública do papel de propagandista das autoridades. Eu fracassaria, eu fracassaria fatalmente: tive esse pressentimento num átimo, um hiato entre uma cena e outra, que logo fugiu, como se eu tivesse lido por antecipação uma sentença à minha espera e logo em seguida tivesse esquecido, mais ou menos como a gente se dá conta de um sonho que sabe que sonhou, mas que ao abrir os olhos já não consegue saber como era.
Quando eu proclamei o que proclamei, o meu pior fantasma me encarou sob a face inconscientemente incrédula dos convidados: para os meus futuros interlocutores, o que eu estava prometendo era apenas o impossível.
…e no entanto é preciso contar
Quando eram passados quase quatro anos daquela noite na Academia de Tênis, bateu em mim a necessidade tirânica de contar ao menos alguns capítulos da minha história à frente da Radiobrás. É uma história pública, transcorrida em repartições públicas, e ao público pertence. Eu precisava prestar contas do que fiz, do que desfiz e, principalmente, do que não fiz – porque não pude, porque não soube ou porque não quis – enquanto estive no emprego. Comecei a tomar notas.
Não me preocupei em arrolar apenas os acertos ou as vitórias – e tomei o cuidado de não pintar com cores de acertos e vitórias o que foram erros e derrotas. Contar onde, como e por que falhei – e perdi – pode ajudar aqueles que têm a habilidade de aprender com os erros dos outros. Para quem se interessa pelos descaminhos da comunicação pública no Brasil, e sabe tirar lições dos percalços alheios, este relato será de algum proveito.
Ainda que todo relato seja uma defesa, procuro não me justificar em demasia. Não falo bem de mim mesmo, ainda que fale bastante de mim e fale na primeira pessoa. Tinha que ser assim. Usar o ‘nós’ para encobrir o ‘eu’ seria apenas um protocolo demagógico e desinformativo, mais que majestático. Sei que uma experiência como a que agora decidi contar só pode existir quando resulta da dedicação de uma grande equipe – como a que eu tive –, mas as decisões que tomei são de minha responsabilidade e não devem pesar sobre outros ombros.
Nesta narrativa o fator subjetivo constitui parte da realidade objetiva. Expor abertamente os desvãos da minha subjetividade, turvada, às vezes, por aspirações fantasiosas ou medos pueris, foi uma exigência que a própria objetividade me impôs.
Se na minha gestão – como neste meu depoimento – alguns identificarem traços personalistas, digo apenas o seguinte: para o bem da administração pública, investi o que de melhor havia na minha personalidade para construir a impessoalidade. Tratar a empresa pública como coisa pública, até o fundo, até o limite, foi o foco da minha gestão. Explicar a razão e o método com que trabalhei é o foco destas páginas. Que não querem valer mais do que valem. No vasto universo de um governo, isto aqui não passa de uma crônica de aldeia: uma estatal menor, suas ondas eletromagnéticas e suas implicações.
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O jornalismo e a lei
Ricardo Setti (*) # texto da ‘orelha’ de Em Brasília, 19 horas
Parabéns, leitor. Você tem em mãos um grande livro. Instigante, pleno de revelação sobre bastidores inéditos do poder num dos seus pontos nevrálgicos mais visíveis e menos examinados: sua máquina de comunicação.
O autor, Eugênio Bucci, reúne três condições que tornam este livro único. Em primeiro lugar, é jornalista com rica trajetória em veículos de primeira ordem e postos de direção na maior editora de revistas da América Latina, a Abril. Além disso, é respeitado estudioso e pensador do jornalismo, com doutorado interessante e original na área, além de professor de méritos e autor de livros relevantes. Finalmente, dirigiu durante o primeiro mandato de Lula, com brilho, criatividade e coragem, a Radiobrás, empresa pública de comunicação que, até então, exibia uma triste vassalagem aos governos de plantão, afastando-se de sua tarefa ética e legal de servir ao público.
Quem não o conhece pode ficar com um pé atrás diante desta obra. Afinal, Eugênio fez parte da história do PT e, além disso, aceitou trabalhar para o governo Lula. Como, então, falar de isenção ao analisar a empresa, seu trabalho nela e o comportamento do PT e do próprio governo nesse setor? Acontece, porém, que Eugênio é, antes de tudo, um excelente jornalista – de longe, um dos destaques de sua geração. E um profissional que preza a ética jornalística a ponto de ter escrito aquele que é, simplesmente, o melhor livro a respeito já publicado no Brasil, Sobre Ética e Imprensa (2000).
Para gerir a Radiobrás ele se valeu basicamente de dois instrumentos, como se verá: a prática do bom jornalismo e a rigorosa letra da lei. Com isso, enfrentou cara feia, corporativismos, puxadas de tapetes de ministros, intrigas de assessores e de áulicos palacianos e uma crônica magreza de recursos. Mas, com apoio de um pequeno grupo de auxiliares convocados para missão de sacrifício – trabalhar muito, sob intensa pressão e ganhando pouco –, além do grosso do corpo funcional da empresa, que ele e equipe conseguiram treinar, reciclar e motivar, obteve uma grande reviravolta nos métodos e na cultura do pesadíssimo paquiderme. E passou adiante uma herança de qualidade e credibilidade que a Radiobrás jamais obtivera desde sua criação, em 1975.
Não bastasse narrar essa fascinante experiência com riqueza de informação, profundidade de conceitos e toques saborosos de humor, Em Brasília, 19 horas tem a rara virtude de ser muito, mas muito bem escrito. Vá em frente e aproveite, leitor.
(*) Jornalista
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Jornalista