O que há em comum em uma casa de quarto e sala de um município pequeno no interior do país e um apartamento moderno, recheado da mais avançada tecnologia? Ambas as residências devem ter ao menos um aparelho de televisão. Talvez o apartamento tenha vários, espalhados em quartos, salas e por vezes até na cozinha e nos banheiros. Telas de alta definição e acesso a muitos canais. O único aparelho da casinha certamente estará em lugar nobre. Pois poucas, pouquíssimas, são as casas brasileiras que não têm ao menos um aparelho. Por vezes até onde a eletricidade ainda não chegou, a televisão está lá. Funciona a óleo.
Hoje onipresente, a televisão era uma incógnita quando sua primeira transmissão foi ao ar, em setembro de 1950. Ao longo de sua existência, foi se firmando como a mídia de maior impacto na sociedade brasileira. Ela é a principal opção de entretenimento e de informação da grande maioria da população do país. Para muitos, é a única. Suas imagens pontuam – e mobilizam em muitas formas – a vida e as ações de milhares de pessoas. A televisão faz parte, enfim, da vida nacional. Ela está presente na estruturação da política, da economia e da cultura brasileiras.
Apesar disso, ainda existem poucos estudos históricos realizados sobre a televisão brasileira. Majoritariamente, os que existem oscilam entre o ‘generalismo’, que tende a perder os detalhes dos fatos e processos, e o ‘particularismo’, que, preso a uma análise pontual, desconsidera a dimensão contextual mais ampla.
Em parte, esse impasse é provocado pela própria diversidade dos aspectos (sociais, culturais, econômicos, estéticos, tecnológicos, discursivos, editoriais e políticos) da televisão e dos seus tipos (comercial, aberta, a cabo, pública, estatal, comunitária, universitária etc.), bem como pela variedade de seus gêneros (jornalismo, dramaturgia e entretenimento).
Os agentes, as relações, os fazeres e as disputas
Apesar das dificuldades de se trabalhar com um objeto tão multifacetado, têm sido realizadas, nos últimos anos, pesquisas com o objetivo comum de desfazer certos impasses teóricos e metodológicos enfrentados para, assim, consolidar e diversificar a análise histórica da televisão brasileira. E é justamente a trajetória desse meio de comunicação que este livro conta. Para isso, nós, os organizadores, convidamos pesquisadores que aceitaram o desafio de analisar e contextualizar a televisão. São pesquisadores das áreas de Antropologia, Comunicação, História e Sociologia, especialistas no assunto e que partem da ideia de que a análise televisiva requer a consideração do caráter multifacetado dessa mídia (social, político, econômico, cultural, discursivo, estético, produtivo, profissional e tecnológico). Assim, além de proporcionar uma leitura sistemática dos mais recentes estudos sobre o assunto, o livro permite uma revisão histórica que tanto pode servir como fonte para consultas quanto suscitar o interesse pela realização de novas pesquisas sobre outros episódios, personagens, produtos e processos televisivos não abordados aqui.
Os capítulos analisam os laços indissolúveis entre as ‘dimensões internas’ (aspectos empresariais, técnicos, artísticos, discursivos e profissionais, bem como as rotinas de produção e as estratégias de programação) e as ‘dimensões externas’ (as pressões institucionais, o ambiente regulatório, a política nacional, a transformação econômica, as mudanças tecnológicas, as condições de produção, as estéticas e lógicas de recepção) ao fazer televisivo.
Um ponto fundamental a destacar é a relevância dada à análise dos programas televisivos. No nosso entender, não é possível uma história que não seja elaborada para mostrar como os processos televisivos e sociais se constituem específica e mutuamente a ponto de não existir, senão de modo simplificadamente convencionado, televisão e sociedade como dois campos distintos. A televisão na sociedade e a sociedade na televisão não existem como meros reflexos de um no outro, mas como balizas dinâmicas, intercambiáveis, negociáveis e em disputas. É essa dialética que não se pode perder. Ao longo deste livro, a história da televisão assume forma concreta com os agentes, individuais e institucionais, e as relações, fazeres e disputas existentes.
‘Em ritmo de popularização’
A obra foi dividida em seis partes, seguindo as décadas de existência da televisão no Brasil. Na primeira, ‘Anos 1950: a televisão em formação’, são analisadas a sua estruturação, as experimentações realizadas pelas primeiras emissoras (TV Tupi, TV Paulista, TV Record e TV Rio) e a emergência de um público televisivo.
No capítulo ‘Imaginação televisual e os primórdios da TV no Brasil’, Marialva Carlos Barbosa reflete sobre a formação de um imaginário tecnológico sobre a televisão, antes e imediatamente após a implantação da primeira emissora, a TV Tupi Difusora, de São Paulo, e comenta as reações do público diante da constituição de uma nova mídia e, também, de um novo público – o público televisivo.
Em seguida, Cristina Brandão destaca, dentro da programação da época, os programas de teledramaturgia (telenovelas e teleteatros), marcados pela adaptação de clássicos da literatura nacional e estrangeira, mas também contando com a criação inédita de autores brasileiros, novos artífices da televisão.
Na segunda parte, ‘Anos 1960: a televisão em ritmo de popularização’, encontram-se os capítulos que discutem a popularização da televisão, no momento em que houve o aumento de telespectadores das classes populares e a consequente produção de programas que procuravam conquistá-los. Nessa década, três novas emissoras (TV Excelsior, TV Globo e TV Bandeirantes) entraram na disputa pelo público.
Um encontro pioneiro
Alexandre Bergamo analisa as imagens elaboradas no período sobre o público televisivo entre os produtores de televisão, tanto entre aqueles que vinham do teatro consagrado ou do rádio popular (e imaginavam a televisão como continuidade daqueles meios) quanto entre aqueles que se especializaram como profissionais de televisão. O autor demonstra o quanto as diferentes imagens do público implicaram a realização de programas com formatos distintos, dedicando maior atenção ao estudo da teledramaturgia. O capítulo ‘A MPB na era da TV’ trata dos populares programas musicais produzidos nessa década que, na constituição de um público televisivo, imbricaram-se com o musical. Marcos Napolitano analisa os programas Fino da Bossa e Jovem Guarda e mostra como se deram as relações entre a música popular brasileira e a TV, bem como as disputas entre a MPB e a Jovem Guarda pela conquista do público musical e televisivo.
A terceira parte, ‘Anos 1970: a televisão em tempos de modernização’, trata das transformações por que a televisão brasileira passou na década de auge e declínio da ditadura militar. Nos anos 1970, a televisão se modernizou não só pela sua centralidade no projeto de integração nacional do Estado autoritário, mas também pela necessidade mercadológica de renovação. Nesse momento, a administração, a produção, a programação e o quadro de profissionais televisivos mudaram. Uma emissora se destacou na conquista da liderança e na realização de um conjunto de inovações: a TV Globo. Os capítulos dessa parte se concentram nessas mudanças e em seus impactos no cenário televisivo. Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento abordam as estratégias e práticas de modernização desenvolvidas pelas emissoras brasileiras de televisão, especialmente pela Globo, no contexto de implantação, expansão e consolidação da rede nacional. Os autores comentam a campanha pela higienização do grotesco nos programas de auditório, em prol da conquista do ‘padrão de qualidade’ e, depois, analisam as mudanças ocorridas no jornalismo e na dramaturgia em direção à modernização das linguagens e formatos. Em seguida, Regina Mota analisa o programa Abertura, da TV Tupi, que foi dirigido por Fernando Barbosa Lima e que teve como um dos apresentadores o cineasta Glauber Rocha. A autora demonstra como se deu televisualmente o encontro do pioneirismo do diretor televisivo com a inventividade do cineasta, que, naquele programa, fazia seu testamento estético e político.
Linguagem melodramática e interatividade tecnológica
A quarta parte do livro, ‘Anos 1980: a televisão em transição democrática’, discute as novas formas de popularização da televisão brasileira no contexto de distensão política e de reconfiguração do mercado com o fim da TV Tupi, o aparecimento do SBT e da TV Manchete. Maria Celeste Mira analisa a estratégia de popularização da emissora de Sílvio Santos, que gerou polêmicas, mas também influenciou a programação de sua principal concorrente, a TV Globo. Em seguida, Marco Roxo, depois de traçar uma gênese da presença do ‘mundo cão’ na televisão, escreve uma história cultural dos programas telejornalísticos que surgiram no contexto dos anos 1980 e serviram aos projetos de popularização de suas emissoras. Aqui e Agora (TV Tupi), Aqui Agora (SBT) e O Povo na TV (SBT) são os programas destacados pelo autor. Ao final dessa parte, Marina Caminha analisa as narrativas ficcionais televisivas juvenis produzidas nos anos 1980, especialmente o seriado Armação Ilimitada, da TV Globo.
‘Anos 1990: a televisão em divergência’ é o título da quinta parte do livro, que conta com capítulos que analisam as mudanças no cenário televisivo diante da consolidação de um modelo democrático neoliberal no país. Nesse momento, houve a consolidação de novas emissoras (sbt e Manchete), a passagem da administração da TV Record da família Machado de Carvalho para a Igreja Universal do Reino de Deus, comandada pelo bispo Edir Macedo. Valério Cruz Brittos e Denis Gerson Simões estudam a reestruturação do mercado televisivo em face do novo cenário de multiplicidade de ofertas para os consumidores de produtos audiovisuais, com a ampliação de canais de tv aberta, a entrada do sistema de TV por assinatura e a popularização do videocassete e do videogame. Os autores procuram entender as estratégias das emissoras para vencer a concorrência num contexto pré-digitalização. Depois, Beatriz Becker trata precisamente de uma das mudanças ocorridas na televisão brasileira daquele momento. Pantanal, novela escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, propôs uma nova forma de fazer ficção televisiva, mostrando que um produto de qualidade pode conquistar a audiência. Por fim, Kleber Mendonça analisa as tentativas da TV Globo, no campo do telejornalismo, de fazer frente à popularização ditada pelas outras emissoras, especialmente pela TV Record e pelo SBT. O autor estuda o Linha Direta, programa que combinou a autoridade jornalística, a linguagem melodramática e a interatividade tecnológica para conquistar o público.
Maior interação com o público
A última parte do livro, ‘Anos 2000: a televisão em convergência’, também conta com dois capítulos, que tratam das transformações na programação televisiva ocasionadas pela produção de novos formatos, pelo boom de reality shows, pela digitalização da TV e pela crescente relação com o cinema e com a internet. No capítulo ‘Cinema e televisão no contexto da transmediação’, Yvana Fechine e Alexandre Figueirôa observam, primeiramente, as novas tendências da programação televisiva, voltada a programas interativos e a reality shows. Depois, analisam as múltiplas relações entre a televisão e o cinema: o impacto no cenário televisivo da consolidação da Globo Filmes e de seus produtos audiovisuais transmidiáticos, a produção ficcional do núcleo Guel Arraes (da TV Globo) e o lançamento do Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro, ou Doc TV (iniciativa do Ministério da Cultura). Ana Sílvia Médola e Léo Vitor Redondo analisam as transformações na produção ficcional nas redes nacionais abertas diante do impacto das tecnologias digitais e de suas promessas de interatividade.
Os autores observam como a produção teledramatúrgica tem se reestruturado em busca de maior interação com o seu público, tornando-se mais espalhada e presente em diferentes mídias digitais.