Elio Gaspari volta a escrever sua coluna dominical e seu artigo semanal em O Globo, Folha de S. Paulo e outros jornais. Ancelmo Gois, na coluna que tem seu nome no Globo, informa que o quarto volume da série O sacerdote e o feiticeiro está para sair em duas semanas.
Os dois primeiros foram publicados na mesma época. O primeiro, A ditadura envergonhada, mostrava os antecedentes do movimento militar que fez cair o governo João Goulart (Gaspari não usa a palavra "golpe") e apresentava com detalhes num texto refinado os primeiros anos do regime militar. Este primeiro volume terminava em dezembro de 1969, com a promulgação do Ato-Institucional nº 5 e suas conseqüências imediatas.
No segundo volume, A ditadura escancarada, o autor expõe de maneira magistral os conflitos entre os que combatiam o regime e a montagem e a organização da estrutura repressiva. O volume concluía com o fim da Guerrilha do Araguaia, em 1974. Os repressores eram chamados de "tigrada" e turma do "porão". Do outro lado, Gaspari só atribuiu o tratamento de guerrilheiro aos militantes que foram para Xambioá e arredores, no Sul do Pará. Todos os demais, sem exceção, eram "terroristas". Afinal, assaltavam bancos, seqüestravam diplomatas, praticavam ousadas ações armadas. Em verdade, nenhum lado daquele confronto desejava a democracia. Do lado de lá, a ditadura e sua máquina clandestina de moer gente era útil para os defensores do regime militar. Do lado de lá, a grande maioria das organizações pretendia realizar a "revolução socialista". Inspirações vinham de Cuba, da Argélia, da China, da União Soviética, do Vietnã, da roda da história que entrava na Era de Aquarius etc.
O terceiro volume, A ditadura derrotada trata, grosso modo, do mesmo período que se encerra no fim de 1974. As eleições daquele ano surpreenderam a muitos e impuseram uma grande derrota à ditadura. Contra todas as expectativas, o MDB, partido único da oposição, obteve vitória consagradora. Em votos, superou em muito a Arena, partido governista. Não conseguiu maioria no Senado porque aquelas eleições renovavam apenas um terço dos senadores. Na Câmara do Deputados, os votos oposicionistas concentrados nos grandes centros urbanos não alteraram a relação de forças.
Prisões abarrotadas
A virada de 1974 para 1975 teve vários significados na política brasileira.
a)
O núcleo forte da oposição, até então com forte peso dos que defendiam a luta armada e o voto nulo, mudava para os que propugnavam prioritariamente as ações legais nos partidos legais.b)
A oposição pelo voto mostrou-se vigorosa e eficaz nas eleições de 1974. Não vinham do nada. Ulysses Guimarães fizera campanha para presidente da República como anticandidato. O candidato condenado a ser derrotado. Mas fez movimentos de rua, caminhadas e comícios denunciando a ditadura. Tinha o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, como anticandidato a vice-presidente Enfrentou o candidato da ditadura, Ernesto Geisel. Perdeu no Colégio Eleitoral; ganhou nos corações e mentes dos brasileiros.c)
O ditador de plantão também mudava: saía o general Emilio Garrastazu Médici, que fora indicado presidente na crise resultante da doença e do afastamento de Costa e Silva em 1969 e entrava o general Ernesto Geisel, então presidente da Petrobrás e irmão do todo-poderoso ministro do Exército Orlando Geisel.O general Golbery do Couto e Silva foi o parceiro e auxiliar mais próximo de Geisel durante seu governo. Formulou o conceito de abertura "lenta, segura e gradual" e operou os principais movimentos que fariam dos anos 1975 a 1977 os mais intensos de acontecimentos políticos.
Todos devem lembrar que, em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, apresentou-se ao DOI-Codi pela manhã. No fim da tarde daquele sábado, estava morto em decorrência das torturas. Naqueles meses as prisões estavam abarrotadas de jornalistas e comunistas.
Novidades na Folha
Os comunistas do PCB, que condenavam a oposição armada, à medida que iam vendo sua formulação política vingar com o crescimento do movimento de massas da sociedade civil, iam tendo seu Comitê Central demolido. Dos integrantes do Comitê Central que foram presos, apenas um não "desapareceu": o ex-deputado Marco Antônio Tavares Coelho era da Comissão Executiva do Comitê Central e, mesmo vivendo na mais absoluta clandestinidade, mantinha conversas políticas com várias personalidades. Sua mulher pôde denunciar sua prisão, o Congresso Nacional e os jornais repercutiam o fato. O II Exército, num dia daqueles, tornou-se editor do Jornal Nacional e colocou imagens do militante preso em condições precárias para mostrá-lo vivo.
Foi preso em janeiro de 1975. Uma das personalidades com as quais Marco Antônio mantinha diálogo regular era o jornalista Cláudio Abramo, já na Folha de S. Paulo. Abramo também foi preso pelo DOI-Codi em 1975, mas são poucas as informações sobre as razões de sua prisão. Desde 1965 Abramo prestava consultoria ao empresário Octávio Frias de Oliveira, proprietário da Folha de S. Paulo e de diversos outros jornais na capital paulista e em Santos.
Otavio Frias Filho relata que seu pai foi procurado pelo general Golbery para uma conversa ainda antes de o general Ernesto Geisel assumir o poder. Frias Filho não participou da conversa porque não pôde embarcar na ponte-aérea para o Rio: esquecera a carteira de identidade. Na conversa, Golbery apresentou seu projeto de abertura e formulou um raciocínio interessante. São Paulo tinha apenas um único jornal importante, sério, de peso: O Estado de S. Paulo. Golbery deixou claro que ao governo que chegava interessava um outro jornal sério, e que o Grupo Folhas tinha potencial para isso. Encerrada a conversa, o velho Frias chamou Cláudio Abramo, e o matutino, que obedecia disciplinadamente à censura, começou a fazer um jornalismo novo e diferente. Alberto Dines foi chamado para dirigir a sucursal do Rio de Janeiro.
A primeira novidade apareceu na página 2: o jornal passava a contar com editoriais e três colunistas, um em Brasília, um em São Paulo e um no Rio de Janeiro, abaixo da charge Nada muito diferente, na aparência, da página 2 como é hoje. Pouco depois, surge a op-ed, a página 3. A exemplo de boas experiências do jornalismo norte-americano, a Folha produziu a página Tendências/Debates como página oposta aos editoriais. Nada muito diferente, na aparência, da página 3 como é hoje.
Muito a contar
A Folha já tinha uma base de bons repórteres e editores, montada por Cláudio Abramo. Não pôde mostrar muito serviço até então. A epidemia de meningite, de 1973, fora vetada pela censura. Mas as coberturas dos monstruosos incêndios que atingiram os edifícios Andraus e Joelma, em fevereiro de 1972 e fevereiro de 1974, respectivamente, mostravam o potencial jornalístico do jornal ainda em plena ditadura.
Uma proposta ousada de Alberto Dines cria na Folha a coluna Jornal dos Jornais. Pensada para sair de forma discreta, na Folha Ilustrada das segundas-feiras, sai aos domingos, na mesma página 6 onde hoje tem espaço o ombudsman.
O governo cassou mandatos, fechou o Congresso, inventou o Pacote de Abril. Fez e aconteceu em nome da abertura.
Em setembro de 1977, uma crônica de Lourenço Diaféria faz com que o jornal sofresse pressões dos setores duros. O jornal publica nos dias seguintes o espaço do cronista em branco, contra a opinião do próprio Cláudio Abramo. Pouco depois, por exigência do ministro Sylvio Frota, já em campanha para suceder Geisel como presidente, Octávio Frias demite Cláudio Abramo e chama Boris Casoy para dirigir o jornal.
No dia 12 de outubro, uma operação complexa e difícil marca um momento de inflexão do combate entre os duros e os aberturistas. Geisel demite o ministro Sylvio Frota e aborta um golpe militar. Na história brasileira, é a primeira vez que um presidente demite um ministro do Exército e permanece no cargo.
Cláudio Abramo perdera o cargo coisa de um mês antes. Não voltou mais.
Esta é uma história que ainda tem muito a ser contada. Vamos ver como Elio Gaspari a conta. [Continua]