Amainada a crise político-institucional que desde julho perturbava a vida mexicana, por conta da eleição do novo presidente, o conservador Felipe Calderón, tenaz e duramente repudiada pelo candidato derrotado, o progressista Andrés Manuel López Obrador, parte da classe artística e intelectual do país, envolvida de paixão nas duas campanhas, se ocupa agora em duas outras atividades não menos intensas: de um lado, acesa a fogueira das vaidades e reaberta a possibilidade de conciliar interesses e conveniências profissionais, vai à luta por meio de apostas, conchavos e pressões para emplacar alguém da tchurma no comando do Conaculta – Conselho Nacional para a Cultura e as Artes –, espécie de Ministério da Cultura local; por outro, esta sim, tarefa mais abrangente e de maior fôlego, promove mobilizações de classe para reverter o veto do presidente Vicente Fox à Lei de Fomento para a Leitura e o Livro, que previa a criação do preço único para o livro.
Na sexta-feira (22/9), num manifesto publicado nos jornais, escritores, livreiros e editores apelaram ao Congresso e à opinião pública para que ajudem a reverter o veto presidencial, ‘pois esta lei é indispensável para sanear o mercado editorial, democratizar a cultura, gerar o acesso igualitário ao livro, impulsionar a criação de livrarias e baixar os preços ao consumidor’.
Além dos 130 nomes de expressão que assinam o manifesto, entre artistas e escritores, com destaque para três estrelas maiores – o poeta José Emilio Pacheco, o ensaísta Gabriel Zaid e o cronista Carlos Monsiváis, este há pouco contemplado com o Premio Juan Rulfo de Literatura Latino-Americana e do Caribe –, o documento tem também o apoio da Câmara Nacional da Indústria Editorial, da Associação de Livreiros Mexicanos e da Associação de Livreiros Mexicanos Independentes, entre outras entidades do ramo.
Alertam os signatários que ‘de pouco servem os grandes esforços realizados pelo Estado mexicano para formar um país de leitores (o cidadão médio e mais bem informado, lê, quando muito, dois livros por ano) se a população não tem acesso eqüitativo e democrático aos livros’. A propósito, o preço médio de um livro nas melhores livrarias da Cidade do México (Gandhi, Fondo de Cultura Económica, El Sótano, El Parnaso, Porrua, El Péndulo) varia, para começar, entre 15 e 20 dólares.
Essa desejada eqüidade estimularia, por exemplo, não só o surgimento de novas livrarias como a competição entre elas por um melhor serviço, um sortimento mais amplo e uma mais completa especialização. O México, segundo a Associação Nacional de Livreiros, registra um dos mais baixos índices latino-americanos quanto ao número de livrarias: cerca de mil para uma população de mais de 100 milhões de habitantes. Essa nociva concentração da oferta editorial em muito poucos pontos de venda acaba provocando uma impressionante discriminação geográfica no acesso aos livros. Por causa desse desequilíbrio, nos últimos três anos desapareceram 43% das livrarias no país.
Outro argumento apresentado é que nos países onde foi eliminado o preço único nos livros, repetiu-se essa tendência: o fechamento de livrarias ao longo dos últimos cinco anos – 400 na Inglaterra, 300 na Finlândia. Na França, ao contrário, onde funciona o preço único para o livro, o número de livrarias multiplicou-se por quatro nos últimos vinte anos.
Desempate parlamentar
Quem conhece os bastidores do atual governo mexicano, sabe muito bem que o presidente Vicente Fox, leitor indiferente e político nada interessado em questões culturais, só assinou o que lhe foi posto na frente, ou seja, as observações e críticas ao projeto feitas por um setor do Ministério da Fazenda, a Comissão Federal de Competência (Cofeco), com isso vetando a nova lei.
Em entrevista ao jornal El Universal, que tem dedicado generoso espaço diário a discussão do problema em seu caderno ‘Cultura’, o presidente dessa comissão, Eduardo Pérez Motta, reconhece que o organismo ‘se opõe a um aspecto muito especifico do projeto de lei: a imposição, por parte do editor, de um preço único para cada livro. Nesse esquema, quem oferecesse um desconto na venda de um livro estaria cometendo um ilícito’.
Mais ainda: ‘O esquema de preço único, ao contrário do afirmado por quem o promove, está longe de ser o padrão internacional. É verdade que existe em 10 países da União Européia, mas essa tem 25 membros. Também é certo que, na América Latina, se aplica na Argentina e na Colômbia, mas o que acontece no Chile, Brasil, Peru, Costa Rica e os demais países da região?’
De fato, um dos pontos conflitivos da nova lei é o que fazer, se implantado o sistema de preço único, com os descontos de praxe na indústria editorial, que vão das editoras às livrarias e destas ao consumidor. E se as editoras embutissem seus lucros fixando um preço único mais alto? Não ficaria então o tal desconto para o leitor ilusório, quase inexistente?
Responde a poeta Coral Bracho: ‘Na maioria dos casos continuaria o desconto. Sob o novo regime, as editoras não se veriam pressionadas a inflacionar seus preços para sobreviver, para poder outorgar os descontos, ainda maiores, que algumas livrarias necessitam, em detrimento de outras. Se com a lei do preço único se beneficia as grandes e pequenas livrarias, as editoras, a crescente rede de distribuição e aos leitores, sem ela todos perdem, sem exceção’.
Em termos mais prosaicos, discorda o escritor Paco Ignácio Taibo II, autor de uma nova e monumental biografia do herói revolucionário Pancho Villa, e um dos poucos de sua categoria que ousa falar contra o preço único para os livros: ‘Tudo bem que a iniciativa funcione em alguns países europeus, mas no México um dos fatores que incide no baixo índice de leitura é justamente o preço dos livros, proibitivo. Assim, no fundo, essa nova lei não beneficia os leitores, já que suprimiria os tradicionais descontos na hora da compra. Se esses leitores encontram o que procuram a preços baixos eles compram o livro, do contrário não¨.
Agora resta torcer para que deputados e senadores, melhor enfronhados na complexidade comercial do mercado editorial, desempatem o problema. Os legisladores deverão, ainda este ano, revisar as objeções do Executivo e depois fazer modificações ou não no projeto de lei. Se decidem não acatar as observações do presidente Fox, a lei será ratificada e, tal e qual, publicada no Diário Oficial da Federação.
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México