Na semana passada, o mercado editorial brasileiro foi brindado com uma nota do Grupo Record comunicando sua retirada das próximas edições do Prêmio Jabuti. O comunicado foi seguido de ampla cobertura no site da revista Veja, especialmente no blog de Reinaldo Azevedo, autor publicado pela Record.
Em entrevista à ‘Ilustríssima’ [ver aqui, rolar a página], publicada no domingo passado, o presidente do grupo, Sérgio Machado, e a editora Luciana Villas Boas fazem coro com Azevedo, tentando desqualificar o escritor Chico Buarque, para assim contestar sua premiação, além de sugerir favorecimento ao autor e à editora por motivos políticos de diversas naturezas. Para terminar, o editor carioca subscreveu e transmitiu um abaixo-assinado, divulgado no blog de Azevedo, pedindo que Chico Buarque devolvesse o prêmio.
Tais atitudes são quase inacreditáveis em se tratando de editores, aqueles cujo trabalho deve se fundar no respeito a autores, livreiros e leitores. Em vez de propor uma discussão sobre novos critérios para os prêmios literários no Brasil dentro das instituições que os promovem, em atitude mundialmente inédita, a Record ataca um escritor e artista publicado por outra casa, desqualificando-se prontamente para debate condigno com a responsabilidade de tornar pública a literatura.
Baixo nível
As declarações de que o Prêmio Jabuti assemelha-se a um ‘concurso de beleza’, ou tem motivações políticas, desviam a discussão do foco literário e cultural, e reproduzem, na área editorial, o baixo e ofensivo nível do debate político-eleitoral no Brasil.
Atribuir a vitória de Leite Derramado à simpatia do escritor pela candidata vencedora das últimas eleições, poucos dias após a realização destas, é apenas mais um capítulo da história política brasileira recente, quando candidatos perdem a dignidade valendo-se de aspectos externos às suas convicções, ou desmerecem adversários políticos que os antecederam, mas cujas realizações possibilitaram o sucesso econômico e político do país nos últimos anos. Não discutimos propostas de governo na campanha eleitoral, assim como não discutimos os possíveis problemas dos nossos prêmios literários. Coincidência?
Edney Silvestre, que inaugura sua trajetória editorial com sucesso, é usado como pretexto para um ataque ao prêmio para o qual a editora Record se inscreveu conhecendo as regras e para o qual contribui com seu voto. Enquanto os demais prêmios são dados e selecionados por diferentes júris, esse é votado pela categoria -livreiros, editores, distribuidores- e elege o livro que mais mobilizou o mercado editorial. As regras são claras, do conhecimento de todos há décadas. (Para não escolher um autor de seu catálogo em detrimento de outros, a Companhia das Letras nunca vota no Livro do Ano do Prêmio Jabuti.)
Delicadeza
As declarações do escritor estreante citadas na entrevista dos editores, aludindo a roubo ou ações semelhantes, associam a imagem do bem-sucedido apresentador de TV a atitudes pouco próprias à delicadeza literária, e que, permito-me apostar, não indicam caminho seguro para o aprimoramento de seu novo ofício. Esse é o nível do nosso debate político, esse é o nível do nosso debate cultural.
A Companhia das Letras já apresentou críticas a vários dos prêmios literários, inclusive ao Jabuti, mas nunca se retirou ao discordar do resultado, tampouco buscou desqualificar os concorrentes. Se a cada derrota um partido político abandonar o Congresso, ou dizer ‘assim não brinco mais de democracia’, para onde irão nossas instituições, qual a possibilidade que teremos de discutir e criar novas regras, em atitude de respeito aos que pensam diferentemente?
A editora Record perdeu a oportunidade de iniciar uma profícua discussão sobre vários aspectos de nossos prêmios, entre eles o investimento que se faz no trabalho dos jurados, especialmente em comparação aos gastos com as cerimônias de premiação. Há prêmios que mal remuneram o trabalho de apreciação de milhares de livros. Há outros, como o Portugal Telecom, que seguem o exemplo europeu, valorizando a avaliação do mérito literário.
Autoritarismo
Como o intuito não é o de uma discussão séria dos prêmios, avaliar se remuneramos condignamente nossos jurados não convém. Desmerecer regras, alegando favorecimento, insinuando que quem votou não sabe votar, que ‘o eleitor segue as celebridades’, é atitude típica da tradição autoritária, e não da defesa da meritocracia envolvida numa premiação.
A discussão válida, se os prêmios literários devem ou não classificar mais de um vencedor -não conheço exemplo dessa natureza entre os prêmios literários internacionais mais importantes-, trazendo a competição, e não a premiação, para o cerne desses eventos, foi jogada fora pelos meus colegas. Ao invés da discussão serena das regras, Machado e Villas Boas preferem dizer que os livreiros, aliados naturais dos editores, assim como nós mesmos, não sabemos escolher os livros merecedores de um prêmio da classe.
Chico Buarque e sua obra não precisam da minha defesa; o livro em questão teve recepção crítica que é pública e vendeu mais de 180 mil exemplares. Mas o sucesso alheio para Sérgio Machado é fruto da má escolha dos livreiros e do baixo nível dos leitores. Assim sempre se fundaram no Brasil o discurso e as práticas pautadas no autoritarismo. Será assim também na República das Letras?
Espero que não. Espero que livros continuem sendo atos de respeito a autores e leitores, e que a Câmara Brasileira do Livro só aceite discutir regras preservando a dignidade de seus membros e das editoras que inscrevem livros em seu prêmio (e que respeitam o regulamento previamente estabelecido).
A editora Record tem direito de se orgulhar e se apresentar como o maior grupo editorial do país, mas a literatura nunca foi e nunca será o campo do ‘você sabe com quem está falando?’, mas, sim, o lugar do ‘ouve só o que eu tenho para te dizer’.
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Editor da Companhia das Letras e autor de Discurso Sobre o Capim e Linguagem de Sinais