Em março de 1966, Paris via nascer um jornal sui generis: nele quase
não havia publicidade e os colaboradores eram todos voluntários, especialistas
em diversas áreas da cultura. O jornal quinzenal cobriria literatura, artes e
ciências humanas a partir da produção editorial francesa, mas pretendia
sobreviver longe das pressões das editoras. Seu fundador, o trotskista Maurice
Nadeau, crítico literário premiado e respeitado, queria fazer um jornal nos
moldes do Times Literary Supplement e da New York Review of Books.
[Ver entrevista de Maurice Nadeau, neste Observatório – ‘O papa de La Quinzaine Littéraire‘]
Quarenta anos depois, o mesmo Maurice Nadeau continua à frente da
Quinzaine Littéraire e recebeu o ‘tout-Paris’ cultural para comemorar
na quarta-feira (22/3), depois de fechar o número especial que está nas bancas,
datado de 16 a 31 de março. Na bela capa, que alia sobriedade e elegância em
preto, vermelho e branco, um desenho original de Antoni Tàpies, presente de
aniversário.
Em quase todas as 48 páginas, ilustrando os artigos desse número especial,
reproduções de exemplares históricos: do primeiro, de março de 1966, com texto
inédito de Samuel Beckett, passando pelo número em que Michel Foucault responde
a um artigo de Jean-Paul Sartre, de 1968. Na rubrica ‘Psicanálise’, o jornal
reproduz o célebre desenho de Maurice Henry, publicado originalmente num artigo
sobre o estruturalimo, em 1967. Nele, Michel Foucault, Jacques Lacan, Claude
Lévi-Strauss e Roland Barthes, vestidos como indígenas, conversam animadamente
numa clareira. Era o pensamento francês da década de 1960 em todo seu
esplendor.
Uísque, suco, água
Aos 95 anos, o crítico literário mais respeitado da França, um ícone das
letras francesas e dono da editora que tem seu nome, continua a realizar a
proeza de fazer um jornal quase sem publicidade e escrito por colaboradores
voluntários. Escolhidos a dedo por Nadeau, esses intelectuais parisienses
sentem-se honrados em participar de uma aventura intelectual que ajudou a
escrever parte da história do jornalismo cultural na França. Ter um livro
resenhado na Quinzaine é o sonho de consagração de um escritor. A
publicação não perde tempo com best-sellers.
Maurice Nadeau conseguiu impor o jornal como o mais independente e
prestigioso entre os que se ocupam de livros e idéias: só publica resenhas de
obras que passam por seu exigente crivo. Na Quinzaine, as grandes
editoras não exercem poder de pressão para o lançamento de best-sellers,
nem há espaço para tratar de livros de filósofos narcisistas como Bernard-Henry
Lévy, que fazem do lançamento de um livro um acontecimento midiático-cultural.
Seu recente American vertigo, lançado este ano numa campanha de grande
porte, não mereceu nenhum comentário do jornal.
Anne Sarraute, filha da grande escritora do nouveau roman Nathalie
Sarraute, é a secretária de redação que assegura o fechamento do jornal,
juntamente com o escritor e crítico literário Bertrand Leclair. Eles são
responsáveis pelos contatos com colaboradores convidados para números especiais
e pelo fluxo das resenhas nos prazos necessários. Não há um só texto que não
passe pela leitura atenta de Nadeau, que mantém na Quinzaine uma coluna
chamada ‘Journal en public’ onde fala de livros, de idéias e de política.
De sua sala, em frente ao Beaubourg, ele dirige o fechamento do jornal e as
reuniões de pauta do comitê de redação, regadas a uísque, suco de laranja e água
mineral Perrier. Os aficionados de cada uma das três bebidas se servem à
vontade. A cena é inusitada para um observador externo: alguns dos colaboradores
fazem considerações eruditas sobre autores e livros com um copo de uísque na
mão.
Livros não traduzidos
Toda quarta-feira, às 18h em ponto, começa a reunião de pauta. Elas se
alternam entre as do grupo de literatura (romance e poesia) e as de ciências
humanas. Nelas, os livros, que chegaram à redação, com vista privilegiada para a
grande construção moderna do museu Georges Pompidou, vão sendo apresentados por
um dos colaboradores. Nadeau atua como árbitro, ouve as frases ferinas ou
elogios entusiasmados sobre um livro, um autor. Não faltam comentários
sarcásticos sobre personagens da vida cultural. Sob a autoridade suave e natural
do carismático diretor de redação vão sendo definidos os contornos da próxima
edição do jornal.
Na mesa-redonda publicada no número dos 40 anos, os colaboradores fazem uma
análise da publicação. O filósofo Jean Lacoste afirma que o verdadeiro modelo da
Quinzaine Littéraire é o Times Literary Supplement, ‘que oferece
artigos mais curtos, mais concentrados, ligados diretamente à atualidade
editorial, escritos para um leitor não-especialista’.
Na opinião de Christian Descamps, a Quinzaine deveria falar de livros
ainda não traduzidos, como faz o Times Literary Supplement. Gilles
Lapouge aponta uma lacuna: o jornal deveria publicar novas descobertas nas áreas
de paleontologia e cosmologia que freqüentemente revolucionam teorias
existentes.
Autobiografia é pretexto para falar de escritores
‘Ser crítico literário e jornalista me dá tanto prazer quanto ser editor’,
confessa Nadeau, que nunca teve de escolher uma atividade e ainda acrescentou a
de ensaísta às outras. Ele é um editor que assina livro como autor no alto da
capa e como editor, embaixo. Entre suas obras mais conhecidas, Gustave
Flaubert écrivain ganhou o prêmio da crítica literária, em 1969, quando foi
lançado.
Nadeau, que publicou em francês Malcolm Lowry e Walter Benjamin, é um
monumento não-tombado do patrimônio intelectual francês. Viveu a maior parte do
século 20 e participou da vida intelectual por dentro dos acontecimentos. Amigo
de André Breton, escreveu uma História do Surrealismo que é referência no
assunto. Foi crítico literário de Combat, onde conviveu com o escritor
Albert Camus, que dirigia o jornal.
Apesar de ter tido entre seus amigos Jean-Paul Sartre e Henry Miller, não
vive do passado nem de suas relações com os grandes escritores. Em política, o
antigo trotskista – que criou com Pierre Naville o jornal La Vérité –
continua um irrequieto homem de esquerda que não hesita em citar Trótski como
seu herói e declarar voto no provável candidato da Liga Comunista Revolucionária
(trotskista) à presidência da República.
Em sua longa vida de crítico literário, Nadeau revelou aos franceses
escritores como Samuel Beckett e Malcolm Lowry – e foi responsável pelo
lançamento de Roland Barthes e Benjamin Perec. Foi também Nadeau quem editou o
primeiro romance de Michel Houellebecq, Extensão do domínio da luta, em
1994, após as editoras Seuil e Gallimard recusarem o livro. Nas edições Maurice
Nadeau, o editor continua a revelar nomes desconhecidos, pois gosta mesmo é de
apontar novos talentos.
Há alguns anos, o crítico escreveu uma autobiografia original (Grâces leur
soient rendues, Ed. Albin Michel) na qual conta pouco de sua própria vida,
pois o livro é um pretexto para compor deliciosos perfis de escritores, a partir
de episódios vividos.
Se não fosse Nadeau, o Marquês de Sade teria continuado um autor proibido e
desconhecido. Foi ele quem teve a iniciativa de publicar os textos do divino
marquês, confinados no Inferno – a protegidíssima seção de livros
eróticos e pornográficos da Biblioteca Nacional da França. Durante meses, ele
foi à biblioteca copiar os textos, alternando-se com outra pessoa, até ter a
obra pronta para publicação. Sade saiu do inferno e ganhou as livrarias.
Há poucos anos, a marca Louis Vuitton criou com Nadeau a coleção ‘Voyager
avec’, que logo se tornou cult. No selo Quinzaine Littéraire-Louis
Vuitton já foram publicados textos de viagem de Joseph Roth, Rainer Maria
Rilke, Walter Benjamin, Mário de Andrade, Jacques Derrida, Virginia Woolf, D. H.
Lawrence e Paul Morand, entre outros.
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Jornalista